quarta-feira, 4 de novembro de 2015

ORATÓRIA DO PODER

Vultos da República

Quem é a turma que põe palavras na boca dos chefes de Estado



Numa tarde de setembro passado, circulando a bordo de um par de suspensórios cor de lavanda, Marco Aurélio Garcia mostrava o seu pequeno latifúndio – agora ampliado – no 3º andar de um recém-reformado Palácio do Planalto. Assessor especial de política externa de Luiz Inácio Lula da Silva desde o primeiro mandato do presidente, há mais de quinze anos Garcia tem o ouvido do companheiro petista para questões internacionais. Sabe ser espaçoso quando quer e sumir do noticiário quando necessário.

Na ocasião, faltavam pouco mais de duas semanas para o primeiro turno da eleição em 3 de outubro e “mag”, como é identificado na correspondência palaciana, estava fascinado com a leitura de Nixon e Kissinger: Parceiros no Poder, do historiador americano Robert Dallek. Crônica definitiva da parceria de Richard Nixon com seu secretário de Estado Henry Kissinger na condução da política externa da Casa Branca entre 1969 e 1974, a obra é um deleite para quem atua nessa área. O acesso inédito a 20 mil páginas de transcrições de telefonemas oficiais de Kissinger permitiu ao historiador escancarar as motivações pessoais por trás das maquinações públicas e privadas da dupla.

“Não sei como os dois conseguiram sobreviver. Foi um enfrentamento permanente, uma guerra”, constata Garcia. “Se eu trabalhasse numa situação de confronto semelhante, teria pedido o boné depois do primeiro mês”, garante ele. Professor licenciado do Departamento de História da Unicamp, a Universidade Estadual de Campinas, esse gaúcho bon vivant e de humor afiado, acaba de ser mantido no cargo pela presidente eleita Dilma Rousseff.

Exatamente há um ano, em dezembro de 2009, Garcia e Rousseff testemunharam um momento de oratória do poder ou – para os admiradores de Luiz Inácio Lula da Silva – de poder da oratória, do qual tiraram ensinamentos distintos. Ambos integravam a delegação brasileira presente à Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a cop 15 – mag como assessor especial e coautor do discurso oficial que Lula pronunciaria, Dilma como futura candidata oficial à sucessão do presidente. Para a então chefe da Casa Civil, aquela cúpula de 113 chefes de Estado e de governo reunidos em Copenhague, na Dinamarca, era uma chance para observar estadistas em exercício conspícuo do cargo.

Lula leu seu discurso numa quinta-feira, véspera do encerramento da conferência que já rumava para seu inexorável naufrágio e à qual o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, só compareceria no último dia. Recebeu os esperados encômios ao apontar a teimosia com que países ricos punham o planeta em risco e anunciou que o Brasil assumia o compromisso de reduzir suas emissões de gases do efeito estufa entre 36,1% e 39,8% até 2020. À noite, haveria um banquete real oferecido pela rainha Margrethe ii no faustoso Castelo Christiansborg.

Ainda antes do banquete, contudo, pôs-se em marcha uma romaria de chefes de governo para falar com Lula no Hotel d’Angleterre. Houve encontros com Gordon Brown, da Inglaterra, e Lars Løkke Rasmussen, primeiro-ministro dinamarquês, que se mostrou um tanto desanimado com os descaminhos da cúpula. Houve confabulações com o sempre saliente Nicolas Sarkozy, da França, e com a despojada chanceler Angela Merkel, da Alemanha.

Terminado o banquete, seguiram-se mais encontros noite adentro, a ponto de o presidente Lula comentar que nem nos seus tempos de cut tinha lembrança de algo tão bagunçado. Foi naquela madrugada que o telefone do quarto de Marco Aurélio Garcia começou a tocar. Primeiro foram os delegados de alguns hermanos latino-americanos, querendo saber o que o presidente brasileiro negociava sem a presença deles. Em seguida, Garcia atendeu Celso Amorim que, também acondicionado na cama, lhe informou que os organizadores da cúpula acabavam de avisar que Lula deveria discursar uma segunda vez na manhã seguinte, na ocasião do encerramento da conferência. Tradução: urgia a elaboração de novo texto de discurso.

Assim, na manhã da sexta-feira, Garcia se instalou com o laptop no foyer do Bella Center, o qg da cop-15, e começou a alinhavar um aide-mémoire a partir de ideias colhidas com Amorim. Estava ciente de que não haveria tempo hábil para preparar um novo discurso. Enquanto isso, Lula fazia reuniões de última hora com os primeiros-ministros da China e da Índia, além do presidente sul-africano, na tentativa de esboçar uma linha comum de ação.

“De repente”, relembrou Garcia, “vi pessoas se aglomerarem diante das telas de televisão. E ouço a voz do Sérgio Ferreira [o intérprete de Lula há 18 anos] se esmerando na tradução. Levantei, fui ver o que era e na tela estava Lula, já na tribuna do plenário, fazendo seu discurso de improviso. Não tinha à mão qualquer anotação, citava os dados do dossiê de cabeça. Exerceu o que chamamos de lulismo às últimas consequências. Saiu da tribuna sob ovação.”

Dilma Rousseff assistiu à mesma cena mais de perto. Única integrante da delegação brasileira a já estar na plateia, presenciou o presidente ser convidado a abrir os debates, embora estivesse escalado para ser o terceiro ou quarto orador da sessão. “Não havia papel que ele pudesse consultar, o Marco Aurélio tinha sumido”, conta um membro da equipe que ouviu o relato de Dilma. “A capacidade de improvisação de Lula naquela sessão plenária informal a estarreceu.”

Para a economista pouco palanqueira, que no primeiro sábado de 2011 se torna a 36ª presidente da República, a oratória como “arte de conquistar a alma” não cai fácil. Aos 63 anos de idade e perfil essencialmente técnico, a presidente eleita passará por um batismo triplo nas próximas semanas. Ele se inicia no dia 17 deste mês, no Salão Vermelho do Tribunal Superior Eleitoral, onde Dilma deve discursar após ser diplomada para exercer seu mandato.

Não se espera que ela redija o texto de próprio punho, como fez Jânio Quadros em 1961, cuja peça de retórica se encerrava assim:

Honra-me ser o primeiro chefe de Estado a receber, nesta nova capital, o seu diploma, e na pessoa do ínclito ministro presidente, rendo as minhas homenagens a todos os dignos juízes que ilustram a Justiça Eleitoral brasileira. A eles, e só a eles, deve a instituição o elevado e merecido conceito que desfruta.

Meus Senhores!

O preço da liberdade, que o voto dos meus patrícios me outorgou, é a servidão à causa pública. Dentro da lei e em estrita obediência à lei, serei livre para impor e exigir de todos o exato cumprimento do dever.

Dessa liberdade, faço a minha escravidão.

Após a diplomação, a nova chefe de Estado terá pela frente os dois discursos de posse propriamente ditos. No dia da troca da guarda, o mais formal será lido da tribuna do Congresso. Pouco depois, já com a faixa presidencial a lhe cruzar o peito, deverá falar do parlatório do Palácio do Planalto para o povo reunido na praça dos Três Poderes.

A julgar pelo discurso da vitória sobre José Serra, proferido na noite do domingo 31 de outubro, ainda é cedo para apontar qual será o estilo Dilma. Os retoques finais no seu pronunciamento de recém-eleita haviam sido lavrados poucas horas antes do fechamento das urnas. Dilma tinha retornado a Brasília de jatinho com Tarso Genro, vinda de Porto Alegre, e rumara para a sua antiga casa do Lago Sul. Ali a versão final do texto estava sendo polida pela troica de choque Palocci-Cardozo-Dutra – respectivamente, Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda, José Eduardo Cardozo, secretário-geral do Partido dos Trabalhadores, e José Eduardo Dutra, presidente do pt. O conjunto da peça teria sido urdido por Palocci, sem intervenção do consagrado marqueteiro baiano João Santana, responsável pela propaganda de campanha da vencedora.

Os 45 parágrafos deixam à mostra uma autoria múltipla pouco harmoniosa, com frases avulsas, ora na primeira pessoa do singular, ora do plural, entremeadas de anáforas, a repetição de palavras no início de uma frase: Zelarei pela mais ampla e irrestrita liberdade de imprensa. Zelarei pela mais ampla liberdade religiosa e de culto. Zelarei pela observação criteriosa e permanente dos direitos humanos […] Zelarei, enfim, pela nossa Constituição […].

Em compensação, foi dela a ênfase no ineditismo do Brasil ter elegido uma mulher para presidente, presente já na saudação inicial (“Minhas amigas e meus amigos”). Na mesma linha está a apropriação intencional do Yes, We Can (“Sim, nós podemos”), que a esta altura já deveria pagar direitos de propriedade à campanha de Barack Obama. Saudando as oportunidades iguais para homens e mulheres como uma conquista essencial da democracia, Dilma comunicava à nação que a elegeu desejar que “os pais e mães de meninas olhassem hoje nos olhos delas e lhes dissessem: sim, a mulher pode!”. Apesar de não ser um discurso para os anais da história, a oratória de Dilma conseguiu lhe insuflar um sopro de vida: a presidente eleita pareceu dona das palavras que lia. Estava à vontade com aquelas frases e, durante 25 minutos, se comunicou com a nação.

Foi um avanço em relação à longa campanha eleitoral, quando lia e relia os textos que lhe eram submetidos. Seu tipo e tamanho de letra preferidos, para facilitar a leitura, são Arial 22. Ao contrário de Lula, Dilma Rousseff armazena informação e adquire segurança por meio da palavra escrita. O livro mais recente que comprou na Amazon e baixou no seu leitor eletrônico iPad foi uma biografia de Abraham Lincoln, o estadista que traduziu em palavras a rota que vislumbrou para fazer dos Estados Unidos uma nação. Seu célebre discurso de Gettysburg, de apenas três parágrafos, 272 palavras e dois minutos de locução, é certamente o mais sucinto e profundo da história americana. Foi pronunciado no cemitério da cidade onde ocorreu a batalha de mesmo nome, que definiu o curso da Guerra Civil e deixou mais de 7 mil soldados mortos em apenas três dias de combates.

Há oito décadas e sete anos, os nossos pais deram origem neste continente a uma nova Nação, concebida na Liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens nascem iguais – proclamou Lincoln em novembro de 1863. Eis-nos reunidos para dedicar uma parte desse campo ao derradeiro repouso daqueles que, aqui, deram a sua vida para que essa Nação possa sobreviver. É perfeitamente conveniente e justo que o façamos. Mas, numa visão mais ampla, não podemos dedicar, não podemos consagrar, não podemos santificar este local. Os valentes homens, vivos e mortos, que aqui combateram já o consagraram, muito além do que nós jamais poderíamos acrescentar ou diminuir com os nossos fracos poderes. […] Cumpre-nos a nós, os presentes, dedicarmo-nos à importante tarefa que temos pela frente – que estes mortos veneráveis nos inspirem maior devoção à causa pela qual deram a última medida transbordante de devoção – que todos nós aqui presentes solenemente admitamos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação com a graça de Deus venha gerar uma nova Liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desaparecerá da face da terra.

Poucos são os presidentes eleitos, ou os escribas encarregados de seus discursos, que não buscam amparo nas frases históricas que tiveram a capacidade de fixar para sempre o espírito do tempo. Na visão do filósofo, teólogo e educador escocês George Campbell (1719–96), a arte da retórica teria como meta alcançar quatro objetivos: iluminar a compreensão humana, aguçar a sua imaginação, mover a sua paixão e influenciar a sua determinação. Não raro, esse uso instrumental da palavra alheia é explicitado de forma despudorada.

A jornalista americana Peggy Noonan trabalhava na assessoria do presidente Ronald Reagan há menos de três meses quando recebeu uma incumbência. Cabia a ela redigir o discurso que seu chefe deveria proferir por ocasião do quadragésimo aniversário do desembarque aliado na Normandia. Como contaria mais tarde, Noonan se sentiu paralisada ao receber a instrução de “escrever algo no estilo Gettysburg, ou seja, faça o povo chorar”. Esboçou vinte versões, que resultaram num dos dois discursos mais célebres de Reagan (o outro contém a frase “Sr. Gorbachev, abra o portão, derrube este muro”, dita em Berlim, à sombra do muro homônimo).

Peggy Noonan conseguiu fazer chorar os últimos veteranos de 1944 que assistiam à cerimônia no alto da falésia de Pointe du Hoc. Ou terá sido a prosódia e o gestual de Ronald Reagan que levaram os veteranos e demais presentes às lágrimas? Certamente a conjunção dos dois talentos:

Passaram-se quarenta verões desde que vocês aqui lutaram. Vocês eram jovens quando conquistaram esse penhasco; alguns de vocês ainda eram quase meninos, com as vastas alegrias da vida pela frente. Ainda assim, aqui vocês tudo arriscaram. Por quê? Por que o fizeram? O que os compeliu a afastar o instinto de autopreservação e arriscar suas vidas nestes penhascos?… Olhamos para vocês e adivinhamos a resposta. Foi fé e crença, foi lealdade e fraternidade. Os homens da Normandia tinham a certeza de que faziam o certo, a certeza de estarem lutando pela humanidade, fé de que um Deus justo por eles teria compaixão neste desembarque ou no próximo. Foi a certeza enraizada – e Deus seja louvado por não termos perdido isso – de que existe uma diferença moral profunda entre o uso da força para libertar e o uso da força para conquistar.

Dos mais de cinquenta discursos de posse proferidos por presidentes dos Estados Unidos em 221 anos de Constituição (considerando-se os mandatos múltiplos de seus 44 presidentes), apenas um punhado entrou para a posteridade. A admiração de Barack Obama por Lincoln – que foi deputado no Illinois, mesmo estado em que o atual ocupante da Casa Branca construiu carreira política – é quase obrigatória. Ele considera que o discurso de posse feito por Lincoln em 1861 e lido à beira de uma guerra fratricida, é a peça de oratória mais decisiva da história americana. Nos dois últimos parágrafos, lê-se:

Em suas mãos, meus compatriotas insatisfeitos, e não nas minhas, está a grave questão da Guerra Civil. O governo não os atacará. Não haverá conflito em que não sejam os senhores os agressores. Os senhores não juraram perante os céus destruir o Governo, mas eu, de minha parte, prestei o mais solene juramento de preservá-lo, protegê-lo, e defendê-lo.

Temo encerrar este discurso. Não somos inimigos, mas amigos. Não devemos ser inimigos. Mesmo que nossos ideais tenham forçado os laços de afeto que nos unem, não devemos deixar que eles sejam desfeitos. Os ecos míticos da memória, vindos de cada campo de batalha e de cada túmulo de patriota, que alcançam cada coração e cada lar, por todo este vasto país, aumentarão o coro da União quando, como certamente o serão, forem tocados pelos espíritos mais benignos que nos habitam.

Dois anos atrás, pouco antes das eleições de novembro de 2008 nos Estados Unidos, justo quando a figura e retórica de Obama contagiavam o mundo, chegou às livrarias americanas um livro esplêndido sobre o ofício de escriba presidencial. Em português, o título do livro White House Ghosts seria “Fantasmas da Casa Branca”, na tradução literal. Na acepção política, é um feliz trocadilho com ghost-writer, invenção da língua inglesa para designar quem escreve textos sob encomenda que serão imortalizados por outrem. Ao longo dos últimos setenta anos, ghost-writer se tornou sinônimo de speech-writer, foi encurtado para ghost e o indigesto vocábulo passou a circular por gabinetes do poder mundo afora como se tivesse brotado na língua nativa.

O pedigree do autor do livro não poderia ser melhor: Robert Schlesinger é filho do falecido historiador e ghost de John Kennedy, Arthur Schlesinger Jr., escreve melhor do que o pai e consegue responder às perguntas mais essenciais do metiê. Como, por exemplo, se um ghost deve fazer ou promover uma política, se devem prevalecer as preferências retóricas do escriba ou dos assessores mais próximos do estadista. A obra chegou às livrarias no momento em que Obama atropelava os prognósticos eleitorais graças, sobretudo, a sua oratória e capacidade de comunicação pessoal. A força dessa ferramenta que dominava tão bem desestabilizou a corrida para a Casa Branca, e ele chegou ao poder como a figura mais inspiradora do século xxi.

Ocorre que, assim como nenhum estadista pode desmerecer a força das palavras, tampouco deve subestimar seus limites – o contexto é tudo. John F. Kennedy, no início dos anos 60, teve plena compreensão das duas coisas. Barack Obama, não. E nesse caso a responsabilidade pelo desapontamento mundial com a sua presidência não pode ser atribuída à força dos seus magistrais textos de campanha e posse. O que faltou foi a capacidade de transformar em realidade a esperança gerada por palavras. E isso não há ghost-writer que resolva.

Se houvesse, Jonathan Favreau seria o cara. Aos 29 anos de idade, ele forma uma dupla privilegiadamente afinada com o 44º presidente dos Estados Unidos. Ocupa o cargo de diretor do Departamento de Discursos da Casa Branca, com salário equivalente ao dos assessores mais graduados – 172 mil dólares anuais. Com o currículo abarrotado de honrarias acadêmicas, Favreau foi um ativista de causas sociais e tinha apenas 23 anos quando chamou a atenção de Obama. Candidato a uma cadeira de senador estadual na eleição de 2004, o atual presidente ensaiava um discurso quando o rapaz, cujo apelido é “Favs”, interrompeu-o e explicou que o texto podia ficar melhor. Não se separaram mais e desde então o presidente define Favreau como sendo o seu “telepata”. Foi dele a ideia de turbinar o slogan Yes, We Can. Ele foi, também, o principal escriba da magnífica peça de retórica que é o discurso de posse de Obama. Favreau, como ghost, sabe extrair o que há de mais notável no intelecto do presidente. Mas nem juntos nem em separado conseguem mudar a taxa de desemprego do país.

No Brasil, a paisagem formal da retórica e da oratória presidenciais, que já não era cintilante, turvou-se de vez com a entrada em cena de um chefe de Estado de língua presa e pendor improvisante chamado Lula. “Não se pode ser ghost-writer do Lula”, argumenta o diplomata Marcos Azambuja, um fino observador da vida brasileira. “Teria de ser alguém especializado em literatura oral. No fundo, Lula é um repentista extraordinário, um espontaneísta. Ele capta tudo e funciona não em relação ao texto que recebeu, mas em função da relação que estabeleceu com seu público naquele momento e ambiente específico.” Aos 75 anos de vida e 45 de Itamaraty, Azambuja mantém língua e intelecto deliciosamente afiados. “Lula pode até ler de forma competente textos que o Celso ou o Marco Aurélio lhe prepararam, mas jamais será aquela Kate Winslet”, complementa, o rosto roliço saboreando a referência à divina protagonista do filme O Leitor.

Garcia tende a concordar. “Lula estabeleceu um tipo de promiscuidade única com seus ouvintes. Nunca o vi nervoso antes de um discurso – ele sobe e fala, o que não quer dizer que sempre fale bem. Ele é completamente psicanalisado – fala tudo”, resume, referindo-se à ausência de peias do superego presidencial. E o assessor especial, não estaria falando demais pelas normas do metiê? “Meus antecessores eram menos exibidos do que eu”, reconhece ele de bom grado, ressalvando apenas não estar bem lembrado de como era o poeta Augusto Frederico Schmidt, ghost e assessor de Juscelino Kubitschek. Pela narrativa do escritor Autran Dourado, ghost do ghost de jk e autor de uma frase marcante da oratória presidencial brasileira (“Deus poupou-me o sentimento do medo”), Schmidt era tudo, menos dado ao recato. Certa manhã, ao passar pelo apartamento do poeta na rua Paula Freitas, Autran foi recebido pelo mordomo que o encaminhou ao escritório em que o dono da casa trabalhava em todo seu esplendor: “Encontrei o poeta vestido à sua maneira – nu, com apenas um robe de chambre sobre os ombros. Não era uma figura muito agradável à vista: gordo, grande, peludo, o sexo à mostra, ele se esfalfava no seu artigo para o Correio da Manhã ou num poema.”

