terça-feira, 8 de setembro de 2015

MARXISMO CULTURAL NO BRASIL

04 A infiltração do marxismo cultural no Brasil ... - YouTube

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08 de setembro de 2015
m.americo

O COLECIONADOR




Depois de uma vida dedicada às mariposas, Vitor Becker põe em prática seu ambientalismo antiutilitário


No final de junho, um casal de australianos acompanhado do filho visitou o entomólogo Vitor Becker em sua propriedade na Serra Bonita, ao sul da Bahia, numa área preservada da Mata Atlântica. Em sua pousada, Becker costuma receber observadores de aves, ecoturistas e pesquisadores. O australiano, especialista em répteis, aproveitou uma viagem à América do Sul para mostrar à família a reserva que conhecera alguns anos antes. O anfitrião deixou para o último dia a cereja do bolo: o tour guiado da coleção de mariposas que ele vem acumulando nos últimos cinquenta anos.

Becker desceu um lance de escadas e acompanhou os hóspedes até uma sala sem janelas com cerca de 40 metros quadrados, onde se acomodam seis fileiras de armários de cedro com gavetas de alto a baixo. “Tenho cerca de 300 mil espécimes, representando 30 mil espécies diferentes”, informou o pesquisador, destacando que outras 20 mil mariposas suas estão emprestadas a colegas e instituições. Foram todas coletadas por ele no continente americano, do Rio Grande do Sul até o sul dos Estados Unidos. Metade do acervo vem do Brasil, e o resto, de países como Peru, Equador, México e Cuba, além de outras ilhas caribenhas e de praticamente toda a América Central.

A coleção de Becker é abrigada em 1 600 gavetas, algumas com centenas de espécimes. As mariposas são dispostas com as asas abertas, presas por alfinetes no centro do tórax, e são distribuídas em pequenas caixas de papelão, cada uma com insetos de uma espécie diferente. Sob cada indivíduo há uma etiqueta impressa com tipos miúdos que registram o nome científico, o local e a data da captura do espécime.

“Este é o maior lepidóptero do mundo”, anunciou o pesquisador, ao abrir uma gaveta com quatro exemplares da espécie Thysania agrippina. Lepidópteros é o nome dado ao grupo de insetos que inclui mariposas e borboletas – Becker coleciona só as primeiras. O gigante da turma tem uma envergadura de até 30 centímetros, a maior dentre todos os insetos – maior que a mão aberta de um adulto, poderia facilmente passar por um pássaro em pleno voo. Uma das Thysanias de Becker foi coletada no México, outra no Paraná e as outras duas são da própria Serra Bonita. O colecionador contou que a espécie é uma figurinha fácil e pode ser encontrada do México ao norte da Argentina. “Vez ou outra aparece uma, mas nem pego, porque ocupa muito espaço”, contou.

Becker disse que em alguns casos é capaz de se lembrar da noite em que coletou uma mariposa só de abrir a gaveta. Pedi-lhe que me mostrasse um espécime muito antigo do acervo, e ele se pôs a vasculhar os armários. Retirava as gavetas e as trazia até a altura dos olhos num ângulo enviesado que lhe permitia ler as etiquetas diminutas. Repetiu o procedimento uma boa dúzia de vezes até se deparar com um espécime de porte médio e asa acinzentada. Leu em voz alta a data na etiqueta: 16 de dezembro de 1967. “Um dia depois que me formei”, disse.

Catarinense, Becker mora na Bahia desde 2002, quando começou a pôr em prática o projeto acalentado por anosde construir um centro de pesquisa no meio da mata, num lugar onde pudesse dar sequência a seus estudos depois de se aposentar. O prédio que abriga as mariposas foi projetado para acolher acoleção, conforme o entomólogo explicou aos australianos. “O lugar mais seguro tinha que ser essa sala, para que não houvesse entrada de luz ou infiltrações.” Ao redor do cômodo, um corredor dá acesso a laboratórios com bancada e microscópios, e a uma biblioteca de entomologia com cerca de 7 mil títulos.