Em matéria de retraimento e decoro, zelo e cautela extremas, o governo Lula pode contar com um ghost mineiro por excelência: o ministro Luiz Dulci, chefe da Secretaria-Geral da Presidência, cargo que será ocupado por Gilberto Carvalho na Presidência Dilma. Na topografia planaltina, seu gabinete situa-se um andar acima da sala do presidente. Dulci foi deputado federal com 26 anos de idade, líder de um dos maiores sindicatos do Brasil – o dos professores – tem prestígio, é benquisto dentro do pt e traz no currículo idiossincrasias culturais como conhecer grego e latim. Seu domínio da língua portuguesa fez com que somasse ao cargo de atribuições elásticas a tarefa de redator dos textos políticos da Presidência. Estreou com o discurso de posse do primeiro mandato de Lula, em 2003, e viu transitar por seu gabinete um volume intimidante de rascunhos.

Dois anos atrás, ficou encarregado de produzir o discurso que Lula pronunciaria no Salão Nobre da Academia Brasileira de Letras, por ocasião do centenário da morte de Machado de Assis. Segundo relatos de assessores, o texto de Dulci teve a habilidade de não sugerir que o presidente lera todos os livros do mestre. Tampouco incluiu qualquer personagem da obra do escritor. Optou por discorrer mais sobre o homem do que o autor Machado e limitou-se a inserir opiniões que Lula pudesse ler de forma crível. Trabalho de ourives. “O presidente tem uma retórica própria, diferente da maioria dos oradores”, explicou o ministro numa tarde de setembro último, desconfortável no papel de entrevistado. “Ele vai do particular ao geral, do concreto ao abstrato. Ele raciocina em público, não vai direto à conclusão, compartilha o seu processo de raciocínio com os ouvintes.” Para Dulci, uma das facetas mais singulares do presidente, que ora se despede, está na sua preocupação em expor de modo acessível o funcionamento do Estado, seus limites e possibilidades.

A linha de montagem encarregada de produzir discursos de política externa para Lula – mais de 3 mil até agora – passa por etapas. Em geral o Itamaraty gera a informação bruta e precisa, Garcia e sua equipe colocam o molho e o texto retorna ao chanceler Celso Amorim, que opina sobre a propriedade ou não da redação. Muitas vezes a gênese da versão final só vem à luz dentro do avião que leva a comitiva para o exterior – portanto, sem celulares tocando. Já de chinelo de dedo, camisa regata e relaxado, o presidente chama o seu chanceler: “Celsinho, como está a questão no país xis?”

Dada a sua capacidade de reter dados e aprender através da conversa, esta tem sido a forma mais eficaz do presidente abordar temas complexos. A trinca de diplomatas que trabalha com Garcia funciona em sistema de compartilhamento de ideias e hierarquização zero. Todos, sobretudo o chefe, aprenderam a “lular” os discursos do presidente. Isto é, não devem inserir vocábulos como “perfunctório” nem palavras proparoxítonas. “Tampouco devemos produzir peças por demais literais. Deve ser, na medida do possível, um texto que o Lula escreveria, e se não escrevesse, que gostaria de ter escrito”, explica o assessor especial.

E Marco Aurélio Garcia, qual discurso gostaria de ter escrito? A carta-testamento deixada pelo presidente Getúlio Vargas uma hora antes de se suicidar. Na época, Marco Aurélio era um menino de 13 anos que estudava no colégio Cruzeiro do Sul de Porto Alegre, e ficou impactado não com o parágrafo que entraria para a história: Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. […] Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História. O pedaço de frase que Garcia pinça de memória é outro: … o povo, que agora se queda desamparado. Coisa de gaúcho.

Uma urgência física e intelectual parece tomar conta do embaixador Marcos Azambuja durante a entrevista sobre retórica e oratória brasileiras. Ele se ergue das profundezas do imenso sofá da sala do apartamento da Praia do Flamengo e se dirige a uma estante de livros. “Me acostumei a procurar textos no Google porque minha biblioteca se resume a duas prateleiras do meio. As mais baixas não alcanço porque não consigo mais me curvar e as mais altas não alcanço porque encolhi”, vai logo explicando. Ao alcance das mãos miúdas estão apenas os volumes que realmente são vitais para a sua sobrevivência. De uma só tacada, extrai o que procurava: o segundo volume das Obras Completas de Machado, em papel-bíblia, do qual consta o texto O Velho Senado. “É uma peça maravilhosa, uma das melhores crônicas políticas da história do Brasil”, explica, perdendo-se na leitura em voz alta das memórias de Machado sobre a oratória dos velhos senadores do Segundo Império: Zacarias fazia reviver o debate pelo sarcasmo e pela presteza a vigor dos golpes. Tinha a palavra cortante, fina e rápida. […]Quando se erguia, era quase certo que faria deitar sangue a alguém…

Azambuja aproveita para observar uma diferença gritante no gestual de palanque de brasileiros e americanos. “Todo presidente dos Estados Unidos usa o dedo – não é um dedo agressivo, é um dedo que aponta para alguém na plateia anônima, que individualiza a multidão e estabelece um contato inexistente”, explica o diplomata. “Já no Brasil o que funciona é a prática do dedo em riste, como se o orador falasse para alguma divindade. A retórica nacional é cadenciada de forma retumbante, de bater no peito e dizer ‘Porque eu…’. Na verdade, ela é bastante ordinária.” Por essas terras, só lhe ocorrem três oradores de talento notável: o gaúcho Leonel Brizola, o carioca Carlos Lacerda e o maior de todos, o baiano Rui Barbosa, “com sua retórica ao mesmo tempo empolada, redundante, pedante, gongórica, porém eloquente”.

Ghosts e speech-writers nasceram e floresceram no sistema presidencialista dos Estados Unidos. Do outro lado do Atlântico, em terras inglesas, a profissão nunca teve grandes perspectivas de alçar voo. O sistema de governo parlamentarista da Grã-Bretanha exige agilidade verbal instantânea de seus líderes. Na sabatina constante a que todo político britânico se submete na Câmara dos Comuns, um orador não duraria uma semana se não pensasse com a própria cabeça – e rápido. Impossível autor e tribuno não serem a mesma pessoa. Falar bem é um dos atributos da artilharia política, e carreiras se constroem no terçar de armas retóricas com o adversário. Winston Churchill, um dos mestres da arte, chegou a desmaiar na primeira vez em que subiu à tribuna para discursar.

A prosa de Churchill não jorrava fácil no papel. Segundo o seu secretário particular, John Martin, no período dos grandes discursos de guerra pronunciados na Câmara dos Comuns e transmitidos pelo rádio, Churchill investia cerca de uma hora para cada minuto de oratória – o que significa, para cada meia hora de fala, trinta horas de ditado, escrita, reescrita, ensaio em voz alta e polimento. (Certa vez, desculpou-se: “Peço perdão pelo tamanho do discurso que farei. Não tive tempo de escrever um mais breve.”) Tanta aplicação pouco lhe serviria caso não fosse o escritor e orador que foi.

Único estadista a receber o Nobel de Literatura, Churchill foi agraciado “por sua maestria nas descrições históricas e biográficas e por sua brilhante oratória em defesa dos valores da humanidade”, conforme explicou o comitê sueco em 1953. Não deixa de ser irônico que o orador mais vulcânico da era moderna tivesse a língua levemente presa, pronunciando a letra “s” como se fosse “ch”. Com sua voz anasalada, mesmerizava plateias até a última sílaba. Ninguém se dispersava enquanto não concluísse o discurso. Tinha a força da palavra, o domínio do verbo e a certeza da mensagem. A ideia de delegar essa ourivesaria a um assessor lhe seria ofensiva.

No caso do general Charles de Gaulle, a ofensa começaria pela ideia de contratar alguém cujo metiê é designado por um anglicismo. Como autor e ator do famoso L’Appel du 18 juin 1940, a convocação à resistência ao nazismo lançada a partir de um estúdio da bbc em Londres, De Gaulle também inovou na arte da oratória. Seu chamamento não foi um apelo à França como nação. Foi um discurso/diálogo, que exigiu uma resposta interior e individual de cada cidadão francês. O paroxismo da política, em suma.

James C. Humes, que serviu de redator para cinco ocupantes da Casa Branca, foi entrevistado recentemente pela National Public Radio de Nova York a propósito do lançamento de seu livro de memórias, Confissões de um Ghost-Writer da Casa Branca (inédito no Brasil). Até então, sua obra mais conhecida tinha a brevidade de parcas 26 palavras e fora escrita a seis mãos com outros dois craques do verbo que, como ele, trabalharam para Richard Nixon – William Safire e Pat Buchanan. Trata-se da inscrição que homenageia o pouso da cápsula Apollo 11 na Lua, no dia 20 de julho de 1969. Aqui homens do planeta Terra pisaram pela primeira vez na Lua, em julho de 1969 d.C. Viemos em paz em nome de toda a humanidade, diz a placa de aço inoxidável fincada no solo lunar pelos astronautas.

Na entrevista, Humes relembra que Ronald Reagan costumava dizer que 80% do que se chama liderança é resultado da capacidade de comunicação. “Não consigo imaginar como alguém possa pretender chegar ao poder sem a habilidade de vender e inspirar, que é a essência da comunicação”, assegurava o presidente. Talvez por isso, Humes tornou-se um requisitado professor de língua e liderança na Universidade do Colorado. De Dwight Eisenhower, seu primeiro chefe na Casa Branca, guarda lembranças pouco afetuosas: “Quem trabalhava com ele se sentia um soldado raso a serviço de um general de cinco estrelas. Eu tinha medo dele”, relembra aos 76 anos de idade. Tampouco esqueceu o comentário que lhe foi assoprado por Alice Roosevelt Longworth, a irrequieta filha mais velha do presidente Theodore Roosevelt, quando ele desembarcou em Washington, ainda calouro. “James”, cochichou a velha senhora, “em Washington, primeiro existe o poder; depois, uma camada abaixo, está a ilusão do poder; e por fim, há o acesso à ilusão do poder.” Pela narrativa do veterano escriba, a profissão de ghost-writer está coalhada de profissionais da terceira categoria.

Humes aprendeu que nem sempre presidentes gostam de ideias novas, pois elas podem desarrumar o que parece estar em ordem; sustenta que a maioria prefere que se recorra a conceitos simples, esculpidos de forma a ganharem a eloquência de ditos visionários e brilhantes. Franklin D. Roosevelt cairia do pedestal se tivesse falado “Não entrem em pânico”. Ao invés disso, entrou para a história com a frase criada para ele por Samuel Rosenman, juiz da Suprema Corte de Nova York: “Acredito profundamente, e disso quero assegurar-lhes, que a única coisa de que devemos temer é o próprio medo”. John F. Kennedy, no fundo, queria apenas dizer “sejam patriotas”, quando o inigualável ourives Theodore Sorensen compôs as dezenove palavras que até hoje são transmitidas de geração em geração: Não pergunte o que o país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país. E o esquálido repertório da oratória política brasileira seria ainda mais raquítico sem o eventual lustre retórico. Ninguém se lembraria de “Eu sou corajoso”. Autran Dourado pôs mãos à obra para que jk pudesse dizer: Deus poupou-me o sentimento do medo.

No fundo, diz Humes, o ghost-writer é uma espécie de esteticista. “Um esteticista não faz a tua esposa parecer mais bonita? Fazemos um pouco a mesma coisa – fazemos um presidente soar mais bonito.”

Como já disse um dos mais talentosos praticantes da arte, Arthur Larson, assessor de Einsenhower, o processo de feitura de um discurso presidencial pronunciado por quem irá implementar a política ali defendida se assemelha à montagem de um esqueleto de dinossauro a partir do fragmento de um osso. Em tese, basta uma única pista, uma só ideia real, para que o ghost-writer arregimente argumentos capazes de sustentá-la. Sem isso, na melhor das hipóteses, ele produzirá um lindíssimo discurso à procura de uma ideia, e não o inverso. Permanece implícita, ontem como hoje, a noção de que políticas e palavras devem se manter inextricavelmente unidas. No Brasil ou alhures, a história é um cemitério de presidências falidas por não terem conseguido honrar o que prometeram em seus discursos de posse. Como já dizia Walter Isaacson, o biógrafo de Henry Kissinger, o perigo de divorciar a retórica da política ronda todo presidente. Com ou sem ghost-writers.


04 de novembro de 2015
Dorrit Harazim

A XANGRILÁ DOS DESCONTENTES

Carta da Flórida
Cenas da comunidade brasileira em Miami


O movimento começou por volta da uma da tarde. Fazia um calor úmido, o sol estava a pino, a luz refletia no asfalto e nos arranha-céus espelhados. Homens, mulheres, jovens, crianças, idosos e até cachorrinhos usavam tons de verde e amarelo. Alguns agitavam bandeiras, outros erguiam cartazes escritos à mão, bebês seguravam balões. A profusão de , paus de selfie e celulares estrategicamente posicionados denotava um clima familiar, quase festivo. De longe, o grupo lembrava um esquenta pré-Copa do Mundo.

Na praça em frente à avenida arborizada por palmeiras, uma mulher bonita – de legging e camiseta preta – empunhava um megafone. “Vocês estão vendo o que está acontecendo no Brasil? O que estão falando no Facebook, nas redes sociais, na televisão?”, indagou à plateia de umas 100 pessoas. Uma delas gritou: “Censura!” E ela: “É! Mas aqui a gente pode falar! Lá, eles tentam esconder, abafar, mentir. Mas aqui é democracia! Estamos nos Estados Unidos”, disse. Houve palmas e assobios. “Vamos mostrar que quem está fora também se importa com o Brasil! Queremos um país melhor porque sabemos o que é um país melhor! Fora, Dilma! Fora, PT!”

Era o começo da tarde de 15 de março, data marcada para os protestos contra a presidente Dilma Rousseff tanto no Brasil como no exterior. Estávamos em frente ao Bayfront Park, em Miami, a maior cidade da Flórida, onde 92% da comunidade brasileira votou em Aécio Neves no segundo turno das eleições. Nenhuma outra cidade deu ao candidato tucano votação tão expressiva quanto à registrada nos Estados Unidos.

Ali estavam expatriados com visto de estudante, com visto permanente, sem visto; os que estão esperando o green card e os que nunca vão tê-lo; os que imigraram há trinta anos e os que acabaram de chegar; os que vieram de avião e os que atravessaram a fronteira a pé; os que produzem e os que só gastam; os que vão voltar para casa e os que nunca mais. Em comum, todos que adotaram a América e queriam Dilma Rousseff fora do governo já.

O segundo mandato da presidente contava apenas 75 dias e ela já amargava uma fase de cão. Uma pesquisa do Datafolha indicava que a aprovação do governo atingira 13%, o pior índice de um presidente da República desde a desvalorização do real, em 1999. Mais de 60% dos brasileiros consideravam o governo ruim ou péssimo. Naqueles dias, o dólar batera à porta dos 3,30 reais – a maior alta dos últimos doze anos –, as prisões da Operação Lava Jato seguiam a todo vapor e os rumores sobre o impeachment ganhavam corpo nos conchavos políticos.

A 7 mil quilômetros de distância, os brasileiros externavam suas queixas: contra a corrupção, o escândalo da Petrobras, a segurança, a saúde, a educação, a presidente, o Partido dos Trabalhadores, o ex-presidente Lula. Um homem de cavanhaque e camisa polo amarela brandia um cartaz duvidando da lisura das eleições: “Urna eletrônica real: Aécio 62% e Dilma 38%. Hackers contratados pelo Planalto fraudaram o resultado.” A seu lado, uma mulher pedia “intervenção militar já”. Ela balançava uma cartolina em que se lia: “Presidente Figueiredo tinha doze ministérios, negou a Copa do Mundo do Brasil por excesso de gastos. Era considerado ditador. Morreu pobre.”

O brasileiro de cavanhaque dizia ter cidadania americana. Pedi que me contasse sobre a fraude nas urnas. Ele explicou que o governo segurou o anúncio do resultado das eleições com a desculpa do horário de verão no Acre – uma história que havia corrido pelas redes sociais durante meses. “Foi para ganhar tempo e manipular os dados. O Aécio estava ganhando até a hora que começaram a apurar o Acre. Aí ela passou na frente”, disse, enfático. A acusação não teria ido adiante porque “a imprensa no Brasil é toda comprada”. “Mas aqui nós conseguimos denunciar.”

No extremo oposto da praça, uma mãe tentava capturar a imagem do filho com os amiguinhos à frente da turma canarinho. “Vamos tirar uma foto dos brasileirinhos do futuro”, disse, convocando outros pais. Uma mulher erguia um cartaz dizendo que era melhor lavar privada em Miami do que “viver na merda do Brasil”. Era uma resposta à imagem que na véspera havia sido publicada pelas redes sociais durante um ato a favor do PT, em São Paulo. Nela, um jovem aparecia com o pôster: “Odeia o Brasil? Vai lavar privada em Miami!”

A moça do megafone continuava: “Assim como eu, todos aqui fomos exilados. Seja pela violência, pela falta de oportunidade, pela corrupção. Cada um de nós tem uma razão para estar aqui hoje!” O motorista de um carro preto cruzou o protesto com a mão enfiada na buzina. Mais palmas. E a moça puxou o coro: “Dilma, no more!” Flagrei um casal comemorando a desvalorização do real. Comentavam entre si que os 200 dólares que mandavam para a família estavam valendo muito mais.

Nas horas que seguiram, bradou-se também contra fantasmas de tempos idos: comunismo, ditadura de esquerda, socialismo. Cuba, Venezuela, União Soviética e até a cor vermelha – tudo era evocado como num ritual de expiação. Com a ajuda da mãe, de boné com o logo da Seleção, um garotinho carregava um cartaz endereçado à presidente: “Nossa bandeira jamais será vermelha, sua anta vagabunda!”

Houve fotos em grupo, pintura de rosto com um risco verde e outro amarelo, hino nacional entoado a capela, bordões recitados em uníssono (“Lula cachaceiro, devolve meu dinheiro!”). Quando o sol começou a pinicar, a maioria se abrigou sob uma árvore frondosa. Às seis da tarde, o grupo se dispersou. De acordo com a organização, ao longo do dia 1 500pessoas passaram por lá. No Brasil, a grita contra o governo reuniu 1 milhão de pessoas em 160 cidades do país.

OMinistério das Relações Exteriores estima que haja entre 250 mil e 300 mil brasileiros vivendo na Flórida. O número é impreciso porque a imigração ilegal ainda é alta. De acordo com o Itamaraty, a comunidade brasileira é extensa, variada e dispersa. Só para se ter uma ideia, menos de 23 mil patrícios registraram-se para votar nas eleições. Uma pesquisa feita pelo consulado com 1 276 brasileiros – patrocinada pela Odebrecht, Banco do Brasil e Embraer – revela que a maioria dos imigrantes tem baixa escolaridade, trabalha como autônoma, ganha pouco e possui casa própria. Em torno de 25% deles são ilegais. “É uma amostragem restrita, mas outros dados apontam a diversidade da comunidade brasileira. Vai desde o trabalhador que veio ‘fazer a América’ até o empresário mais próspero”, disse o embaixador Hélio Ramos Filho, um sujeito falante e simpático, em seu gabinete decorado com obras de Romero Britto.

Esse contraste entre a Miami de praias, festas e imóveis de luxo com a Miami dos ilegais, dos operários, da mão de obra bruta seria, segundo o embaixador, único. Em comum, porém, o grupo acabaria apresentando algumas características. “É hoje uma comunidade de classe média, que se inteira de tudo sobre o Brasile mantém seus vínculos com o país: não acompanha a CNN, mas assiste ao Jornal Nacional, às novelas e ao futebol pelo pay-per-view”, afirmou.

Recentemente, estatísticas sobre a procura de imóveis por brasileiros na Flórida e o aumento dos pedidos de visto permanente passaram a corroborar a impressão de que Miami seria o destino final de uma novíssima diáspora: a dos indignados com o governo. Reportagens exaltando o estilo de vida local (“o Rio que deu certo”), os imóveis baratos (“valor de uma casa no Guarujá”), a segurança impecável (“dá para sair à noite sem medo”), as praias limpas ou as regras de trânsito seguidas à risca alimentaram o mito.

Durante a campanha eleitoral, Miami foi mencionada como rota de fuga caso o Partido dos Trabalhadores continuasse no poder. O cantor Lobão ameaçou se mudar, mas desistiu. Já o colunista Rodrigo Constantino, da revista Veja, fez as malas. “Nós vamos é para a Flórida mesmo, como tantos brasileiros decentes têm feito, cansados desse clima de subversão de valores em nossa sociedade, de doze anos ininterruptos de incompetência e roubalheira escancaradas sob a conivência de boa parte da população”, comunicou no final de fevereiro.

OApogee é o edifício mais cobiçado de Miami. Localizado na área nobre de Miami Beach chamada South of Fifth, é um quadrado envidraçado com varandas e uma vista espetacular para o oceano e a Fisher Island. Com 600 metros quadrados, pé-direito alto, cada unidade já vem com uma adega para 132 garrafas, o banheiro lembra um spa e há uma “cozinha de emergência” na suíte principal. Dos 68 apartamentos, 22 pertencem a brasileiros com bala para desembolsar cerca de 10 milhões de dólares pelo imóvel, e outros 15 mildólares de condomínio mensal.

Entre os proprietários, estão os paulistanos Cristiana e Marcos Machado. Outro condômino, o empresário João Carlos Camargo – dono da 89 FM e Nativa FM –, desfruta do imóvel nas férias. Ele transformou uma das garagens em uma adega adicional, uma das mais invejadas da cidade.

Morando em Miami há mais de trinta anos, Cris e Marcão – como são conhecidos – são os anfitriões da elite brasileira local. O Réveillon organizado por eles, que chega a contar com 300 convidados, reúne habitués de colunas sociais, como Kiki Garavaglia, Bebel Malzone e o chef José Hugo Celidônio. Em uma reportagem de 1992, eles já eram identificados como os “embaixadores brasileiros” na Flórida.

Na casa dos 50 anos, Cristiana é uma loiramignon que fala pausadamente. Filha de uma família de donos de cartório, ela e o marido, do ramo da construção civil, chegaram a Miami fugindo do governo Collor. Ao longo dos anos, fermentaram a fortuna graças aos infortúnios da natureza. Representante da cerâmica brasileira Eliane, Machado forneceu revestimentos para a maioria dos prédios arrasados pelos furacões que destruíram a cidade.

Em uma tarde de março, estávamos na sala de seu apartamento no Apogee, decorado com objetos de arte e uma tela enorme do artista plástico Juarez Machado. O cachorrinho Schmoop, um havanese cinza, corria de um lado para o outro. Um navio turístico cruzou a baía e tomou todas as janelas do apartamento. “Vamos lá ver que beleza”, Cristiana convidou. Na varanda, passou a apontar os edifícios e seus proprietários brasileiros: o Continuum, onde o publicitário Roberto Justus tem um apartamento de 2 mil metros quadrados; o Portofino, que acolhe o árbitro Arnaldo Cézar Coelho. No outro extremo da cidade, no Saint Regis, se refugiam os empresários João Dória e Carlos Alberto de Oliveira Andrade, o Caoa; o apresentador Faustão; o ex-ministro Walfrido dos Mares Guia. Corretora de imóveis na Cervera, Cristiana sabia de cor números, nomes e metragens. “Até porque o clima aqui é de cidade pequena, todo mundo se conhece”, comentou.

A vida do casal, ela contou, era animada, sempre com jantares, shows ou boates. “É o espírito de Miami. Aqui é como se fosse uma São Paulo com praia e onde tudo funciona”, explicou. A conversa enveredou para a política. Para ela, os brasileiros de Miami tiveram razão ao votar maciçamente em Aécio Neves. “Aqui nosso voto não é o da cesta básica. O PT só ganhou por causa do voto dos pobres”, disse. Perguntei se o voto da comunidade em Miami seria mais consciente. “Claro! Bem mais esclarecido do que o do pessoal que vive no Nordeste com Bolsa Família”, afirmou. Em sua avaliação, o que o governo fez foi uma “lavagem cerebral” entre os mais necessitados, condicionando o desempenho nas urnas à entrega de benefícios sociais. “Mesmo quem é mais pobre em Miami vê a diferença. Como as coisas aqui funcionam, escola pública, saúde; como o dinheiro dos impostos é usado para melhorias na comunidade.”

Enquanto conversávamos, a empregadada família, a paulista Gercília Santos, ofereceu café. “Conta para ela, Gê, como é sua vida”, sugeriu a patroa. Aos 51 anos, aparentando um pouco mais, Gercília trabalha com os Machado há vinte. Nesse período, comprou uma casa de 250 mil dólares, trouxe o filho, adquiriu um “carro excelente”, passou a frequentar academia de ginástica antes do trabalho. “Eu tenho passaporte americano e nem falo inglês”, disse. “Mas falo espanhol.”

Casada com um carioca que trabalha na construção civil, não pensa em voltar ao Brasil “nem a passeio”. Também tinha críticas contumazes ao governo, sobretudo no que diz respeito ao Bolsa Família, que chamou de “isca para votos”. Com um salário mensal de 3 500 dólares, ela trabalha quatro vezes por semana, cinco horas por dia. “Não é a praxe, mas ela está com a gente há vinte anos, então é da família”, disse Cristiana. Por lá, a média salarial de uma empregada disponível seis horas por dia varia entre 700 e 800 dólares por semana. “Quando no Brasil eu ia ter isso?”, indagou a doméstica.

Acidade de Miami é um retângulo na costa do sul da Flórida, de onde saem pontes que ligam o continente a Miami Beach – uma tripa de terra com 20 quilômetros de praias e temperatura amena o ano inteiro. O condado de Miami-Dade tem 2,6 milhões de habitantes, dos quais 65% sãolatinos – o que faz do espanhol a língua dominante nas ruas. Uma piada diz que um alemão chegou a Miami Beach e perguntou quem era americano. Do mar chegou-lhe um grito: “Yo, yo!”

Os brasileiros estão por toda a parte. “Eles procuram um lugar parecido com o local em que moram ou gostariam de morar no Brasil”, disse-me o mineiro Alan Araujo, corretor de imóveis da One Sotheby’s, cuja carteira de clientes tem quase metade de patrícios. Em analogias com Rio e São Paulo, é como se morar em Coral Gables fosse morar no Jardim Botânico; já Key Biscayne é tipo Angra; Sunny Isles é a Barra da Tijuca; Fisher Island é um condomínio chique na ilha da Gigoia; a engravatada Brickell é a Cidade Jardim; Miami Beach é o Leblon.

O turismo é o motor econômico da cidade. Quase tudo vem de fora, incluindo as palmeiras (Trinidad e Tobago), os flamingos e o aterro da areia da praia (Bahamas). Nos últimos tempos, Miami se converteu num enclave estratégico para empresas latino-americanas e é o segundo centro financeiro mais importante do país, só atrás de Nova York. Um levantamento da Universidade da Flórida mostrou que 1 300 multinacionais, entre bancos e empresas, estão instaladas na cidade. O porto é enorme e recebe 40% das exportações para a América Latina. Miami também aninha a indústria de entretenimento e mídia, sediando os escritórios dos principais canais de televisão latinos.

Em contraste com o mar cor de limonada, os arranha-céus radiantes, os neons que nunca apagam, salta aos olhos a Miami dos pobres, dos imigrantes ilegais, dos refugiados que fazem a cidade figurar entre as mais carentes dos Estados Unidos. Em 2012, a revista Forbes disse que, apesar de ser o centro financeiro latino, a cidade ocupava o primeiro lugar no ranking de pobreza no país. A vinte minutos de Miami Beach, Little Haiti é o bairro mais pobre, com uma paisagem degradada, mendigos, usuários de crack, filas perenes de distribuição de sopa e comida rápida de baixa qualidade. Em Little Havana, multiplicam-se os refugiados nicaraguenses, haitianos e jamaicanos.

Na área abastada, veem-se gruas e tapumes por todo lado, com uma trilha de som de britadeiras e o trânsito desviado por funcionários uniformizados. O aeroporto cresceu, construiu-se um metrô, há muitos lançamentos de condomínios de luxo. Pelo menos cinco arquitetos premiados com o Pritzker – o Nobel da arquitetura – têm obras espalhadas pela cidade.

Desde 2002, a Art Basel, uma das maiores feiras de artes plásticas do mundo, se transferiu para Miami, calando a fama de deserto cultural que se atribuía à cidade. Na onda, surgiram preciosidades como a New World Symphony, uma orquestra de jovens musicistas cuja sede fica num edifício projetado pelo arquiteto Frank Gehry, bem como o Pérez Art Museum, o PAMM, projeto de 220 milhões de dólares, parte doada por um mecenas cubano-argentino.

O grosso dos brasileiros, porém, passa ao largo da neófita vocação cultural da cidade. Embora 800 mil deles tenham desembarcado no ano passado, apenas 4 300 visitaram o museu. De acordo com Alexa Ferrara, relações-públicas do PAMM, os brasileiros somaram 14% do total de visitantes “A vocação de Miami é frívola, hedonista. Ainda é a cidade dos excessos, da mundanidade”, disse Anthony Maingot, professor da Universidade Internacional da Flórida e autor do livro Miami: A Cultural History. Por ter apenas 100 anos, uma população flutuante e forte migração, é um posto sem tradição ou hábitos arraigados. Não teria a nobreza cínica de Nova York, a frieza oficialesca de Washington ou a força cosmopolita de Chicago. “É ninho das celebridades, da moda, da droga, da festa, dos tipos mais estranhos. Está no DNA”, disse. Os teatros apresentam mais musicais da Broadway do que balés, óperas ou concertos. “Quando acaba a Art Basel, por exemplo, a cidade volta ao seu normal: festa, celebridades, moda, baladas”, comentou a diretora de Redação da revista Vogue, Daniela Falcão, que edita anualmente um número dedicado a Miami.

Um dos reis da locomotiva noturna na cidade é o carioca Beto Biscaia. Aos 46 anos, vive no exterior há quase trinta e é conhecido como o “prefeito de South Beach”. Qualquer brasileiro com um pé na grã-finagem tem o celular dele e manda mensagem para perguntar “qual é a boa” do momento.

Olhos verdes, pele bronzeada, cabelo meio bagunçado, Biscaia exibe no antebraço uma tatuagem com seu sobrenome. Ouve mais do que fala, e quando fala é simpático e gentil. Começou a carreira como modelo. Por anos foi o garoto-propaganda de uma marca de vermute, o que lhe valeu o apodo de “Homem Martíni”. Mudou-se para a Europa – Itália, França, Ibiza, Saint-Tropez –, onde transformou em negócio o pendor pela badalação. É um bem-sucedido promoter, relações-públicas e empresário da noite. No final do ano passado, reuniu 1 700 pessoas (“Noventa por cento brasileiros”, disse) numa festa de Réveillon cujo ingresso custava mil dólares para mulheres e 1 500 para homens.

“Ano-Novo aqui não tem tradição. Eu quero imprimir a cultura do show de fogos, pular ondinha, usar branco”, disse Biscaia numa tarde recente no calçadão da Lincoln Road, o Centro da cidade que não tem centro. Não é uma Croisette de Cannes, mas é onde turistas e locais se sentam para acompanhar o trottoir de Miami.

Estatísticas da prefeitura registram que um sábado típico atraia 15 mil pessoas aos oito quarteirões de lojas ao longo do calçadão. Pseudocelebridades, mulheres só de biquíni e salto alto, gays superproduzidos, famílias caretinhas e uma fauna de meia-idade. Em Miami, cinquentões e sessentões jamais serão rotulados como senhoras sem noção ou tios Sukita. Independentemente da idade, as brasileiras, sobretudo, usam roupas justas, shorts com salto alto, relógio dourado bem grande e cultivam o comprimento do cabelo bem abaixo dos ombros. Os homens, não importa de que geração, estão sempre bronzeados, deixam uns três botões da camisa abertos e saem à noite com chinelos de grife. Percebe-se sem esforço a mãozinha da medicina estética estampada em faces e corpos.

“Aqui o top é ficar no Segafredo”, disse Beto Biscaia, guiando-nos para uma mesa com ombrelone. O ambiente da franquia italiana de café era simplório. “Segredo de bar e restaurante é ver e ser visto”, ele disse. “Aqui é o melhor lugar. É igual a balada: tudo depende de quem você põe na mesa de quem.”

Estava acompanhado do sócio, o paulista Marcelo Goulart, e de mais duas meninas, jovens e bonitas, que estudavam inglês na cidade. Uma delas contou que o desafio era não cair na noitada diariamente. Entre os brasileiros, a agenda social é bem definida. Segunda é dia de folga; terça, de balada no Favela Chic; quarta é no Bâoli, na festa “My Boyfriend is Out of Town”; quinta no Bagatelle; sexta na Myntlouge; e nos fins de semana há oferta variada, mas o brunch do Seaspice seguido de dança é disputado. Os atuais restaurantes da moda são o oriental Zuma, o asiático Juvia e o italiano Casa Tua. Todas as vezes em que os visitei, estavam coalhados de conterrâneos.

Biscaia se estabeleceu em Miami há quinze anos. Há pouco tempo, ampliou os negócios de promoção de festas e baladas montando a Concept ID, uma empresa que oferece um amplo pacote de facilidades focado para brasileiros de passagem ou residentes. Há um pouco de tudo: de indicações de imóveis a reservas em restaurantes. “É uma espécie de concierge high end”, explicou. Por uma anuidade que varia entre 5 mil e 20 mil dólares, o cliente tem o apartamento faxinado, a geladeira abastecida antes de sua chegada, garantia de reservas de restaurantes e boates. E mais: o serviço inclui o que chamou de “vender experiências”. Dar o que o cara não pode comprar – ir à casa do Emerson Fittipaldi, por exemplo, e dirigir com ele. Ou descolar uma pool party no recém-inaugurado The One, em South Beach. “O tipo de balada que todo mundo da cidade vai ficar sabendo, mas só poucos vão poder entrar.” Quase 100 brasileiros já assinavam o serviço.

Na nossa mesa, sentou-se Elo, uma celebridade inglesa conhecida só por esse nome, dono do London Motor Museum – que reúne carros raros de todos os tipos e épocas. Negro, rastafári, vestido com um moletom com capuz, ele conversava animadamente com um sujeito que havia inventado um joystick para comandar um carrinho de golfe. Biscaia cochichou: “Esse é o cara que tem grana, mas não parece. É o cara. Top. Supercool”, disse.

Perguntei se os brasileiros de Miami eram cool. “Depende”, disse. Para ele, discrição não era a palavra exata para definir o morador de Miami nem a maioria dos turistas. “Quem é cool não quer ser o Rei do Camarote.” Além disso, o brasileiro mantém alguns vícios, como tentar entrar sem pagar, molhando a mão do porteiro ou por se julgar vip. “Mas com o tempo ele vê que isso não rola aqui.” Uma nova moda entre os brasileiros, ele contou, é curar a ressaca com injeções de plasma, conhecidas como Recovery. E me forneceu o contato do dono do negócio, um ex-empresário da noite recém-liberado da prisão, onde cumpriu pena por assassinato.

Às oito e meia da manhã, na casa de Myrna Monteiro de Carvalho Domit, em Miami Beach, o movimento de crianças e empregados era intenso. A jornalista e herdeira do Grupo Monteiro Aranha ocupa uma ampla casa com os dois filhos e o marido, o libanês Souheil Salloum – dono de uma fábrica de cabos de aço –, que também já viveu no Brasil. O casal, que poderia morar em qualquer lugar do mundo, estava satisfeito com Miami pela tranquilidade e facilidade do cotidiano.

Sentado na varanda, que dá para um píer onde um barco está ancorado, Salloum discorria sobre os brasileiros na cidade. “Só andam em tribo, como no Brasil. Saem, viajam, almoçam juntos. Não se interessam em se integrar à sociedade americana, não têm amigos americanos. São habitués dos mesmos lugares, querem que o garçom os reconheça”, disse.

Além de frequentarem as mesmas baladas, quando vão à praia os conterrâneos também se concentram num mesmo trecho de areia, na altura da rua 3, em Miami Beach. Ali, jogam frescobol e futevôlei, bebem cerveja gelada. É um dos poucos lugares em que se veem homens de sunga e não de bermuda de tactel até o joelho.

A experiência de ir à praia em Miami é como estar num resort particular – o que agrada a maioria dos brasileiros em busca de mordomia. “A areia é de rico, não gruda no pé”, me disse uma vez, em tom de troça, o empresário carioca Paulo Marinho, proprietário de um apartamento de mil metros quadrados em Fisher Island, aonde só se chega de balsa ou lancha. Nos longos trechos de areia branca, não há vendedores, pedintes, camelôs ou cachorros. “Mas VIP não vai à praia. Sai de barco, ancora em algum lugar e fica por lá”, esclareceu Marinho.

Entre os brasileiros a tendência é contratar os serviços de umbeach butler, um mordomo de praia. No verão passado, entraram para os anais de Sunny Isles as férias do lobista Milton Lyra, ligado ao PMDB. Uma enorme barraca branca foi montada na areia, serviu-se à farta caviar, foie gras e champanhe. Do mar, Lyra chamava o mordomo Juan, que, com água até o peito e equilibrando uma bandeja, aplacava a sede do anfitrião com champanhe em copos de plástico.

“Há um certo provincianismo”, continuou Souheil Salloum. Ele acredita que em Miami a elite brasileira se livra das amarras que a prendem no Brasil: lá eles ostentam, gastam, esbanjam sem pudor. Outro traço paroquial é cultivar a rivalidade Rio e São Paulo. Ouvi de alguns paulistas que os cariocas exageravam na informalidade. “O cara vai para o Zuma com a camisa do Flamengo e havaianas. Não dá, né?”, me disse uma moça. Para os cariocas, o paulistano de Miami é risível: toma banho ou se maquia antes de ir à praia.

A vizinhança, mais do que as facilidades do empreendimento, é decisiva para a compra de imóveis. “As tribos vão se seguindo. Onde o Victor Malzoni comprou? Aí, vai um pessoal atrás. Onde o fulano comprou? Aí, vai outro. A classe média-alta segue a alta, a média segue a média-alta, a baixa segue a média-baixa, e assim Miami vai se povoando de brasileiros”, explicou o libanês.

Salloum mora na cidade há 24 anos, ao longo dos quais acabou por criar uma teoria própria a respeito da atração dos brasileiros pelo local. “Aqui tem o que paulista adora: shopping. E o que carioca adora: praia. Eles falam de segurança, facilidades, mas isso tem em qualquer país desenvolvido. A diferença é que aqui você não precisa falar inglês”, disse. Como se contasse um segredo, emendou: “E você sabe que a elite brasileira não fala inglês.”

Myrna trouxe café e o assunto se encaminhou para os protestos contra o governo de Dilma Rousseff. “O Lula vai voltar, claro. A elite ganhou muito dinheiro com ele”, comentou Salloum. Ao contrário da maioria de seus amigos, ele tem uma visão particular dos protestos. “Quando o Lula estava no poder, a China bombando, a economia bombando, exportando commodities a valer, ninguém reclamava. Agora, a economia dá uma freada e tudo vira só roubalheira”, concluiu. “O mais louco desse país é eleger a Dilma no meio de um escândalo desses. O Brasil não tem jeito, não.”