Uma coleção de insetos é, em última instância, um grande cemitério, do qual convém manter afastados os agentes de decomposição. O cômodo em que ficam as mariposas vive impregnado de cheiro de naftalina – são duas ou três bolinhas em cada gaveta para afugentar as traças. Um desumidificador combate o principal inimigo, os fungos – quando a umidade do ambiente passa de 60%, o aparelho é automaticamente acionado.

A coleção está organizada por ordem de parentesco evolutivo, dos grupos mais antigos àqueles que surgiram mais recentemente. Becker é um especialista em taxonomia, ramo da biologia que se dedica à descrição e classificação dos seres vivos. Um rápido exame visual lhe basta para dizer a qual das quase 130 famílias de lepidópteros o indivíduo pertence. “Vitor sabe mais sobre as mariposas da América Latina do que qualquer outra pessoa viva”, disse o americano Scott Miller, entomólogo do vetusto Instituto Smithsonian, em Washington, dono de um dos maiores acervos de lepidópteros do mundo, com 4 milhões de espécimes.



Descrever e classificar os seres a sua volta – a missão dos taxonomistas – é uma tarefa que os humanos praticam desde que se aventuraram a entender o mundo. No Gênesis, Adão se põe a nomear “a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras” antes mesmo de Deus lhe arrancar uma costela para lhe dar uma companheira. Ordenar os seres vivos não difere essencialmente do que fazemos ao organizar roupas, livros ou arquivos de computador, agrupando os semelhantes e separando os diferentes – classificar é a nossa resposta intuitiva ao anseio de dar ordem ao caos.

A taxonomia ganhou ares de ciência no século XVIII, com o trabalho de um médico e naturalista sueco que ficou conhecido pela forma latina do seu nome, Carolus Linnaeus (ou Lineu, na grafia aportuguesada). Foi ele quem propôs o sistema até hoje adotado para designar as espécies vivas, com um nome duplo em latim iniciado pelo gênero ao qual pertence a planta ou animal, como se o sobrenome viesse na frente. A lombriga é Ascaris lumbricoides, o abacaxi é Ananas comosus, o gato é Felis catus e os humanos somos Homo sapiens, para citar alguns dos 10 mil nomes que Lineu sugeriu (foi também o primeiro a empregar o termo “lepidóptero”).

A taxonomia moderna inaugurada por Lineu ajudou a pôr ordem nas coleções de insetos que proliferavam na Europa desde o século XVI, quando surgiram os “gabinetes de curiosidades”. Em tais “quartos das maravilhas”, os renascentistas reuniam toda sorte de objetos que os fascinavam, muitos deles trazidos após expedições a terras recém-descobertas – pinturas e esculturas, medalhas e instrumentos científicos, além de fósseis e animais empalhados. Esses gabinetes são o embrião dos museus tais como os conhecemos hoje – os acervos dos museus de história natural de Londres e Paris, dentre muitos outros, originaram-se de espaços como esses.

Tão primordial quanto subestimada, a taxonomia é vista por muitos pesquisadores de outras especialidades como uma disciplina fora de moda, de importância menor, que se contenta em etiquetar os seres vivos. Outros ramos das ciências da vida, como a bioquímica ou a genética, gozam de mais prestígio (e verbas para pesquisa). Mas nenhum deles pode prescindir do saber gerado pelos taxonomistas. Os ecólogos que costumam estudar a interação dos insetos com as plantas, por exemplo, não vão muito longe sem a ajuda de um especialista que os ajude a identificar as espécies que coletam em campo. E apenas os taxonomistas podem dar um rg a espécies fundamentais para o equilíbrio ambiental.