Dois dias depois do encontro com Beto Biscaia na Lincoln Road, ele me chamou para conhecer a noite. Como era quinta, a melhor balada era a do Bagatelle, onde um grupo de italianos o esperava. Do lado de fora, parecia um restaurante normal, mas quando a porta se abriu me senti numa das festas loucas de Jep Gambardella, o jornalista com a melhor vida do mundo, retratado no filme A Grande Beleza. Mulheres loiras e magras com microvestidos e salto agulha dançavam em cima dos sofás. Homens de blazer e pele tostada sacolejavam os corpos em meio a garçons que transitavam com bandejas de champanhe, relativamente estáveis graças aos braços esticados até o teto. A faixa etária ia dos 18 aos 70 anos, a música era bate-estaca, altíssima. Os clientes gritavam “uhuuu”, assobiavam com dois dedos na boca, outros dançavam em grupos, aos pulos. Empoleirada num sofá, uma morena levantava a saia, deixando a calcinha preta à mostra. Ainda em pé na porta, Biscaia virou-se para mim, deu um sorriso e disse: “Bem-vinda a Miami.”

Sentamos à mesa do designer italiano Antonello Radi, cuja família produz há séculos o papel das Bíblias do Vaticano. Os sete convivas comiam, balançavam os ombros sentados na cadeira, ordenavam o vai e vem de garrafas de champanhe e vinho branco datilografando o ar em direção ao garçom. Ao meu lado, um sujeito de topete se abaixou e, com a cabeça sob a mesa, fungou algo de um cilindro azul, ergueu a coluna num estalo e saiu dançando na pista. Era um êxtase coletivo no qual cada um tinha sua própria agenda: ninguém conversava com ninguém, dançava-se sozinho, ninguém se beijava.

Um brasileiro comentou: “Paulista vem aqui, vê isso e faz igualzinho lá”, disse. De fato, num restaurante homônimo nos Jardins, eu já havia presenciado a mesma cena, com um pouco mais de comedimento: loiras em pé no sofá, champanhe sorvida no gargalo, a arvorezinha nos copinhos de tequila, um foguinho emanando do espumante, os gritinhos de “uhuuu”.

De lá, fomos a mais duas boates. Em cada uma delas meu cicerone cumprimentava o leão de chácara pelo nome, colocava todo mundo para dentro e providenciava bebida de graça. Ele próprio não bebia, pouco dançava, sempre de olho no celular. A maratona, Biscaia me disse depois, só foi acabar às cinco da manhã. No dia seguinte começaria tudo de novo.

Até meados do século XIX, a Flórida esteve sob o domínio espanhol. Era uma extensa área agrícola, na qual escravos plantavam limão, cana-de-açúcar e soja. Miami foi a única grande cidade americana fundada por uma mulher – a fazendeira Julia Tuttle convenceu um magnata das ferrovias a construir uma estrada de ferro que cruzasse suas terras, e esse foi o pontapé inicial para o desenvolvimento local. Pântanos foram drenados, canais aterrados, vieram bancos, empreendimentos imobiliários, o comércio em geral.

Ainda no começo do século XX, Miami já dava sinais de sua vocação turística. Antes que existisse o conceito de resort de luxo, o empresário Henry M. Flagler ergueu o suntuoso Royal Palm Hotel, que atraiu famílias milionárias como os Rockefeller, os Carnegie e os Vanderbilt. Em pouco tempo a cidade tinha arranha-céus, centros comerciais, joias arquitetônicas de inspiração mediterrânea e mansões que mais pareciam palácios, como a Villa Vizcaya – hoje um museu e cenário de locação de filmes.

A Grande Depressão e um furacão demolidor afastaram os turistas, mas a Segunda Guerra Mundial trouxe de volta o movimento de centenas de soldados instalados nas bases de treinamento à beira-mar. Ao fim do conflito, muitos veteranos resolveram se estabelecer por lá. Houve uma explosão no consumo e no turismo, e uma grande expansão do subúrbio. Mas foi a partir de 1959 – quando Fidel Castro tomou o governo cubano – que Miami começou a mudar de cara. A apenas 170 quilômetros da Flórida, Cuba povoou Miami. Só nos primeiros quinze anos do governo castrista, estima-se que 500 mil cubanos tenham se mudado para a cidade. A lei do solo, que diz que o cubano que conseguir pisar em terra firme americana se torna americano, era o maior atrativo para os refugiados. Até hoje os cubanos representam quase metade da população local.

No começo dos anos 80, Miami, como muitas outras cidades americanas, passou a sofrer com a violência e a alta taxa de criminalidade. Tornou-se um destino de muambeiros, traficantes, aposentados de classe baixa e refugiados. A taxa de homicídios triplicada fez dela a cidade mais violenta dos Estados Unidos. Hotéis faliram, a violência descontrolada levou os turistas a migrar para a Disney e o Caribe. Nessa época, a revista Timepublicou uma reportagem de capa sobre Miami sob o título “Paraíso Perdido”.

O principal problema era o tráfico de entorpecentes. No documentário Cocaine Cowboys, lançado em 2006, o diretor Billy Corben mostra como a cidade se tornou a capital da droga no país e o tráfico deixou marcas profundas na sociedade. Embora seja relevante o papel dos imigrantes na distribuição das drogas, fica evidente que os principais atores da calamidade eram os empresários locais. Para se ter uma ideia, naquela época só o cartel de Medellín movimentava 20 bilhões de dólares por ano em Miami.

A droga vinha das Bahamas em lanchas voadeiras que aportavam tranquilamente em Key Biscayne ou Coral Gables. Miami era o ponto de partida e de chegada do pó, além de uma grande lavanderia de dinheiro. Os bancos na Flórida tinham mais grana do que qualquer outro lugar nos Estados Unidos. A farra da cocaína coincidiu com o boom imobiliário: construções art déco dilapidadas eram reformadas, ruas abandonadas eram reconstruídas. O documentário mostra como os espigões, condomínios e torres de escritórios da avenida Brickell, por exemplo, foram erguidos graças à lavagem de dinheiro. Miami era uma Casablanca subtropical, uma Detroit com praia. Não foi à toa que a emissora NBC lançou o seriado Miami Vice. A cidade era o epítome do crime, da polícia corrupta, da população desenganada.

No começo dos anos 90, Miami começou a chamar a atenção dos brasileiros. Até então era o destino dos imigrantes ilegais que vinham em massa de Governador Valadares e chegavam em bandos pouco escolarizados. Também era local de baldeação para os turistas cujo destino era a Disney. Foi durante o governo Fernando Collor de Mello que o balneário ganhou ares, digamos, glamorosos, com a turma da Casa da Dinda torrando dinheiro em festas e compras.

Nesse momento, fugindo da violência no Brasil, a carioca Claudia Dunin se mudou para Key Biscayne com seu então marido, um próspero empresário do ramo imobiliário. “Ainda assim, Miami era melhor do que o Brasil. O AbílioDiniz tinha sido sequestrado, meu irmão tinha sofrido um assalto, não dava mais”, lembrou. A cidade era um balneário latino, cafona e muito acanhado, “uma espécie de São José dos Campos”, ela disse durante um almoço no Design District, o bairro das galerias de arte. “Não havia restaurante, era um saco, era uma coisa cubana, mas meu marido gostava porque era tranquila e tinha praia.”

Então as agências de modelos, fotógrafos e celebridades descobriram aquela paisagem que, com a fama de gozar da “luz natural mais pura do mundo”, se tornou o cenário preferido de campanhas publicitárias e ensaios de moda. E os gays e seu pink money foram fundamentais para a reinvenção da cidade. “Virou uma festa. Você ia a um restaurante, sentava do lado do Gianni Versace. Ia a uma boate e cruzava com a Madonna, o Sylvester Stallone, o Mickey Rourke. Era festa todo dia, muita loucura, muita droga, muito excesso. A São José dos Campos estava ficando cool”, ela disse, dando uma gargalhada.

No início dos anos 2000, o problema da violência ainda era grave – assalto a turistas, assassinato de civis pela polícia, insegurança nas ruas. Armou-se uma estratégia nacional de recuperação das políticas de tolerância zero e de investigação policial de primeira linha. “Quando começou a melhorar, o povão descobriu Miami e virou carne de vaca”, disse a carioca.

Miami sempre acompanhou os altos e baixos das economias latino-americanas. Peso desvalorizado? Uma onda de argentinos. Fujimori no poder?Uma leva de peruanos. Foi assim com os venezuelanos e Hugo Chávez, com os equatorianos e Rafael Correa, com os colombianos fugindo das Farcs. “Agora estão dizendo que é a onda Dilma”, ela comentou, com sarcasmo. Quando a presidente foi reeleita, Claudia Dunin mandou mensagens de pêsames para os amigos e familiares no Brasil.

Responsável pela página “Brasileiros na Flórida” no Facebook, que tem 13 mil seguidores, o paulistano Bruno Contipelli foi um dos organizadores do protesto em Miami. Aos 52 anos, ele tem pele de ruivo, cabelo esbranquiçado e um tom de voz efusivo. Desembarcou na cidade há dezesseis anos, depois de ter “quebrado duas vezes no Brasil”. A família era dona de três cantinas italianas no Bexiga e ele tinha uma empresa de informática. Vendeu o carro, juntou 5 mil dólares e chegou com visto de turista, sem falar inglês. Lavou prato, foi ajudante de cozinha, cozinheiro, fez frete. Hoje revende carros usados e faz bicos de motorista no serviço de táxi privado Uber. Casou-se por conveniência e conseguiu documentos americanos. No ano passado recebeu o green card.

Na rua Flagler, no Centro de Miami, não havia movimento algum. Como era sábado, com as lojas e escritórios fechados, avistavam-se apenas mendigos, prostitutas e drogados. Contipelli se disse preocupado com os rumos do país. No caso, falava do Brasil. Uma fração de brasileiros estaria sendo influenciada pela propaganda governista, sobretudo contra quem foi ganhar a vida em Miami. “Falam que aqui só tem coxinha, que é elite. Quem está aqui é porque ralou muito e por isso mesmo não suporta ver essa sacanagem toda no Brasil”, disse. Ele sacou o celular do bolso e mostrou a foto do sujeito com o cartaz que fazia menção a lavar privada. “Aqui uma senhora faz duas faxinas por dia e fatura 300 dólares. Esse idiota ganha isso em um mês? Duvido”, disse.

No centro do problema estariam as relações do governo brasileiro com países como Cuba e Venezuela. “O PT faz obra em Cuba, pelo amor de Deus!”, disse, com revolta. “Tem governo de esquerda, eles põem dinheiro e os brasileiros pagando. Isso é um escândalo.” Com uma filha adolescente vivendo no Brasil, ele se disse estarrecido com a “doutrinação” que estaria acontecendo nas escolas. “Professor de história e geografia é tudo de esquerda. Ensinam que Cuba é o máximo, que é o paraíso. Aqui você aprende sobre a verdadeira Cuba”, falou.

Vidrado nas redes sociais e na internet, ele contou que lia com lupa as notícias sobre o país. “Para aprovar a ‘lei dos transgênicos’, o doutor José Dirceu embolsou muito dinheiro da Monsanto”, disse. Pedi que explicasse melhor. O governo não aprovava nada, ele disse, “se não tivesse uma contrapartida em dinheiro”. E arrematou, sem mais: “E o José Dirceu era o ministro da Casa Civil.” Semanas depois, eu o contatei para dizer que não havia achado nada sobre o caso na internet, só rumores. Ele me respondeu por torpedo: “Esse pessoal não deixa rastros.” A seguir, disse que o resultado era que mais de 90% da soja plantada no Brasil hoje era transgênica, o que teria beneficiado a Monsanto. “Se não rolou muita grana nisso, eu corto meu saco”, escreveu.

Nos últimos cinco anos, os brasileiros lideraram a aquisição de imóveis de mais de 1 milhão de reais em Miami, bem como os da faixa entre 300 mil e 500 mil dólares – preço do apartamento comprado pelo ex-ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal.

O estouro da bolha imobiliária de 2008 fez os preços dos imóveis despencarem em média 40%, e os brasileiros fizeram a festa. “O lulismo foi a época de ouro de Miami. O dólar a 1 real e oitenta, a perspectiva da riqueza do pré-sal, Brasil na capa da Economist, todo mundo se achando rico”, comentou a carioca Claudia Dunin. Um levantamento da Miami Association of Realtors revelou que quase 80% dos brasileiros pagam o imóvel à vista. Em Miami, os negócios são bem diferentes do resto dos Estados Unidos. Enquanto 70% dos americanos financiam suas casas, apenas 20% das transações imobiliárias na Flórida envolvem hipotecas. A disponibilidade de negociar em cash sempre levanta rumores. Nos Estados Unidos, os bancos são obrigados a denunciar ao Tesouro se desconfiam de atividades econômicas suspeitas, como transferências de dinheiro. A regra não serve para corretores de imóveis, vendedores de jatinhos ou iates de luxo.

No estrato de imóveis de luxo, a presença de latinos, sobretudo brasileiros, mexeu com a cabeça dos arquitetos e produziu “uma jabuticaba” nas novas edificações: apartamentos com quarto de empregada. Eles são diferentes do que nos Estados Unidos se conhece por DEN: um cômodo sem suíte ou janelas usado como depósito. O quarto de empregada, que costuma abrigar a caixa de luz de todo o apartamento e tampouco recebe luz natural, tem banheiro contíguo.

Em uma tarde, visitei uma unidade no 4º andar do Oceana Key Biscayne, com 379 metros quadrados, no valor de 6,7 milhões de dólares (a do 9º andar custava 8,6 milhões). O prédio é como um resort, com varandas de frente para o mar, piscinas, restaurantes, academias de ginástica. “Você mora aqui e não precisa sair daqui”, disse o carioca Marcelo Agostini, sócio da imobiliária AG Real Estate Advisors. Outro requisito dos brasileiros é privacidade. Ainda há um estranhamento com a cozinha americana. “Brasileiro frita bife e não gosta de empregada ouvindo a conversa”, afirmou Agostini. Garagem também é uma necessidade. “Aqui, os ricos brasileiros podem ter carros incríveis a preços acessíveis, então dispor de várias vagas é uma pré-condição.” Há edifícios com serviços de mordomo para desfazer a mala, passeador de cachorro, concierge para reservas em restaurantes – tudo incluído no condomínio, cuja taxa mensal gira em torno de 10 mil dólares. E o que mais distingue o comprador brasileiro? “Ele pechincha”, disse.

“Eu morria de preconceito. Achava Miami coisa de sacoleiro, brasileirada de outlet. Eu tinha casa em Paris – e posso falar porque tudo meu é declarado. Vendi naavenue Montaigne e comprei aqui. Miami é hoje a melhor cidade do Brasil”, disse o empresário e ex-deputado Ricardo Rique, ao volante de seu Bentley com estofado em couro e painel de madeira. Ele acelerou e foi repreendido pelas passageiras. “Mas de que adianta ter um Bentley e não poder correr? Então pelo menos vamos baixar a capota. Para que eu tenho carro conversível?” Dois toques no painel e a capota se abriu. “Estamos em Miami! Aqui eu posso, porra!”, falou rindo, com os cabelos já ao vento. Essa é uma das frases mais ouvidas em Miami: “Aqui eu posso.” Era o maior atrativo da cidade: mostrar a joia, o carro, o apartamento, o vinho – todos os sinais de pretenso status social. Quis saber qual carro ele usa no Rio, onde mora. “Tudo blindado. Eu, com um desses lá, já estava com um revólver apontado na minha cabeça.”

Neófito de Miami, Rique é um incansável desbravador de restaurantes, festas e boates, nos quais se encontra sempre com amigos brasileiros. “Isso aqui é uma comunidade mesmo. Em vez de estar no Rio, estamos aqui, onde é tudo mais limpo, bonito e organizado”, disse. Ao chegar, contratou os serviços de concierge de Beto Biscaia. “Ele coloca na sua mesa as mulheres mais lindas de Miami. De qualquer nacionalidade. Ele conhece todo mundo, é craque”, explicou Rique, desvendando particularidades dos serviços oferecidos pelo promoter que me eram desconhecidas. “E tem uma participação já combinada com a boate, ganha um tanto de tudo que for consumido na mesa que ele providenciou.”

ABrazilFoundation é uma organização sem fins lucrativos que promove ações e investe em projetos sociais no Brasil. Mas também é onde se encontra a elite brasileira em Miami. Em janeiro, seu Baile de Gala arrecadou 525 mil dólares em doações. Uma das diretoras da entidade é a pernambucana Maria Carolina Tavares de Mello, que lembra a modelo Fernanda Tavares, mas em versão miniatura. “A elite brasileira não tem o hábito da filantropia, como os americanos”, disse num início de noite de março. “Tentamos implantar essa mentalidade aqui.”

Estávamos no coquetel da BrazilFoundation, no pátio de um centro comercial de luxo no Design District. Uma banda tocava ritmos latinos, havia um bar com vinhos branco e tinto, garçons circulavam com bandejas de microporções de comida salgada. O figurino do público, basicamente feminino, era homogêneo: vestidos justos, curtos, salto alto, cabelo liso, clutches numa mão e tacinha de vinho na outra. Poderia ser um evento no átrio do Shopping JK, em São Paulo. “Quando você mora aqui, fica ainda mais revoltado toda vez que volta ao Brasil”, disse Carolina Mello. “Aqui é melhor para todas as classes sociais”, falou. Ela contou que tinha uma empregada, casada com um cubano, que relatava o inferno na ilha de Fidel. “Ele levava mala de comida, eles não tomam café da manhã, fazem apenas uma refeição por dia. Os cunhados são formados em engenharia e ele tem que providenciar até papel higiênico”, contou. A ojeriza ao governo do PT veio logo à tona. “A amizade que a Dilma tem com Fidel, o dinheiro que põem lá, tudo isso é inadmissível”, afirmou.

Aproximou-se do grupo a vice-presidente de um banco francês, a brasileira Vivian Giuliani. “Vejo o país caminhando para se tornar uma Venezuela. Não temos esperança de mudança”, comentou. O mercado ainda estaria inseguro, mesmo depois da nomeação de Joaquim Levy para a Fazenda. Recentemente, ela assistiu a uma palestra do ministro para investidores em Nova York. “Ele ficou elogiando e fazendo propaganda do governo. A plateia esperava alguma coisa diferente, uma autocrítica, foi meio decepcionante.”

Maria Carolina Mello subiu ao palco e fez um discurso de agradecimento, em inglês, aos patrocinadores e convidados. Ao meu lado, o maquiador César Ferrete estava absorto numa ligação que parecia interminável. Vestido com calça de couro e blazer, ele é responsável pelo visual de celebridades brasileiras de passagem por Miami, como Juliana Paes, Adriane Galisteu e Wanessa Camargo. Há dois anos, largou um emprego de maquiador da Lancôme no Rio Grande do Norte e se aventurou na Flórida.

Quando desligou, ele deu uma ligeira bufada. “Brasileiro é dose.” Tinha acabado de falar com uma cliente sua no Brasil, uma noiva que se casaria em Miami dali a algumas semanas. “Sabe que agora Miami virou wedding destination, né?”, disse. Os noivos arcariam com todas as despesas dos convidados – avião fretado, hotel e, naturalmente, a festa. “E ela me liga para dizer que meu preço está caro, pode?”

Em outra rodinha, reinava a corretora de imóveis Rejane de Paula. Alta, magra, vestindo um Missoni colorido, a mineira está há dez anos em Miami e integra um time de centenas de patrícios que trabalham no mercado imobiliário. Ela, no entanto, se destaca de seus pares. No ano passado, vendeu, sozinha, 110 milhões de dólares. Um cálculo rápido, considerando a comissão em torno dos 4%, resulta num faturamento de 4,4 milhões de dólares. Metade de seus clientes era composta de brasileiros. “Essa coisa de brasileiro invadindo Miami acabou. Com o dólar do jeito que está, quem comprou, comprou”, disse.

Segundo a corretora, “atualmente quem está de fato comprando ou se mudando é quem já está dolarizado há muito tempo, quem fez esse câmbio lá atrás e ganhou dinheiro. Não é a classe média que comprou o apartamento de 300 mil, fundos”, pontificou. Ela disse que a desvalorização do real complicou a vida da classe média que se esbaldou quando o dólar estava baixo. E agora, como arcar com os custos de condomínio e IPTU, que em Miami recaem sobre o proprietário, não sobre o inquilino? Uma nova fase de negócios estaria começando a desabrochar no horizonte de brasileiros incautos: a revenda dos apartamentos. “Uma coisa é você comprar com o câmbio bom, outra é pagar 5 mil dólares de condomínio com câmbio ruim.”

No coquetel, ela distribuía conselhos imobiliários aos presentes – como a hora certa de comprar e de vender. Os dolarizados também estavam em outro momento: passaram a investir em prédios, galpões, terrenos. O retorno era de 7%. Foi o caso, por exemplo, da família Géo, dona da construtora AGR, de Belo Horizonte, que arrematou um prédio comercial inteiro na avenida Brickell por 140 milhões de dólares. “Esse é o negócio que o brasileiro está fazendo agora em Miami. O resto é peanuts”, disse Rejane. Alguém comentou como era possível ter tanto brasileiro por lá com dinheiro vivo. Ela brincou: “Eu também não sei. Esse pessoal fala de 300 milhões como se fossem 10 reais! É incrível!”

Naquele dia, ela havia mostrado ao paulistano Marcelo – que estava no coquetel e não quis dar o sobrenome – duas casas, uma delas avaliada em 6 milhões de dólares. “Eu quero tudo que não tenho mais em São Paulo: água, casa sem portão e trânsito livre”, ele me disse. Em sua avaliação, o Brasil ficou inviável. Contou ter sido assaltadodentro do laboratório Fleury, às dez da manhã. “Aí, esse pessoal fica falando de taxar fortunas para resolver o país. O que resolve é não desviar 2 bilhões da Petrobras”, disse.

Ele se afastou para buscar bebida e quando voltou prosseguiu seu argumento: “Olha esse Haddad dando bolsa-travesti. Isso é só para competir com a Marta, porque os gays votam nela”, comentou. Ele se referia ao projeto Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo, que, em troca de frequência às aulas, daria 840 reais a 100 travestis e transexuais. Nas próximas eleições, Fernando Haddad deve disputar a reeleição contra a senadora Marta Suplicy, que deixou o PT.

Oescritório de advocacia Kravitz & Guerra ocupa meio andar de um prédio de luxo. É ali que muitos brasileiros se aconselham e contratam os serviços de consultoria imigratória da advogada Genilde Guerra – uma loira magra e alta, olhos azul-piscina, cintura de Barbie, Rolex de ouro no pulso e anéis de brilhantes nos dedos.

Radicada na cidade há trinta anos, formou-se em direito pela Universidade de Miami e é diplomada por Oxford, na Inglaterra. Socialite local, é amiga do rei Albert, de Mônaco, de xeques árabes e políticos americanos. Mais da metade de sua clientela é de brasileiros, que chegam a pagar 25 mil dólares por um visto de residência no país.

Em uma manhã de março, ela falava sobre a procura por vistos de residência – há mais de quarenta tipos nos Estados Unidos. “Conseguir um visto é fácil, o difícil é saber qual é o certo para cada pessoa”, disse. No ano passado, 47 brasileiros entraram com pedido do visto EB-5, que exige do postulante um investimento de 500 mil dólares em um projeto pré-aprovado nos Estados Unidos e que ele dê trabalho a, no mínimo, dez pessoas. “É o visto da classe média-alta”, comentou. “Rico mesmo não quer esse, porque tem muito imposto. Rico sonha com o E-2, que é de investidor, mas não é aplicável a brasileiros. Esse tem um excelente planejamento tributário.”

Executivos que tocavam alguma subsidiária de empresa brasileira no país preferiam o L-1, enquanto o O-1era ideal para chefs de cozinha. Já o F-1, de estudante, era usado indiscriminadamente. “Não tem que pagar imposto nem declarar imposto de renda”, comentou Genilde. O ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, passou anos com o visto de estudante da mulher. “O que mais tem é isso. Gente que fica vinte anos matriculada numa escola”, disse.

Para a advogada, como Miami carecia de trabalho braçal e especializado, valiam ouro “qualquer mecânico, enfermeiro”. Na burocracia da imigração, porém, os mais prejudicados eram sempre os brasileiros de baixo poder aquisitivo. A travessia da fronteira pelas mãos dos coiotes, como são conhecidos aqueles que transportam ilegalmente os imigrantes, ainda era recorrente, além de perigosa. O casamento arranjado, frequente, raspava as economias dos imigrantes – a tarifa atual oscila entre 15 mil e 30 mil reais.

A lei de imigração apresentada pelo governo de Barack Obama tampouco dava sinais de facilitar o processo. Pela proposta, imigrantes com filhos nascidos no país poderiam solicitar o visto permanente, mas o Congresso a vetou. “Obama quis jogar para a plateia. Essa lei nunca vai passar porque ela é, de fato, cheia de ilegalidades”, comentou a advogada.

Distante uma hora de Miami, Pompano Beach é a cidade da Flórida com a maior concentração de brasileiros, que somam quase 30% da população. Letreiros de padarias, farmácias e mercados são escritos em português, as lojas vendem pão de queijo, guaraná, picanha, feijão preto, farinha de mandioca e até balinha 7 Belo. Ali estão os imigrantes considerados de classe média-baixa. São os operários da construção civil, as faxineiras, os pintores de parede, as manicures, os motoristas, que se deslocam diariamente para trabalhar na outra Miami.

Na Flórida, as comunidades latinas, muito organizadas, costumam ter representação política, voz ativa e conexão direta com seus pares. Nos últimos anos, a despeito da forte presença de imigrantes, apenas um brasileiro tentou se candidatar a vereador – sem sucesso. O Itamaraty, com as finanças pela hora da morte, ameaça de greve e uma nonchalance que lhe é peculiar, nunca conseguiu representar os brasileiros no exterior. O último grande evento organizado pelo consulado foi uma exposição da artista plástica Beatriz Milhazes. O pessoal do museu PAMM adorou, mas a turma de Pompano nem tomou conhecimento. Por essas e outras, a organização da comunidade caiu nas mãos das igrejas pentecostais, que ajudam com alimentação, moradia e emprego. Em Miami, estima-se que haja mais de 170 delas. Nos Estados Unidos, são 1 600.

Num domingo, cerca de 1 500 brasileiros aguardavam o início do culto na Primeira Igreja Batista Brasileira do Sul da Flórida, conhecida pela abreviação de PIB Flórida. Em seu comando está o pastor Silair Almeida, um baiano de cabelo domado a gel, vestido informalmente com jeans e camisa social. Fundada em 1994, a igreja ocupa um quarteirão inteiro. São três prédios, um estacionamento amplo e um auditório com moderno sistema de som e telões de LED.

Às nove da manhã, o pastor comandava um batismo coletivo de jovens e adultos. Durante uma hora e meia, dezenove pessoas passaram pelo ritual. Nos jardins da igreja, grupos de homens e mulheres bem-vestidos, de idade variada, conversavam em português. O inglêssó era ouvido entre adolescentes, a segunda geração de imigrantes, cuja maioria nunca visitou o país dos pais.

Às dez e meia, o pastor iniciou o culto. Em vez de uma cantilena infinita, ele prefere um culto rápido, durante o qual costuma falar de política, entre outros assuntos. Como todos os pentecostais, estimula e recolhe o dízimo dos fiéis. Mostrou imagens de um orfanato que voluntários construíam no Haiti, falou sobre inveja e propôs um desafio ao rebanho: um jejum de 21 dias sem mentir ou reclamar. Depois falou sobre a situação no Brasil. “Há muitos políticos comprometidos com Deus, que estão fazendo um trabalho extraordinário no país. Nem todo político é ladrão. Prestem atenção nas pessoas que falam de Deus no Brasil”, afirmou. Na entrada do auditório, foi montado um bufê a quilo que servia feijoada. Ao final do culto, os fiéis, depois de enfrentarem a fila para pesar os pratos, acomodavam-se nas mesas em grupos animados. “É o melhor programa para a comunidade daqui”, disse-me a manicure Maria Soares, que almoçava com a família.

O pastor me chamou para um tour. No estacionamento, mostrou mais de vinte carros usados. “São doações dos nossos fiéis para os novatos”, explicou. “As pessoas chegam sem nada, precisam de um carro, vêm aqui na igreja e pegam. E ficam usando o quanto for preciso, até terem dinheiro para comprar um.” Também encontram roupa, atendimento psicológico, cabelereiro, dentista e médico.

Mais adiante, ele apontou para uma sala fechada. “Esse aqui é nosso supermercado, onde a moeda corrente é o solidário”, disse. Quando os imigrantes ilegais apareciam, costumavam receber cestas básicas da igreja. “Mas era muito humilhante. A pessoa, que já estava naquela situação ruim, ficava achando que estava ganhando esmola”, comentou. Foi quando lhe ocorreu montar um supermercado com os produtos da cesta básica numa das salas da igreja e dar um “salário” em uma moeda própria, sem exigir nada em troca. “Então, o cara chega com x solidário se vai ao mercadinho fazer sua compra. É mais digno.”

Em sua sala de madeira escura, decorada com fotografias e livros, ele definiu seus fiéis como “aquela classe que ficou apertada entre os ricos e os pobres do Bolsa Família”. Uma gente que se sentia desvalorizada, desprotegida e excluída dos planos políticos e sociais do Brasil. “É gente que conhece o que é crise”, disse. Nas semanas anteriores, o pastor havia desencorajado a ida aos protestos. “É muito fácil estar longe e criticar o que acontece no interior de Sergipe. Me poupe. Quer protestar, vote!”

O pastor era o único brasileiro “da Miami pobre” com assento no Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, na Flórida. Ele contou que sua entrada foi “um parto”, pois “a elite da cidade não quer saber de Pompano, dos imigrantes, de nada”. Como exemplo da separação entre classes, citou o Baile de Gala da BrazilFoundation, cujo ingresso tinha um preço impraticável. “Por que não fazer algo que incluísse todos os brasileiros? Eles não querem porque acham que aqui é a ralé, mas quem faz e produz na Flórida está aqui, não num restaurante de Miami Beach.”

A impressão reforçava as teses da antropóloga Maxine Margolis, da Universidade da Flórida. Uma das maiores estudiosas da presença brasileira nos Estados Unidos, ela escreveu sobre o preconceito do imigrante brasileiro rico em relação ao pobre. “Ele não quer se misturar e o vê com desprezo”, ela me disse. Em sua avaliação, a dinâmica era tão marcante que o brasileiro nem gostava de se ver incluído no grupo de latinos – para eles, sinônimo de cucarachas pobres, mal-educados e discriminados.

Antes de se despedir, o pastor Silair Almeida insistiu que eu conhecesse o paulista Lúcio Santana, “um caso para mostrar à elite o que é um pobre de Pompano”. Na semana seguinte, num centro comercial de Miami, encontrei-me com Santana, acompanhado de três irmãs suas que estavam de férias.

Há dezesseis anos, Santana largou o emprego de vendedor da Herbalife e desembarcou em Miami, tendo no bolso um visto de turista, o telefone do irmão do cunhado e 1 600 dólares, resultado da venda de um Fusca e de uma moto. Tinha 20 anos. Lavou banheiro, limpou cinemas de madrugada, entregou jornal e pizza, pintou paredes. Durante anos, trabalhou dezoito horas por dia. Depois, passou a comprar celulares e revendê-los, antes de se tornar sócio de uma imobiliária. Com a crise de 2008, perdeu tudo, inclusive a casa em que morava. “Eu ia para o escritório e não sabia o que fazer”, contou. Mesmo com o mercado turbulento, ele voltou a comprar e vender imóveis, com prazos apertados para pagar os empréstimos, arriscando o pescoço no banco. “Não desisti e a economia foi melhorando”, disse. Atualmente, ele é dono de 49 apartamentos espalhados por Miami. “Eu quero ser uma financeira e um banco no futuro”, contou enquanto tomava um suco.

Não votou nas últimas eleições, mas seus amigos e familiares se posicionaram em peso contra o governo Dilma Rousseff. Santana acredita que a meritocracia e as oportunidades nos Estados Unidos permitiram que ele se tornasse um homem rico. Para ele, não havia qualquer perspectiva de melhora no Brasil. “A roubalheira está incontrolável. Votar no Aécio era uma esperança de algo diferente, mas acho que nada vai mudar mesmo.”

Duas semanas depois dos protestos em Miami, encontrei-me com a paulistana Debora Rosenn, que comandou a manifestação pelo megafone. Aos 39 anos, dezesseis em Miami, divorciada e mãe de gêmeos, ela decidiu imigrar depois de sofrer dois assaltos em São Paulo. Foi garçonete, cuidou de cachorros, trabalhou em banco e em hospital. Hoje é autônoma e faz trabalhos eventuais com fotografia.

Estávamos no bar do hotel Delano, em South Beach. Ela pediu um coquetel com martíni e lichia e contou que havia ficado satisfeita com a manifestação. Perguntei o que os havia motivado a se mobilizar contra o governo, uma vez que estavam tão longe e não acalentavam planos de voltar. Ela disse ser “exposta diariamente” aos escândalos brasileiros, pois seus pais e seus irmãos ainda moravam em São Paulo. Sempre que vai ao Brasil, a cada dois anos, se prepara psicologicamente “uma semana antes”. “Já sei que vai sumir mala, que vão poder me assaltar.”

Apesar de não ter um emprego fixo, ela disse levar uma vida confortável de classe média, o que jamais ocorreria no Brasil. “Porque classe média no Brasil é o pobre daqui.” O impeachment, em sua avaliação, serviria de exemplo para outros políticos. Quando comentei que o ex-presidente Fernando Collor, impedido em 1992, era um dos principais articuladores da base governista e estava na lista de investigados da Operação Lava Jato, ela não se fez de rogada: “Para você ver, brasileiro não aprende nada mesmo!”

Antes de nos despedirmos, perguntei se ela realmente acreditava que existia censura no Brasil – como ela havia dito à plateia do protesto. “É claro que sim, mas é algo sutil. É feito com politicagem, manipulação, falta de transparência.” Como exemplo, citou o caso da suposta fraude nas urnas eletrônicas durante a apuração dos votos na última eleição. Eu disse duvidar da tese e ela me olhou com condescendência. “Se a gente soubesse tudo o que esse pessoal é capaz de fazer, seria mais fácil. Mas não sabemos. Eles não têm limites. São ladrões, ladrões.”



04 de novembro de 2015
Daniela Pinheiro

DOCE REMÉDIO

Anais da medicina
Pesquisas com drogas psicodélicas, como o LSD, prometem aumentar a eficácia de tratamentos psíquicos e trazer alívio para doentes terminais



Patrick Mettes, 54 anos, diretor de jornalismo de um canal de televisão, estava se tratando de um câncer nas vias biliares quando, numa segunda-feira de abril de 2010, leu na primeira página do um artigo que mudaria sua morte. Ele recebera o diagnóstico três anos antes, pouco depois de Lisa, sua mulher, comentar que ele estava com os olhos amarelos. O câncer já havia se espalhado para os pulmões, e Mettes vinha sofrendo com uma quimioterapia debilitante e o medo cada vez maior de não sobreviver.

O artigo, intitulado “Alucinógenos voltam a despertar interesse médico”, mencionava ensaios clínicos realizados em várias universidades, inclusive a de Nova York (NYU), que prescreviam psilocibina – o ingrediente ativo dos chamados cogumelos mágicos – a pacientes com câncer, para aliviar a ansiedade e a “angústia existencial”. Um dos pesquisadores afirmou que, sob a influência do alucinógeno, “o indivíduo transcende sua identificação primária com o próprio corpo, liberando-se de seu ego e voltando [da viagem] com uma nova perspectiva e uma profunda aceitação”. Ainda que nunca tivesse experimentado uma droga psicodélica, Mettes resolveu se apresentar como voluntário. Lisa foi contra. “Eu não queria uma saída fácil”, ela me explicou. “Queria que ele lutasse.”

O jornalista se candidatou ao programa e foi aceito, depois de preencher uma série de formulários e responder a um questionário minucioso. Como os alucinógenos podem desencadear problemas psicológicos latentes, os pesquisadores procuram excluir voluntários de risco, daí a necessidade de interrogar sobre antecedentes de droga e casos de esquizofrenia ou transtorno bipolar na família. Após a triagem, Mettes foi encaminhado ao terapeuta Anthony Bossis, um psicólogo cinquentão, barbudo e corpulento, especializado em cuidados paliativos, e um dos dois pesquisadores-chave do experimento da NYU.

Depois de quatro encontros, Bossis prescreveu a Mettes um placebo “ativo” (uma dose alta de niacina, que pode produzir uma sensação de formigamento) e uma pílula contendo psilocibina. A administração de cada uma das drogas ocorreria em duas sessões, num local que, longe de parecer um consultório médico, lembrava uma sala de estar – com um sofá confortável, quadros de paisagens, livros de arte e mitologia, bem como uma tralha de objetos de caráter esotérico, entre os quais uma imagem de Buda e um cogumelo de cerâmica.

Ao longo de cada sessão, que ocuparia praticamente o dia todo, Mettes ficaria deitado no sofá, com máscara nos olhos e fones nos ouvidos, escutando uma série de músicas escolhidas a dedo – Brian Eno, Philip Glass, Pat Metheny, Ravi Shankar. Bossis e outro terapeuta, presentes o tempo todo, pouco falariam, mas estariam a postos caso ocorresse qualquer problema.

Conheci Bossis no ano passado, na sala de tratamento da NYU, onde ele estava com seu colega Stephen Ross, professor adjunto de psiquiatria na Escola de Medicina da NYU e responsável pelos experimentos com psilocibina. De terno e gravata, o quarentão Ross passaria por banqueiro. Ele também dirige a divisão de uso abusivo de drogas do hospital Bellevue e contou que não sabia muito a respeito das substâncias psicodélicas – que produzem mudanças radicais no estado mental, inclusive alucinações – até um colega lhe contar que, nos anos 60, o LSD havia sido ministrado com sucesso no tratamento de alcoólatras. Ross resolveu estudar o assunto e ficou perplexo com o que descobriu.

“Eu me senti mais ou menos como o arqueólogo que desenterra todo um corpo de conhecimentos”, disse Ross. A partir dos anos 50, as drogas psicodélicas passaram a ser empregadas para tratar uma vasta gama de problemas, inclusive alcoolismo e medo da morte. A Associação Americana de Psiquiatria realizou várias reuniões para discutir o LSD. “Com financiamento do governo, alguns dos melhores psiquiatras investigaram a fundo esses compostos em modelos terapêuticos”, disse Ross.

Entre 1953 e 1973, o governo federal gastou 4 milhões de dólares para financiar 116 estudos sobre o LSD que envolveram mais de 1 700 cobaias humanas declaradas. Em meados da década de 60, a psilocibina e o LSD eram legais e fáceis de obter. Sandoz, o laboratório suíço no qual, em 1938, Albert Hofmann sintetizou pela primeira vez o LSD – sigla deLysergsäurediethylamid, termo alemão para a dietilamida do ácido lisérgico –, fornecia quantidades maciças de Delysid (nome comercial da substância) a qualquer pesquisador que o solicitasse, na esperança de que se descobrisse um uso para o produto.