Um dos principais traços usados para classificar as mariposas é a morfologia dos genitais. Em cada espécie, as peças acessórias do órgão do macho têm um formato que se encaixa na fêmea. “É como chave e fechadura: se tentar com espécie diferente, não acopla direito”, comparou Becker. A observação dessa particularidade, praticada desde o final do século XIX, logo virou praxe. “Basta uma lâmina de microscópio com a genitália e já é possível dizer de que família o bicho é”, explicou.

Recentemente, as ferramentas da biologia molecular mais uma vez revolucionaram a taxonomia ao permitir discriminar as relações de parentesco na escala do DNA. Soletrando o genoma de uma espécie, os biólogos conseguem inseri-la com mais precisão na árvore genealógica do grupo. Embora adepto da taxonomia clássica, baseada em traços anatômicos externos e internos, Becker acompanha as novidades da biologia molecular. Explicou que, no caso das mariposas, o DNA veio a ratificar a maioria das divisões que haviam sido estabelecidas a partir da morfologia. Mas de vez em quando ele se vê obrigado a remanejar sua coleção em função da nova árvore genealógica dos lepidópteros.

Desde o fim da década de 90, os conhecimentos do pesquisador têm lhe valido convites regulares do Smithsonian e de outras instituições para ajudar a classificar coleções de mariposas da América tropical. “Temos um acervo vasto e nossa equipe é de tamanho limitado, de forma que dependemos intensamente de pesquisadores visitantes com conhecimento especializado que nos ajudam com a curadoria da coleção, determinando o gênero e espécime de exemplares que não haviam sido identificados”, disse-me o entomólogo Don Davis, de 81 anos, curador emérito do acervo de lepidópteros do Smithsonian.



Vitor Osmar Becker é um homem magro de 70 anos, barba grisalha e óculos quadrados de armação fina, com um carregado sotaque sulista que se faz notar inclusive em seu inglês fluente. Primogênito de dezessete irmãos, nasceu em 1944 na zona rural de Brusque, no interior de Santa Catarina, filho de um agricultor descendente de alemães de terceira geração. Estudou engenharia agronômica numa escola gaúcha mais tarde incorporada à Universidade Federal de Pelotas. O curso começou semanas antes do golpe de 1964 – o que o aproximou dos movimentos estudantis de resistência à ditadura.

Entre um gole e outro de chimarrão, Becker contou que seu interesse por insetos foi despertado por Czesław Bieżanko, professor polonês especialista em borboletas que dava aulas de entomologia na universidade de Pelotas. Becker procurou o professor antes do início das aulas – durante as férias, o aluno aplicado queria preparar a coleção de insetos que apresentaria como trabalho de fim de curso. Voltou de viagem com inúmeras caixas de charuto que armazenavam cerca de 300 exemplares – principalmente de lepidópteros, que ele sabia ser o forte do professor. Bieżanko se impressionou com o que viu: havia espécies raras, algumas que nem ele tinha. “O material está muito bem preparado para um principiante”, elogiou.

O estudante ficou amigo do professor, passou a frequentar sua casa e saíam juntos para coletar insetos. Quando se formou, em 1967, tinha cerca de 2 mil espécimes. “Naquele momento eu já sabia que queria trabalhar com pesquisa e com lepidópteros”, contou. Mas reconheceu certa arbitrariedade em sua escolha. “Se o professor fosse botânico, talvez eu tivesse ido estudar plantas.” A especialização foi uma deliberação pragmática: como já havia meia dúzia de pesquisadores brasileiros ocupados com borboletas e nenhum com mariposas, decidiu se dedicar aos lepidópteros mais feios e desprestigiados.

Durante um estágio no Instituto Biológico, em São Paulo, ficou conhecendo Clemira Ordoñez Souza, uma professora paraense estabelecida na cidade. Foram viver juntos em 1969 e viajaram para Curitiba – Becker fora recrutado por um projeto para estudar a broca-do-cedro, uma praga agrícola causada pela lagarta de uma mariposa.