As drogas psicodélicas eram testadas em alcoólatras, portadores de transtorno obsessivo-compulsivo, indivíduos depressivos, crianças autistas, esquizofrênicos, pacientes terminais de câncer e presidiários, assim como em artistas e cientistas (para estudar a criatividade) e em estudantes de teologia (para investigar a espiritualidade) saudáveis. Os resultados com frequência eram positivos. Para os padrões modernos, porém, muitos estudos eram mal planejados e raramente bem controlados, se é que de algum modo o eram. Mesmo quando havia algum controle, os pesquisadores quase sempre sabiam quais voluntários haviam tomado a droga, problema recorrente até hoje.

Em meados dos anos 60, o LSD escapou do laboratório e ganhou a contracultura. Em 1970, Richard Nixon assinou a Lei de Substâncias Controladas, que classificou grande parte das drogas psicodélicas na categoria 1, proibindo sua prescrição para qualquer finalidade. A pesquisa foi suspensa, e tudo que se aprendera até então foi como que varrido do campo da psiquiatria. “Quando entrei na faculdade de medicina, nem se falava mais nisso”, Ross disse.

Os experimentos clínicos na NYU – está em curso um segundo, que utiliza psilocibina para tratar o alcoolismo – fazem parte da retomada da investigação sobre drogas psicodélicas, vigente em várias universidades americanas, inclusive na Johns Hopkins, no Centro Médico Harbor-Ucla (da Universidade da Califórnia) e na Universidade do Novo México, bem como no Imperial College, de Londres, e na Universidade de Zurique. Com o arrefecimento do combate à droga, os cientistas se animaram a reavaliar o potencial terapêutico das substâncias psicodélicas, a começar pela psilocibina. Em janeiro passado, The Lancet, o periódico médico mais famoso do Reino Unido, publicou um editorial apoiando essa pesquisa.

A psilocibina produz efeitos semelhantes aos do LSD, mas, como um pesquisador explicou, “não carrega a bagagem política e cultural dessas três letras”. Além de provocar efeitos mais fortes e duradouros, o LSD pode causar mais reações adversas. Os pesquisadores estão usando ou pretendendo usar a psilocibina não só para tratar ansiedade, tabagismo, alcoolismo e depressão, mas também para estudar a neurobiologia da experiência mística, que pode ocorrer mediante doses altas da droga. Quarenta anos depois que a administração Nixon vetou as substâncias psicodélicas, o governo está permitindo que um pequeno número de cientistas retome o trabalho com essas moléculas poderosas e, de algum modo, ainda misteriosas.

Na sala de tratamento da NYU, Tony Bossis e Stephen Ross se mostravam empolgados com os resultados. De acordo com Ross, pacientes com câncer que receberam uma única dose de psilocibina sentiram uma redução imediata e considerável no nível de ansiedade e depressão, e essas melhorias se mantiveram por no mínimo seis meses. Os dados estão sendo analisados e devem ser divulgados para a avaliação de outros profissionais ainda este ano.

“Achei que as primeiras dez ou vinte pessoas haviam sido plantadas, elas só poderiam estar fingindo”, Ross me falou. “Diziam coisas como ‘Para mim o amor é a força maior do planeta’, ou ‘Tive um encontro com meu câncer, essa nuvem negra de fumaça’. Gente que claramente estava apavorada com a morte perdeu o medo. Descobrir que uma droga ministrada uma única vez pode ter esse efeito tão duradouro é algo inédito. Nunca presenciamos nada parecido no campo da psiquiatria.”

Fiquei surpreso ao ver um cientista, justo um especialista no uso abusivo de drogas, demonstrar abertamente seu entusiasmo por uma substância que, em 1970, o governo classificou de inaceitável para uso médico e capaz de criar dependência. Mas a classe médica em geral apoia a retomada da pesquisa. “Sou pessoalmente a favor desse tipo de estudo”, disse o neurocientista Thomas R. Insel, diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH). “Se essa droga de fato ajuda quem está sofrendo, merece nossa atenção. O fato de ser psicodélica não a desqualifica.” Já Nora Volkow, diretora do Instituto Nacional de Abuso de Drogas (Nida), enfatizou: “É importante lembrar que, fora do contexto de pesquisa, o uso de drogas que viciam pode produzir sérios danos.”

Muitos pesquisadores foram entusiásticos ao descrever suas descobertas e alguns até empregaram termos como excepcionais. Bossis falou: “As pessoas não imaginam como são poucas as ferramentas de que dispomos para tratar a angústia existencial. Xanax (o alprazolam) não dá conta. Por que não explorar essa via, se ela pode recalibrar o modo como morremos?”

O psiquiatra Herbert D. Kleber, diretor da divisão de uso abusivo de drogas do Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York, da Universidade Columbia, e um dos maiores especialistas do país, recomendou cautela: “A pesquisa é fascinante, mas não podemos esquecer que as amostras são pequenas.” Ele também ressaltou o risco de efeitos adversos e a necessidade do acompanhamento de “tutores, já que se pode ter uma experiência boa ou assustadora”. E acrescentou, referindo-se à investigação da nyu e da Johns Hopkins: “Esses estudos estão nas mãos de terapeutas competentes, dedicados, que sabem o que estão fazendo. Mas será que dá para falar disso no horário nobre?”

Aideia de ministrar uma droga psicodélica a moribundos foi concebida pelo romancista Aldous Huxley. Ele conheceu a mescalina em 1953, por meio do psiquiatra inglês Humphry Osmond; no ano seguinte, relatou sua experiência em As Portas da Percepção. (Foi Osmond quem cunhou a palavra “psicodélico” – “que torna visível a mente” – numa carta que escreveu a Huxley em 1956.) O escritor propôs uma pesquisa sobre a “administração do LSD a pacientes terminais de câncer, na esperança de tornar a morte um processo mais espiritual e menos estritamente fisiológico”. Em seu leito de morte, Huxley pediu à mulher que lhe injetasse a droga – ele morreu de câncer na laringe, aos 69 anos, em 22 de novembro de 1963.

Em 1957, R. Gordon Wasson – então vice-presidente do banco J. P. Morgan, em Nova York –, que estudava fungos por diletantismo, escreveu para a revista Life um artigo de quinze páginas sobre os cogumelos que contêm psilocibina, despertando assim o interesse da medicina ocidental (e da cultura popular). Dois anos antes, depois de passar anos recolhendo relatos sobre o uso clandestino de cogumelos entre indígenas mexicanos, Wasson acabou por experimentá-los por meio de uma curandera do sul do México. Sua descrição maravilhada, na primeira pessoa, da viagem psicodélica que fez durante uma cerimônia noturna inspirou vários cientistas a estudar a psilocibina – dentre os quais Timothy Leary, conceituado psicólogo que realizava pesquisas sobre personalidade em Harvard. Após experimentar os cogumelos em Cuernavaca, em 1960, Leary criou o Harvard Psilocybin Project para investigar o potencial terapêutico dos alucinógenos. Envolveu-se com o LSD alguns anos mais tarde.

Albert Hofmann experimentou os cogumelos em 1957, na esteira do trabalho de Wasson. “Trinta minutos depois, o mundo exterior começou a sofrer uma estranha transformação”, escreveu. “Tudo adquiriu um aspecto mexicano.” Hofmann então tratou de identificar, isolar e, por fim, sintetizar o ingrediente ativo, a psilocibina, o composto utilizado na pesquisa atual.

Talvez o mais influente e rigoroso desses estudos pioneiros tenha sido o experimento da Sexta-Feira Santa, conduzido em 1962 por Walter Pahnke, psiquiatra e pastor que fazia sua tese de doutorado em Harvard, sob a orientação de Leary. Pouco antes da cerimônia da Sexta-Feira Santa na Capela Marsh, no campus da Universidade de Boston, vinte estudantes de teologia receberam uma cápsula de pó branco – em dez havia psilocibina; nas outras dez, um placebo ativo (ácido nicotínico). Como se tratava de um experimento duplo-cego, nem pesquisadores nem pesquisados sabiam quem tomava o quê.

Oito dos dez estudantes que ingeriram psilocibina relataram uma experiência mística e apenas um do grupo de controle teve um sentimento do “sagrado” e uma “sensação de paz”. (Não era difícil distingui-los, o que transformava o duplo-cego num conceito meio vazio: a turma do placebo sentou tranquila nos bancos, enquanto os outros se deitaram ou ficaram andando pela capela, resmungando frases como “Deus está em toda parte” e “Oh, a glória!”.) Pahnke concluiu que as experiências dos oito que tomaram psilocibina eram “indistinguíveis” das experiências místicas clássicas relatadas por William James, Walter Stace e outros.

Em 1991, Rick Doblin, diretor da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), publicou um estudo de acompanhamento da experiência na Capela Marsh. Para tanto, localizou todos os estudantes de teologia, à exceção de um, que experimentaram a psilocibina e entrevistou sete deles. Todos afirmaram que a experiência foi determinante para suas vidas, tendo deixado marcas profundas e duradouras nos planos pessoal e profissional. Mas Doblin encontrou falhas no texto de Pahnke: ele não mencionou a ansiedade aguda que alguns dos estudantes sofreram durante a experiência. Um deles precisou ser contido e receber uma dose de Torazina (a clorpromazina), um antipsicótico poderoso, depois que saiu correndo pela avenida Commonwealth, convencido de que fora escolhido para anunciar a vinda do Messias.

A primeira leva de pesquisas envolvendo drogas psicodélicas pecava pelo entusiasmo excessivo em relação a seu potencial. Os cientistas que trabalhavam com essas moléculas extraordinárias tendiam a acreditar que tinham em mãos uma novidade capaz de mudar o mundo – um evangelho psicodélico. Não era fácil admitir que essa maravilha ficasse confinada em laboratórios, com seu uso restrito a enfermos. Não demorou muito e cientistas respeitáveis se irritaram com a ciência objetiva – para Leary, por exemplo, a ciência agora não passava de mais um jogo social, uma caixa de convenções a ser destruída – junto com todas as outras.

A interrupção da pesquisa envolvendo drogas psicodélicas teria sido inevitável? Stanislav Grof, psiquiatra de origem tcheca que nos anos 60 ministrou muito LSD em seu consultório, acredita que a substância “perdeu o elemento dionisíaco” nos Estados Unidos e, como representava uma ameaça aos valores puritanos do país, acabou sendo rechaçada. (Ele acha que a história pode se repetir.) Roland Griffiths, psicofarmacologista da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, ressalta que a cultura americana não é a primeira a se sentir ameaçada pelas drogas psicodélicas: Gordon Wasson precisou redescobrir os cogumelos no México porque os espanhóis os viam como perigosos instrumentos do paganismo e por isso trataram de eliminá-los.

“A experiência mística primária provoca uma sensação de autoridade tão intensa que pode ser ameaçadora para as estruturas hierárquicas existentes”, Griffiths me explicou, quando fui encontrá-lo na primavera passada. “Acabamos demonizando esses compostos. Você conhece alguma outra área da ciência considerada tão perigosa, tão tabu a ponto de estagnar toda a pesquisa durante décadas? Isso não tem precedente na ciência moderna.”

No início de 2006, Tony Bossis, Stephen Ross e Jeffrey Guss, psiquiatra e colega na NYU, passaram a se encontrar toda sexta-feira à tarde, depois do expediente, para ler e discutir sobre drogas psicodélicas. Autodenominaram-se Psychedelic Reading Group (PRG) [Grupo de Estudos Psicodélicos] – ao cabo de alguns meses, porém, o R de PRG já significava Research [Pesquisa]. Decidiram tentar iniciar um ensaio clínico usando psilocibina como uma terapia adjuvante para tratar a ansiedade de pacientes com câncer.

Os obstáculos eram imensos: a Agência de Controle de Alimentos e Medicamentos (FDA) e o Departamento de Repressão às Drogas (DEA) autorizariam o uso da substância? O Conselho de Estudo Institucional (IRB) da NYU, encarregado de proteger indivíduos submetidos a experimentos, permitiria que prescrevessem uma droga psicodélica a pacientes com câncer? Em julho de 2006, aPsychopharmacology publicou um artigo de autoria de Roland Griffiths e colaboradores que foi um verdadeiro divisor de águas: “A psilocibina pode provocar experiências do tipo místico com significado pessoal e espiritual substancial e duradouro.”

“Todos nós adoramos o artigo de Roland”, lembra Bossis. “Ele reforçou a certeza de que podíamos seguir adiante. A Johns Hopkins havia demonstrado que era possível fazer isso sem problema.” O texto também forneceu a Ross munição para persuadir um irb cético. “A aprovação foi facilitada pelo fato de a pesquisa sobre drogas psicodélicas ser feita na Hopkins – considerada a principal escola de medicina do país. Foi um estudo surpreendente, com uma concepção muito elegante.”

Mesmo assim, a pesquisa ainda é rigidamente regulamentada e vigiada. A experiência da NYU só teve início depois que Ross obteve a aprovação da FDA; do Conselho de Estudo de Oncologia da NYU; do IRB; do Comitê Bellevue de Estudo e Pesquisa; do Centro Bluestone para Pesquisa Clínica; do Instituto de Ciência Clínica e Translacional, e, por fim, da DEA, que precisava autorizar o uso de uma substância incluída na categoria 1.

O experimento duplo-cego de Griffiths repetia o que Pahnke fizera nos anos 60, porém com muito mais rigor científico. Trinta e seis voluntários que nunca haviam tomado alucinógeno receberam uma pílula contendo ou psilocibina ou um- placebo ativo (Ritalina, o metilfeni-dato); na sessão seguinte, os pesquisadores alternaram as pílulas. “Ministrada com o devido apoio”, o estudo concluiu, “a psilocibina suscitou experiências semelhantes às vivências místicas que ocorrem espontaneamente.” Os participantes consideraram tais experiências tão marcantes quanto o nascimento de um filho ou a morte de um genitor. Para dois terços deles, a sessão de psilocibina foi uma das cinco experiências espiritualmente mais importantes da vida; para um terço, foi a mais importante. Catorze meses depois, essas classificações baixaram apenas ligeiramente.

Além disso, a “plenitude” da experiência mística seguiu de perto as melhorias relatadas quanto ao bem-estar pessoal, a satisfação com a vida e a “mudança positiva de comportamento” – aferidas dois meses e, novamente, catorze meses após a sessão. (Os pesquisadores se utilizaram das autoavaliações dos participantes do estudo e das de seus colegas de trabalho, amigos e parentes.) Os autores do estudo determinaram a plenitude da experiência mística por meio de dois questionários, um dos quais era o Questionário da Experiência Mística Pahnke–Richards, parcialmente baseado em As Variedades da Experiência Religiosa, de William James.

Tal questionário avalia sentimentos de comunhão, religiosidade, inefabilidade, paz e alegria, bem como a impressão de ter transcendido o espaço e o tempo e a “sensação noética” de que a experiência revelou uma verdade objetiva a respeito da realidade, uma nova percepção dessa mesma realidade. Uma experiência mística “plena” é aquela que apresenta essas seis características. Griffiths acredita que a eficácia duradoura da droga se deva a sua capacidade de provocar essa expe-riência transformadora sem mudar a química do cérebro no longo prazo, como faz uma droga psiquiátrica convencional como o Prozac (a fluoxetina).

Um estudo de acompanhamento realizado por Katherine MacLean, psicóloga do laboratório de Griffiths, constatou que a experiência com psilocibina também teve um efeito positivo e duradouro na personalidade da maioria dos participantes. (A psicologia convencional sustenta que em geral a personalidade está definida aos 30 anos, e depois dessa idade dificilmente passa por alguma alteração substancial.) Mais de um ano depois das sessões de psilocibina, os voluntários que haviam tido as experiências místicas mais plenas apresentaram um aumento significativo em sua “abertura”, um dos cinco aspectos que os psicólogos analisam ao avaliar traços de personalidade – os outros são: consciência, extroversão, afabilidade e neuroticismo, isto é, a tendência a um estado emocional negativo. A abertura, que inclui apreciação estética, imaginação e tolerância em relação a opiniões alheias, é um bom indício de criatividade.

“Não quero usar o termo excepcional”, disse Griffiths, “mas, como fenômeno científico, que tal conseguir criar condições nas quais 70% das pessoas vão dizer que essa foi uma das cinco experiências mais marcantes que tiveram na vida? Para um cientista é uma coisa incrível.”

Aatual retomada da pesquisa se beneficiou em grande parte da respeitabilidade de seus defensores. Aos 68 anos, Roland Griffiths, que se especializou em behaviorismo e ocupa posição destacada nos departamentos de psiquiatria e neurociência da Hopkins, é um dos maiores pesquisadores americanos no campo do vício em drogas. Com mais de 1,80 metro de altura, magro como um palito e reto como um poste, tudo o que tem de indisciplinado é o cabelo branco, tão abundante que parece desafiar o pente. Tom Insel, diretor do NIMH, definiu-o como “um cientista famoso pela análise meticulosa de dados”, e aprovou seu envolvimento “numa área que outras pessoas poderiam ver como um incentivo ao uso de drogas”.

A carreira de Griffiths sofreu uma reviravolta inesperada nos anos 90, depois de duas grandes descobertas. A primeira foi em 1994, quando um amigo lhe apresentou o Siddha Yoga. A meditação o fez conhecer “algo que estava além, muito além de uma visão material do mundo, e não posso falar com meus colegas sobre isso, porque envolve metáforas ou conjecturas que são pouco confortáveis para um cientista como eu”. Ele passou a acalentar “pensamentos fantasiosos” de abandonar a ciência e ir para a Índia.

Em 1996, Charles R. (Bob) Schuster, um velho amigo e colega que acabava de se aposentar como diretor do Nida, sugeriu que ele conversasse com Robert Jesse, um jovem que acabara de conhecer no centro de estudos alternativos Instituto Esalen, em Big Sur, na Califórnia. Interessado em questões espirituais, Jesse não era médico nem cientista – vice-presidente da Oracle, trabalhava com computadores. Imbuído da missão de ressuscitar a pesquisa com drogas psicodélicas, Jesse organizara uma reunião de cientistas e religiosos para discutir o potencial espiritual e terapêutico dessas substâncias e como reabilitá-las.

Quando se escrever a história da segunda leva de pesquisas sobre drogas psicodélicas, Bob Jesse será lembrado como um dos dois leigos em ciências que trabalharam nos bastidores para fazê-la decolar. (O outro é Rick Doblin, o fundador da Maps.) Enquanto esteve de licença da Oracle, Jesse criou uma entidade não lucrativa, o Conselho em Práticas Espirituais (CSP), com o objetivo de “tornar a experiência direta do sagrado mais acessível a mais pessoas”. (Em vez de “psicodélico”, ele prefere o termo “enteógeno”, ou “que facilita o acesso a Deus”.)

Em 1996, o CSP organizou uma histórica reunião no Esalen. Dos quinze presentes, muitos eram pesquisadores veteranos, como James Fadiman e Willis Harman, que anos antes haviam estudado as drogas psicodélicas em Stanford, e teólogos como Huston Smith, renomado estudioso de religião comparada. Mas Jesse sabiamente resolveu convidar Bob Schuster, especialista em uso abusivo de drogas que trabalhara em dois governos republicanos. No final do encontro, o grupo decidiu promover “uma pesquisa honesta, inatacável, a ser realizada numa instituição com pesquisadores acima do bem e do mal” e, de preferência, “sem qualquer promessa de tratamento clínico”. Jesse estava menos interessado nos distúrbios mentais do que no bem-estar espiritual das pessoas – queria usar os enteógenos para o que chama de “aperfeiçoamento de gente saudável”.

Pouco depois da reunião no Esalen, Bob Schuster (que morreu em 2011) ligou para Jesse e lhe comunicou que seu velho amigo Roland Griffiths era “o pesquisador acima do bem e do mal” que ele buscava. Jesse foi a Baltimore para conhecê-lo, e desse encontro se originou uma série de conversas e reuniões sobre meditação e espiritualidade. Griffiths se dedicou à pesquisa sobre drogas psicodélicas, coroada pelo artigo de 2006, publicado naPsychopharmacology.

Omérito do artigo transcendeu as descobertas nele relatadas. Por iniciativa da revista, vários pesquisadores e neurocientistas foram convidados a comentá-lo e se convenceram da importância de retomar as investigações. Herbert Kleber, da Universidade Columbia, aplaudiu o texto e reconheceu que “grandes possibilidades terapêuticas” poderiam resultar de novos estudos sobre essas drogas, alguns dos quais mereceriam “o apoio do Instituto Nacional de Saúde (NIH)”. Solomon Snyder, o neurocientista da Hopkins que nos anos 70 descobriu os receptores opioides do cérebro, resumiu o que Griffiths havia conquistado para a área: “A capacidade desses pesquisadores para conduzir um estudo duplo-cego bem controlado mostra que a investigação clínica sobre drogas psicodélicas pode ser segura, não carecendo vedá-la à maioria dos pesquisadores.”

Roland Griffiths e Bob Jesse abriram uma porta que por mais de três décadas permanecera cerrada. Charles Grob, da Ucla, foi o primeiro a transpô-la, obtendo a aprovação da FDA para a Fase I de um estudo piloto que avaliaria a segurança, a dosagem e a eficácia da psilocibina no tratamento da ansiedade em pacientes com câncer. Seguiram-se os experimentos da Fase II, recém-concluídos na Hopkins e na NYU, que envolveram doses mais altas e grupos maiores (29 na NYU; 56 na Hopkins) e incluíram Patrick Mettes e mais uma dúzia de pacientes com câncer em Nova York e Baltimore.

Desde 2006, o laboratório de Griffiths vem conduzindo um estudo piloto sobre o potencial da psilocibina para tratar o tabagismo (os resultados foram publicados na Psychopharmacology de novembro passado). A amostra é pequena – quinze fumantes –, mas a taxa de sucesso é impressionante. Doze participantes que já haviam tentado largar o cigarro por meio de outros métodos continuavam sem fumar seis meses após o tratamento, o que representa 80% de êxito. Para se ter uma ideia do sucesso, hoje em dia o principal tratamento para o tabagismo é a terapia de substituição da nicotina. Um artigo publicado numa edição recente do BMJ – chamado até 1988 de British Medical Journal – informa que depois do tratamento apenas 7% dos fumantes permaneceram longe do cigarro durante seis meses.

No estudo da Hopkins, os participantes passaram por duas ou três sessões de psilocibina e um curso de terapia cognitivo-comportamental para ajudar a controlar
a vontade de fumar. A experiência com a substância psicodélica parece permitir que se reveja e se interrompa um hábito arraigado. “Fumar parecia irrelevante, e por isso parei”, disse um deles. Os voluntários que relataram uma experiência mística plena tiveram mais sucesso em largar o hábito. Um experimento mais longo da Fase II, comparando a psilocibina à substituição da nicotina (ambas em associação com a terapia cognitivo-comportamental), está em curso na Hopkins.

“Precisamos desesperadamente de uma nova forma de tratar um vício”, Herbert Kleber me falou. “Nas mãos das pessoas certas – e enfatizo isso, porque toda a área das drogas psicodélicas atrai gente que em geral acha que entende do assunto, mas na verdade não sabe nada –, esse tratamento pode ser muito útil.”

Até o momento, a crítica à pesquisa tem sido restrita. No verão passado, Florian Holsboer, então diretor do Instituto de Psiquiatria Max Planck, de Munique, disse à Science: “Não se pode ministrar uma substância a um paciente só porque ela tem um efeito antidepressivo, entre muitos outros. É extremamente perigoso.” Nora Volkow, do Nida, me enviou um e-mail em que dizia que “a maior preocupação com esse trabalho é induzir o público a pensar que a psilocibina pode ser usada sem problema. Na verdade, os efeitos adversos dessa droga são bem conhecidos, embora não sejam totalmente previsíveis”. E acrescentou: “O uso de alucinógenos tem diminuído, sobretudo entre os jovens. Não gostaríamos que essa tendência se revertesse.”

Sabe-se que o uso recreativo de drogas psicodélicas está relacionado a casos de psicose, flashback e suicídio. Tais efeitos adversos, porém, não ocorreram nos experimentos da NYU e da Johns Hopkins, que envolveram a administração de quase 500 doses de psilocibina. Mas é preciso levar em conta que os participantes se apresentaram espontaneamente, passaram por uma triagem cuidadosa, foram preparados para a experiência e assistidos por terapeutas aptos a lidar com os eventuais episódios de medo e ansiedade. Além das moléculas envolvidas, uma sessão de terapia e uma experiência recreativa têm muito pouco em comum.

Atualmente, o laboratório da Hopkins está desenvolvendo um estudo que interessa particularmente a Griffiths, uma vez que vai examinar o efeito da psilocibina em praticantes de meditação veteranos. Quarenta participantes terão o cérebro monitorado por meio de imagens de Ressonância Nuclear Magnética Funcional (fMRI) – antes, durante e depois de tomar psilocibina, para avaliar alterações na atividade e conectividade cerebral.

O laboratório de Griffiths, em colaboração com a NYU, também está iniciando um estudo para verificar em que medida a experiência da droga, ministrada a sacerdotes de várias religiões, poderia contribuir para o trabalho deles. “Eu me sinto como uma criança numa confeitaria”, Griffiths disse. “A pesquisa pode enveredar por caminhos os mais variados. Vivemos o efeito Bela Adormecida – depois de três décadas sem nenhuma pesquisa, estamos esfregando os olhos para afastar o sono.”

“Inefabilidade” é uma característica da experiência mística. Ao descrever as bizarrices que lhes passam pela cabeça durante uma viagem psicodélica assistida, muitos se esforçam para não dar pinta de maluco ou guru new age. O léxico nem sempre dá conta de relatar uma experiência que parece remover o sujeito de seu corpo, levá-lo a percorrer vastidões de tempo e espaço e colocá-lo face a face com divindades, demônios e antevisões da própria morte.

Voluntários do experimento com psilocibina da NYU foram convidados a redigir um relato da experiência logo após o tratamento, e o jornalista Patrick Mettes levou a tarefa a sério. Sua mulher disse que, depois de uma das sessões – era uma sexta-feira –, ele passou o fim de semana trabalhando para compreender a experiência e descrevê-la.

Quando Mettes chegou ao local do tratamento, na Primeira Avenida com a rua 25, Tony Bossis e Krystallia Kalliontzi, seus tutores, receberam-no, repassaram a programação do dia e, às nove da manhã, deram-lhe uma pílula. Nenhum deles sabia se era placebo ou psilocibina. Perguntaram a Mettes o que ele pretendia ao se inscrever para o experimento, e ele disse que queria aprender a lidar melhor com a ansiedade e o medo do câncer. Atendendo à recomendação dos pesquisadores, levou algumas fotos que foram dispostas no cômodo – uma dele com Lisa, no dia do casamento, outra de Arlo, seu cachorro.

Às nove e meia, Mettes deitou no sofá, colocou os fones nos ouvidos, a máscara nos olhos, e ficou em silêncio. Mais tarde, ele comparou o início da viagem ao lançamento de uma nave espacial – “uma arrancada fisicamente violenta e meio desengonçada que acabou dando lugar à bendita serenidade da ausência de peso”.

Alguns voluntários que entrevistei falaram do medo intenso e da ansiedade que sentiram antes de se entregar à experiência. Os tutores seguem uma série de “instruções de voo” elaboradas por Bill Richards, psicólogo de Baltimore que trabalhou com Stanislav Grof nos anos 70 e agora prepara uma nova geração de terapeutas especializados em substâncias psicodélicas. O documento é um resumo da experiência acumulada na condução de milhares de sessões de drogas psicodélicas – e incontáveis bad trips – nos anos 60, quer ocorressem num contexto de terapia ou numa barraca em Woodstock.

A “mesma força que o leva a mergulhar fundo faz você voltar com segurança ao mundo cotidiano”, reza o manual. É obrigação dos tutores lembrar aos participantes que nunca ficarão sozinhos e que não devem se preocupar com o próprio corpo enquanto viajam, pois eles estarão atentos. Se você acha que está “morrendo, derretendo, se dissolvendo, explodindo, enlouquecendo etc., vá em frente”. E aproveite: “Suba escadas, abra portas, descubra caminhos, sobrevoe paisagens.” Caso se depare com alguma coisa assustadora, “encare o monstro de frente e pergunte: ‘O que você está fazendo na minha cabeça?’ Ou: ‘O que você pode me ensinar?’ Procure o canto mais escuro do porão e acenda sua luz ali”. Essas instruções talvez ajudem a entender por que as experiências negativas que às vezes acompanham o uso recreativo de drogas psicodélicas não ocorreram nos experimentos da NYU e da Hopkins.

Logo no início, Mettes encontrou a mulher de seu irmão, Ruth, que morrera de câncer havia mais de duas décadas, aos 43 anos de idade. Ruth “atuou como minha guia de viagem”, ele escreveu, e “não se mostrou surpresa ao me ver. ‘Usava’ seu corpo translúcido, para que eu a reconhecesse”. Michelle Obama também apareceu. “A considerável energia feminina que me rodeava deixou claro que uma mãe, qualquer mãe, não importa os defeitos que tivesse, jamais poderia NÃO amar os filhos. Isso foi muito forte. Lembro que chorei.” Ele se sentiu como se estivesse saindo do útero, como se “estivesse nascendo de novo”.

Bossis o viu chorar e respirar intensamente. Mettes falou: “Nascer e morrer dá um trabalho danado”, e parecia estar tendo convulsões. Depois, estendeu o braço e agarrou a mão de Kalliontzi, enquanto erguia os joelhos e fazia força para expelir alguma coisa, como se estivesse parindo.

“Meu Deus, agora tudo faz sentido, é tão simples, tão bonito”, murmurou.

Por volta do meio-dia, pediu para fazer uma pausa. “Estava ficando intenso demais”, escreveu. Ajudaram-no a ir ao banheiro. “Até os germes eram lindos, como tudo o mais no nosso mundo e no universo.” Depois, relutou em retomar a viagem. Escreveu: “O trabalho era considerável, mas adorei a sensação de aventura.” Recolocou a máscara nos olhos e os fones nos ouvidos, e deitou-se.

“Dali para frente, o amor era o único pensamento. Era e é o único propósito. O amor parecia emanar de um único ponto de luz. E vibrava.” Escreveu que “nenhuma sensação, nenhuma imagem do belo, nada, durante a minha estada na Terra, parecia tão puro, tão alegre e glorioso como o clímax dessa viagem”.

Então, ao meio-dia e dez, falou algo que Bossis anotou: “Pronto. Podemos ir embora. Eu já entendi.”

E viajou aos próprios pulmões, onde viu “duas manchas”. “Nada de mais.” “Disseram-me (sem palavras) para não me preocupar com o câncer, isso não é importante na ordem geral das coisas, é apenas uma imperfeição da sua humanidade”, Mettes lembrou.

Nesse momento, sofreu o que chamou de “breve morte”.

“Eu me aproximei de um objeto afiado e pontudo, de aço inoxidável. Parecia uma lâmina. Continuei, subi até o topo desse pedaço de metal reluzente e, uma vez lá, podia decidir se olhava ou não para o abismo infinito.” Hesitante, mas sem medo, decidiu olhar para “a vastidão do universo”. “Tive vontade de mergulhar, mas pensei que, se mergulhasse, poderia deixar meu corpo para sempre”, escreveu. Mas “sabia que havia muito mais para mim aqui”. Ao contar sua decisão aos tutores, explicou que “não estava pronto para saltar e abandonar Lisa”.

Perto das três da tarde, a viagem chegou ao fim. “A transição de um estado em que eu não tinha noção de tempo ou espaço para o relativo tédio de agora foi rápida. Tive dor de cabeça.”

Lisa lembrou que, quando foi buscá-lo, “parecia que ele havia corrido uma maratona. Seu rosto não tinha uma cor boa, ele estava cansado e suado, mas eufórico”. Ele disse a ela que havia tocado a face de Deus.

Bossis ficou muito comovido com a sessão. “A gente está aqui nesta sala, mas na presença de uma coisa grandiosa”, declarou. “É um exercício de humilhação ficar ali sentado. É o dia mais gratificante da profissão.”

Cada viagem psicodélica realizada sob orientação é diferente das outras, mas alguns temas parecem recorrentes. Vários pacientes com câncer que entrevistei na NYU e na Hopkins descreveram uma experiência de parir ou nascer. Muitos relataram um tête-à-tête com o próprio câncer, encontro que teve o efeito de diminuir o poder da doença sobre eles. Dinah Bazer, uma sexagenária tímida que fora diagnosticada com câncer de ovário em 2010, gritou para o vulto negro do medo que viu em sua caixa torácica: “Dane-se! Eu não vou ser devorada viva!” Depois da sessão, parou de se preocupar com a recidiva – um dos objetivos da experiência.

Grandes segredos do universo, como “Todos somos Um” ou “Só importa o amor”, muitas vezes se desvendam durante a viagem. A razão de deslumbramento e banalidade se inverte, e essas ideias adquirem uma força de verdade revelada. O sujeito vive uma espécie de experiência de conversão, que segundo os pesquisadores teria um efeito terapêutico.

Os participantes adoraram essa repentina capacidade de viajar à vontade pelo espaço e pelo tempo, de visitar a Inglaterra elisabetana, as margens do Ganges, as cenas da própria infância. O obstáculo do corpo desaparece, bem como a identidade, apesar de, paradoxalmente, continuar existindo um “eu” que percebe e registra. Diversos voluntários recorreram à metáfora de uma câmera que, ao filmar uma cena da vida da pessoa, vai se afastando até o ponto em que o sujeito pode encarar coisas que antes achava assustadoras, como tabagismo, câncer e até mesmo a morte.

Os relatos lembram o “efeito de visão geral” descrito por astronautas que avistaram a Terra a distância – experiência que, segundo alguns, alterou para sempre suas prioridades. Roland Griffiths compara a experiência terapêutica com psilocibina a uma espécie de transtorno de estresse pós-traumático “invertido” – “um único fato que produz mudanças positivas persistentes em atitudes, estados de ânimo, comportamento e, provavelmente, no cérebro”.

A morte se afigura ameaçadora e inevitável nas viagens empreendidas pelos pacientes com câncer. Uma mulher que vou chamar de Deborah Ames (ela pediu para não ser identificada), sexagenária que sobreviveu a um câncer de mama, descreveu sua passagem pelo espaço como se ocorresse num videogame até o momento em que chegou ao muro do crematório e compreendeu, apavorada: “Eu morri e agora vou ser cremada. Outra coisa que sei é que estou nesta floresta linda, nesta mata densa, debaixo do chão. Vejo raízes a minha volta, vejo as árvores crescendo e faço parte delas. Não era triste, nem alegre, apenas natural e pacato. Eu não tinha morrido. Eu fazia parte da Terra.”

Vários pacientes contaram que chegaram à beira do precipício da morte e olharam para o outro lado. Tammy Burgess, diagnosticada com câncer de ovário aos 55 anos, contemplou “a grande planície da consciência. Era muito tranquila e bonita. Eu me sentia sozinha, mas podia estender a mão e tocar alguém conhecido. Quando chegar a minha hora, é para esse lugar que vai a minha vida, depois que me deixar. E tudo bem”.

Salta aos olhos a diferença entre as descrições das viagens psicodélicas e os relatos habituais dos sonhos. Para começar, a lembrança da maioria dos “viajantes” é não só muito clara, como completa; mesmo anos depois, suas narrativas são coesas e compreensíveis. Para eles essa viagem não foi “apenas um sonho”, o produto evanescente da fantasia ou a satisfação imaginária de um desejo, mas uma experiência autêntica e sólida. É o aspecto “noético” descrito com frequência por estudiosos do misticismo – a sensação inconfundível de que o que se aprendeu ou se viu tem a autoridade e a durabilidade de uma verdade objetiva. “Isso não acontece com outras drogas”, ressalta Roland Griffiths; depois dessa viagem você tem plena consciência, e muitas vezes se envergonha, da inautenticidade da experiência com outras drogas.

Isso talvez ajude a entender por que tantos pacientes com câncer que passaram pelo experimento afirmaram que o medo da morte havia se esvaecido ou, pelo menos, diminuído: eles encararam a morte numa espécie de ensaio geral e descobriram algo sobre ela. “Uma experiência com uma dose alta de substância psicodélica é uma experiência da morte”, explica Katherine MacLean, ex-psicóloga da Hopkins. “A pessoa perde tudo que sabe que é real, abandona o ego e o corpo, e pode ter a sensação de que está morrendo.” Mas não morre – na verdade, alguns voluntários saem da experiência convencidos de que a consciência de algum modo pode sobreviver ao corpo.

Em sessões subsequentes com Bossis, Mettes se referiu a seu corpo e a seu câncer como um “tipo de ilusão” e mencionou a possibilidade de existir “alguma coisa além deste corpo físico”. Também ficou claro que, pelo menos no plano psicológico, Mettes estava indo muitíssimo bem: meditava, sentia-se mais capaz de viver no presente e dizia amar sua esposa “mais ainda”. Numa sessão em março, dois meses após a viagem, Bossis escreveu: “Mettes relata que nunca na vida foi tão feliz.”

Como avaliar a veracidade dos insights adquiridos durante uma viagem psicodélica? Uma coisa é concluir que só o amor importa, e outra, muito diferente, é sair de uma terapia convencido de que “existe outra realidade” depois da morte, como disse um voluntário, ou que há mais coisas no universo – e na consciência – do que nos levaria a crer uma visão de mundo puramente materialista. A terapia com substâncias psicodélicas só estaria fornecendo uma ilusão de conforto a doentes e pacientes terminais?

Quando fiz essa pergunta a Bossis, ele deu de ombros. “Não sei dizer”, respondeu. Bill Richards citou William James: avaliamos a experiência mística não por sua veracidade, que é incognoscível, mas por seus frutos. Ela coloca a vida de alguém numa direção positiva?

Muitos pesquisadores admitem que, quando uma droga como a psilocibina é ministrada por médicos, com sanção legal e institucional, o poder da sugestão talvez desempenhe um papel importante: em tais condições, é muito mais provável que o paciente cumpra as expectativas do terapeuta. (E muito menos provável que ocorram bad trips.) Mas quem se importa com isso, argumentam alguns, contanto que ajude?

David Nichols, professor emérito de farmacologia na Universidade Purdue – e fundador, em 1993, do Heffter Research Institute, crucial para o financiamento da pesquisa sobre drogas psicodélicas –, foi pragmático e sem rodeios numa recente entrevista à Science: “Se tranquiliza, se ajuda as pessoas a morrer em paz, ao lado de amigos e parentes, não me interessa se é real ou ilusório.”

Roland Griffiths não nega o desafio que a experiência mística coloca para o paradigma científico vigente. Admite que “autenticidade é uma questão científica que ainda não foi resolvida” e que o material de que os cientistas dispõem se resume àquilo que as pessoas contam sobre suas experiências. Acrescenta, porém, que isso também ocorre com fenômenos mentais muito mais conhecidos.

“E o milagre de sermos conscientes? Pense nisso por um segundo: nós temos consciência de que temos consciência!” Ele estava dizendo que, se eu aceitava um milagre que fugia ao entendimento da ciência materialista, também devia ficar aberto à possibilidade de outros.

“Estou disposto a reconhecer que aqui há um mistério que não compreendemos, que essas experiências podem ou não serverdadeiras”, disse. “O que eu acho fantástico é usar as ferramentas de que dispomos para estudar e destrinchar esse mistério.”

Talvez a tentativa mais ambiciosa de destrinchar o mistério científico da experiência com substâncias psicodélicas esteja ocorrendo num laboratório do Imperial College, em Londres. É lá que Robin Carhart-Harris, um neurocientista de 34 anos, está injetando psilocibina e LSD em voluntários sadios, monitorando seus cérebros por meio de diversas técnicas de exame – inclusive ressonância nuclear magnética funcional (fMRI) e magnetoencefalografia (MEG).

Carhart-Harris trabalha no laboratório de David Nutt, eminente psicofarmacologista inglês que atuou como consultor na política de drogas do governo trabalhista até 2009, quando foi demitido por defender a reclassificação das drogas psicodélicas, ao argumentar que são mais seguras que o álcool ou o tabaco, e potencialmente inestimáveis para a neurociência. Carhart-Harris seguiu um caminho sui generis para chegar à neurociência. Primeiro, estudou psicanálise – campo que poucos neurocientistas levam a sério, considerando-o menos como ciência do que como um conjunto de crenças inverificáveis. Ficou encantado com a teoria psicanalítica, mas frustrado com sua escassez de ferramentas para examinar o que considera a parte mais importante da mente: o inconsciente.

“Se tudo que temos para acessar o inconsciente são os sonhos e a livre associação, não sairemos do lugar”, disse. “Com certeza deve haver outro meio.” Um dia, perguntou a uma professora se esse meio poderia ser uma droga. Ela ficou intrigada. Ao procurar “LSD e o inconsciente” no catálogo da biblioteca, ele encontrouRealms of the Human Unconscious [Áreas do Inconsciente Humano], de Stanislav Grof, cuja leitura mudou o rumo da sua vida.

Magro e intenso, com olhos de um azul-claro que raramente piscam, Carhart-Harris resolveu recorrer a drogas psicodélicas e técnicas modernas de imagens cerebrais para conferir à psicanálise uma base científica sólida. “Freud falou que os sonhos eram o caminho mais fácil para chegar ao inconsciente”, disse ele em nossa primeira entrevista. “O LSD talvez seja a via expressa.” Nutt não só o deixou testar esse palpite em seu laboratório, como tratou de se ocupar da burocracia e de conseguir financiamento (junto à Beckley Foundation, que apoia pesquisas sobre drogas psicodélicas).

Em 2010, quando Carhart-Harris começou a estudar o cérebro de indivíduos sob o efeito de substâncias psicodélicas, os neurocientistas achavam que essas drogas estimulavam a atividade cerebral – e a isso se deviam as vívidas alucinações e as fortes emoções relatadas pelos usuários. No entanto, ao analisar as primeiras imagens obtidas através de fMRI – que ao mapear o fluxo sanguíneo e o consumo de oxigênio no cérebro mostra as áreas de atividade cerebral –, Carhart-Harris observou que a droga parecia reduzir substancialmente a atividade cerebral numa região específica: a rede neural em modo padrão (Default Mode Network, ou simplesmente DMN).

Arede neural em modo padrão foi descrita pela primeira vez em 2001 num estudo seminal de Marcus Raichle, neurologista da Universidade Washington, em Saint Louis, e desde então tem sido objeto de muita discussão no campo da neurociência. A rede compreende um núcleo de atividade cerebral que, situado num ponto crítico e central, conecta partes do córtex cerebral com estruturas mais profundas e mais primitivas do cérebro, como o sistema límbico e o hipocampo.

A rede, que consome uma quantidade considerável da energia cerebral, parece realizar o máximo de atividade quando estamos menos ocupados em observar o que vai pelo mundo ou em desempenhar uma tarefa. Ela se ativa quando estamos devaneando, afastados de qualquer processamento sensorial e voltados a processos “metacognitivos” de nível mais elevado, como autorreflexão, viagem mental no tempo, ruminação e “teoria da mente” – a capacidade de atribuir estados mentais a outras pessoas. Carhart-Harris define a DMN como o “regente da orquestra” do cérebro, o “executivo da empresa” ou a “capital do país”, cuja função é administrar e “manter unido todo o sistema”. É a contraparte física do eu autobiográfico, ou ego.

“O cérebro é um sistema hierárquico”, disse Carhart-Harris. “As partes do nível mais alto” – como a DMN – “exercem uma influência inibitória sobre as partes de nível mais baixo, como a emoção e a memória.” Ele descobriu que, na rede neural em modo padrão, o fluxo sanguíneo e a atividade elétrica caem vertiginosamente sob a influência das drogas psicodélicas, o que talvez ajude a entender a perda do senso do eu mencionada pelos voluntários. (As maiores quedas na atividade da DMN estão em sintonia com os relatos de dissolução do ego feitos pelos voluntários.)

Pouco antes de Carhart-Harris publicar seus resultados na revistaProceedings of the National Academy of Sciences, num trabalho de 2012, Judson Brewer, um pesquisador de Yale que estava usando fMRI para estudar o cérebro de praticantes de meditação experientes, observou que, comparada à dos praticantes neófitos, a rede neural em modo padrão desses indivíduos também se aquietava. Com o ego temporariamente fora de ação, as fronteiras entre o eu e o mundo, o sujeito e o objeto, também se dissolvem. Essas são características da experiência mística.

Se a DMN funciona como o regente da sinfonia da atividade cerebral, é de se esperar que sua saída do palco acarrete um aumento da dissonância e da desordem mental – como parece acontecer durante a viagem psicodélica. Carhart-Harris encontrou em imagens de ondas cerebrais evidências de que, quando a rede neural em modo padrão encerra o expediente, outras áreas do cérebro “ficam fora de controle”. Conteúdos mentais escondidos (ou suprimidos) no estado consciente normal ganham o primeiro plano: emoções, lembranças, desejos e temores. Áreas que, em geral, não se comunicam diretamente põem-se a conversar (os neurocientistas às vezes chamam isso de “linha cruzada” ou “interferência mútua”), com frequência com resultados bizarros. Para Carhart-Harris, as alucinações ocorrem quando os centros cerebrais de processamento visual, abandonados à própria sorte, se tornam mais suscetíveis à influência de nossas crenças e emoções.

Carhart-Harris não romantiza as drogas psicodélicas e não tem muita paciência com o tipo de “pensamento mágico” e de “metafísica” que elas promovem. As formas de consciência liberadas por tais substâncias seriam regressões a um “estilo de cognição [mais] primitivo”. Na esteira de Freud, ele diz que a experiência mística – seja qual for a fonte – nos faz regredir à condição psicológica do bebê, que ainda não desenvolveu uma noção de si mesmo como um indivíduo limitado. O auge do desenvolvimento humano é a conquista do ego, que impõe ordem à anarquia de uma mente primitiva fustigada pelo pensamento mágico. (Alison Gopnik, psicóloga do desenvolvimento, acha que a maneira como as crianças pequenas percebem o mundo tem muito em comum com a experiência com drogas psicodélicas. “Elas estão viajando o tempo todo”, afirma.) Segundo Carhart-Harris, a importância psicanalítica das drogas psicodélicas consiste em nos permitir trazer “para um espaço observável” as atividades da mente inconsciente.

Em As Portas da Percepção, Aldous Huxley conclui que a mente consciente, mais do que uma janela para a realidade, é um furioso editor da realidade. A mente é uma “válvula redutora”, escreveu, que para não nos sobrecarregar elimina do real muito mais do que admite para nossa percepção consciente. “O que sai do outro lado é um reles fiapo de uma certa consciência que vai nos ajudar a nos manter vivos.” As drogas psicodélicas abrem a válvula por completo, removendo o filtro que esconde da consciência comum grande parte da realidade e as dimensões de nossa mente. Carhart-Harris cita a metáfora de Huxley em alguns de seus trabalhos, comparando a rede neural em modo padrão à válvula redutora, porém não concorda que tudo que passa pelas portas abertas da percepção seja necessariamente real. A experiência com drogas psicodélicas pode produzir muito “ouro dos tolos”, avisa.

Mas ele também acredita que pode ajudar as pessoas, relaxando a pressão exercida por um ego dominador e a rigidez do pensamento que ele habitualmente impõe. O cérebro humano talvez seja o sistema mais complexo que existe, e o surgimento de um eu consciente é sua maior conquista. Na idade adulta, a mente já sabe muito bem observar e testar a realidade, além de fazer previsões confiantes que otimizam nossos investimentos de energia (mental e de outros tipos) e, portanto, nossa sobrevivência. Grande parte do que consideramos percepções do mundo são, na verdade, estimativas baseadas no conhecimento e na experiência vivida. (“Essa infinidade de coisinhas verdes no meu campo visual deve ser uma árvore.”) E esse tipo de pensamento convencional nos basta.

Mas até certo ponto. Na visão de Carhart-Harris, pagamos um preço exorbitante pela conquista da ordem e do ego na mente adulta: “Abrimos mão da nossa instabilidade emocional, da capacidade de estar aberto a surpresas, ser flexível na maneira de pensar e de valorizar a natureza.” O ego soberano pode se tornar um déspota. Isso talvez seja mais evidente nos casos de depressão, quando o ego se volta contra si mesmo e uma introspecção incontrolável pouco a pouco obscurece a realidade. Em “O cérebro entrópico”, trabalho publicado no ano passado em Frontiers in Human Neuroscience, Carhart-Harris cita uma pesquisa que indica que esse estado debilitante, às vezes rotulado de “excessiva preocupação consigo mesmo”, pode ser o resultado de uma rede neural em modo padrão “hiperativa”. O laboratório recebeu recentemente verbas do governo para conduzir um estudo clínico sobre o uso de drogas psicodélicas no tratamento da depressão.

Carhart-Harris acredita que as drogas psicodélicas, que “rompem padrões de pensamento e comportamento estereotipados”, podem ajudar portadores de outros transtornos mentais caracterizados por padrões de pensamento excessivamente rígidos, como é o caso dos vícios e do transtorno obsessivo-compulsivo. A seu ver, todos esses transtornos são, em certo sentido, doenças do ego. Ele também acha que essa ruptura poderia favorecer o pensamento criativo. Um pouco menos de ordem talvez seja benéfico para alguns cérebros.

Aangústia existencial no fim da vida tem muitas das características psicológicas de uma DMN hiperativa, inclusive a autorreflexão excessiva e a incapacidade de evitar os sulcos cada vez mais profundos do pensamento negativo. Ante a perspectiva da própria dissolução, o ego se torna hipervigilante e retira seu investimento no mundo e nas outras pessoas. É impressionante que uma única experiência com drogas psicodélicas – uma intervenção que Carhart-Harris chama de “sacudir a bola de cristal com flocos de neve” – tenha a capacidade de alterar esses padrões de modo duradouro.

Aparentemente, é o caso de muitos pacientes que passaram pelo experimento clínico recém-concluído na Hopkins e na NYU. Depois de sua viagem com psilocibina, Patrick Mettes ainda viveu dezessete meses. Segundo Lisa, durante esse período ele teve muitos prazeres inesperados e também começou a aceitar a morte.

“Continuamos discutindo”, Lisa lembrou. “E passamos um mau pedaço no verão”, quando enfrentaram uma calamitosa reforma no apartamento. Mas Mettes “manifestou uma paciência que nunca havia tido, e juntos de fato experimentamos muitas alegrias”, ela acrescentou. “Era como se ele tivesse se livrado da obrigação de cuidar dos detalhes da vida. Agora podia ficar com as pessoas, saborear um sanduíche e um passeio. Foi como se vivêssemos uma vida inteira num ano.”

Depois que passou pela sessão de psilocibina, em seus dias bons Mettes caminhava pela cidade. “Andava por toda parte, experimentava restaurantes novos e na volta me contava sobre suas descobertas. Mas os dias bons foram se tornando cada vez mais raros.” Em março de 2012, ele parou com a quimioterapia. “Ele não queria morrer”, Lisa disse. “Mas acho que decidiu que não era assim que queria viver.”

Em abril, com os pulmões enfraquecidos, Mettes voltou para o hospital. “Ele reuniu todo mundo, se despediu e explicou que era assim que queria morrer. Ele teve uma morte muito consciente.”

A serenidade de Mettes tocou profundamente todos que o rodeavam, disse Lisa, e seu quarto, na unidade de cuidados paliativos do hospital Mount Sinai, tornou-se um centro de gravidade. “Todo mundo, as enfermeiras, os médicos queriam ficar no nosso quarto, ninguém queria ir embora. Mettes falava sem parar. Ele tinha muito amor para dar.” Quando o visitou, na semana anterior a sua morte, Tony Bossis ficou impressionado com sua serenidade. “Ele me consolou. Disse que sua maior tristeza era deixar a mulher. Mas ele mesmo não estava com medo.”

Lisa fotografou o marido dias antes de sua morte, e quando vi a foto fiquei sem fôlego: um homem magérrimo, com a camisola do hospital, um tubo de oxigênio no nariz, mas com uns olhos azuis reluzentes e um sorriso largo. Ela passou noites e noites no hospital, quase sempre em conversas que se estendiam até o amanhecer. “Eu me sinto como se estivesse com um pé neste mundo e um pé no outro”, ela ouviu dele. Numa das últimas noites, ele disse a ela: “Não me empurre, meu bem. Eu estou achando o caminho.”

Lisa não tomava banho havia alguns dias, e seu irmão a convenceu a ir para casa por algumas horas. Minutos antes de ela voltar, Mettes morreu. “Ele não ia morrer enquanto eu estivesse lá”, disse Lisa, que se declarou agradecida ao pessoal que conduziu o experimento na nyu e convencida de que a experiência com psilocibina “permitiu que ele conhecesse seus recursos profundos. É isso que fazem essas drogas que alteram a mente”.

Apesar dos resultados encorajadores dos experimentos realizados na NYU e na Hopkins, são muitos os obstáculos ao uso rotineiro de uma terapia com substâncias psicodélicas. “Não morremos bem nos Estados Unidos”, comentou Bossis durante um almoço num restaurante próximo ao centro médico da NYU. “Pergunte às pessoas onde querem morrer, e elas vão dizer que querem morrer em casa, na companhia dos entes queridos. Mas a maioria morre numa UTI. O maior tabu na medicina americana é conversar sobre a morte. Para um médico, deixar um paciente morrer significa uma derrota.”

Bossis e vários colegas mencionaram a dificuldade em recrutar pacientes para os experimentos com psilocibina. “Eu me desdobro para tentar manter meus pacientes vivos”, disse um oncologista a Gabrielle Agin-Liebes, que administra o projeto dos experimentos. Só quando relatos de experiências positivas começaram a chegar ao centro oncológico, as enfermeiras – não os médicos – passaram a falar com os pacientes sobre o experimento.

O recrutamento é um dos muitos desafios que terá de enfrentar uma Fase III do experimento com psilocibina – que deve envolver centenas de pacientes em diversos locais e custar alguns milhões de dólares. A Universidade de Wisconsin e a Universidade da Califórnia, em Los Angeles, pretendem participar desse experimento, porém a aprovação da FDA não está garantida. Se ele for bem-sucedido, o governo será pressionado a reconhecer o uso médico da droga e reclassificá-la de acordo com as categorias da Lei de Substâncias Controladas.

Também parece improvável que o governo financie um estudo desse tipo. “O NIMH não se opõe ao trabalho com drogas psicodélicas, mas duvido que façamos um grande investimento nisso”, declarou Tom Insel, diretor do instituto. Ele me disse que o NIMH precisaria vislumbrar “alguma possibilidade” e desconfia que “seria muito difícil encontrar uma empresa farmacêutica interessada em produzir essa droga, pois ela não pode ser patenteada”. Além do mais, a droga seria ministrada apenas uma ou duas vezes no decorrer do tratamento, o que seria outro empecilho para o interesse da indústria farmacêutica. “Não entregam um monte de dinheiro para uma cura que pode ocorrer numa única sessão”, Bossis ressaltou. Não obstante, Bob Jesse e Rick Doblin acreditam que conseguirão fundos de particulares, e vários cidadãos com os quais conversei sugeriram que em breve esse dinheiro se materializaria.

Muitos dos pesquisadores e terapeutas que entrevistei acreditam que a terapia com substâncias psicodélicas acabará se tornando rotina. Katherine MacLean espera criar uma “clínica psicodélica para pacientes terminais”, um refúgio onde pacientes e seus próximos possam recorrer às drogas psicodélicas. “Se limitarmos a substância aos pacientes, continuaremos a seguir o velho modelo da medicina”, disse. “Mas essas drogas são muito mais radicais do que isso. Fico preocupada quando dizem que só deveriam ser prescritas por um médico.”

Segundo a médica, há um revival do entusiasmo dos anos 60 com o potencial das drogas para ajudar uma ampla gama de indivíduos. A expectativa com as substâncias psicodélicas e o desânimo com a lentidão da ciência ajudaram a atiçar a reação contra as estruturas pesadonas da medicina.

Contudo, “o aperfeiçoamento de gente saudável”, para usar uma expressão de Bob Jesse, está na cabeça de grande parte dos pesquisadores que entrevistei, alguns dos quais relutaram em discorrer sobre o tema, à diferença de Jesse e MacLean, que entendem o otimismo por parte da classe médica como um primeiro passo para uma aceitação cultural mais abrangente. Jesse gostaria de ver as drogas ministradas por tutores habilitados em “contextos longitudinais[1] multigeracionais” – que, em sua descrição, parecem muito com comunidades religiosas.

Outros imaginam uma época em que quem quiser experimentar drogas psicodélicas – seja por mera curiosidade, seja pela saúde mental ou busca espiritual – poderá ir a um “clube de saúde mental”, assim descrito por Julie Holland, ex-psiquiatra do Bellevue: “Um misto de spa, retiro e academia de ginástica, onde as pessoas podem experimentar essas drogas num ambiente seguro e com o devido apoio.”

Todos enfatizaram a importância de tutores bem treinados (em 2008, a NYU criou um programa de treinamento para terapia com psilocibina, dirigido por
Jeffrey Guss, um dos pesquisadores de ponta para tais experimentos) e da necessidade de ajudar as pessoas a “integrar” suas poderosas experiências para torná-las de fato úteis. Isso não acontece quando essas drogas são usadas recreativamente. Bossis parafraseia Huston Smith: “Uma experiência espiritual por si só não torna espiritual uma vida.”

Quando lhe perguntei se estava preocupado com mais uma reação negativa, Rick Doblin respondeu que “nos anos 60 a cultura era muito diferente. Ninguém falava de câncer ou de morte. As mulheres eram sedadas ao dar à luz, os homens não podiam entrar na sala de parto. Ioga e meditação eram aves raras. Agora meditação está na moda, todo mundo faz ioga e em todo lugar há clínicas de parto ou para pacientes terminais. Incorporamos tudo isso à cultura. E creio que hoje estamos prontos para incorporar as drogas psicodélicas”. Doblin também assinala que muitos dos responsáveis por nossas instituições têm ou tiveram alguma experiência pessoal com essas drogas e por isso não se sentem tão ameaçados por elas.

Bossis gostaria de partilhar o otimismo de Doblin e espera que “o legado desse trabalho” seja o uso rotineiro de tais drogas em cuidados paliativos. Mas também acha que a prescrição médica pode encontrar resistência. “Esta cultura tem medo da morte, medo da transcendência, medo do desconhecido – tudo que esse trabalho representa.” Tais drogas podem ser subversivas demais para nossa sociedade e nossas instituições.

A primeira vez que mencionei “o aperfeiçoamento de gente saudável”, Roland Griffiths se mexeu na cadeira e escolheu as palavras com todo o cuidado. “Do ponto de vista cultural, no momento é perigoso promover essa ideia”, declarou. Mas no decorrer da conversa ficou evidente que ele também acredita que essas moléculas, e as experiências espirituais que elas podem ocasionar, sejam capazes de ajudar muita gente.

“Todos estamos em fase terminal”, acrescentou. “Todos enfrentamos a morte. Isso vai ser valioso demais para ficar restrito aos doentes.”


(1)Estudo longitudinal diz respeito a uma pesquisa em que os mesmos indivíduos são observados repetidamente durante um tempo.

04 de novembro de 2015
MICHAEL POLLAN