A ditadura militar entrava em seu momento mais duro, e mais aguçado ficava o engajamento do casal na resistência ao regime. Eram militantes da Ação Popular, grupo de esquerda surgido nos anos 60 e mais tarde integrado ao PCdoB. Becker fazia pichações e distribuía panfletos, e o apartamento deles se tornou um abrigo para refugiados. Não se casaram no papel porque ele temia que, caso desaparecesse, a mulher nunca tivesse reconhecida a viuvez.

Tiveram três filhos, que batizaram com nomes de origem tupi: Robiara, Moema e Apoena. A família morou na Costa Rica e na Inglaterra (onde Beckerfez mestrado e doutorado, respectivamente), e acabou se fixando em Brasília, uma vez que o entomólogo foi contratado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, na unidade voltada para o estudo do cerrado. Mariposas podem parecer inofensivas para a agricultura, mas as lagartas que elas foram antes de voar se alimentam de folhas variadas, inclusive de cultivos de importância econômica como milho e soja. Muitas são tratadas como pragas, que Becker ajudava a identificar para combater.

O casal comprou uma casa na Asa Norte, provida de um subsolo destinado às pesquisas do entomólogo, com quartos para abrigar a coleção, um laboratório e uma biblioteca. Era lá que ele passava a maior parte do tempo, conforme a lembrança da filha Moema Becker. “Desde que me entendo por gente, ele trabalhava com os bichos todas as horas do dia em que estivesse acordado”, ela me disse numa entrevista telefônica.

Circulou em Brasília a notícia de que um pesquisador local mantinha a maior coleção de mariposas do país. Depois de uma reportagem do Correio Braziliense sobre o acervo, um deputado distrital indicou Becker ao título de cidadão honorário da capital federal. Desconfiado, antes de aceitar a honraria o ex-militante pediu a relação dos outros agraciados. “Tinha milico torturador, político acusado de corrupção”, contou. Agradeceu a lembrança, mas alegou que não tinha o perfil dos homenageados.

Os três filhos foram criados com uma preocupação ambiental incomum para a época. No quintal, faziam a compostagem do lixo orgânico da casa, quando nem se falava em coleta seletiva. Nas viagens de férias, o pai levava a família a tiracolo para capturar mariposas pelo Brasil afora e estimulava o contato com a natureza. Era proibido matar animais de qualquer tipo. “A gente não entendia por que as outras crianças não toleravam bichos”, disse-me Apoena Becker, por telefone. “Quando viam aranha ou formiga, o instinto era matar o bicho. Já a gente corria e dizia: ‘Calma, deixa que eu pego e levo pra outro lugar.’”



Mais de 180 mil espécies de lepidópteros já foram descritas pela ciência, mas o número pode ser bem maior. O nome da ordem vem da união de dois radicais gregos – lepidos e pteron– e quer dizer “asas com escamas”, seu traço distintivo. Quando perdem as escamas, dão a impressão de que secretam um pó – que poderia cegar alguém, segundo um mito bastante difundido, mas que no máximo é capaz de irritar os olhos.

Embora as borboletas sejam mais populares e conhecidas do público, elas representam apenas 10% do grupo. Distinguir umas das outras pode parecer simples: as borboletas voam de dia, pousam com as asas fechadas como duas páginas de um livro e têm uma protuberância na ponta da antena; já as mariposas têm hábitos noturnos, pousam de asa aberta, como uma aeronave estacionada, e sua antena é mais curta e grossa. Mas as exceções a essas regras fazem da classificação um exercício capcioso.

A cor também é um elemento distintivo. As mariposas geralmente têm o tom de cascas ou folhas secas, confundindo-se com o ambiente. Algumas borboletas, por sua vez, apresentam cores vivas, que as tornam bem visíveis para os predadores. Trata-se de um alerta a quem ficar tentado a ingeri-las: a aparência chamativa sinaliza que elas são tóxicas, como um aviso de “inseto indigesto” piscando em neon.

Arroz de festa nos livros didáticos de biologia, o ciclo de vida dos lepidópteros é o exemplo típico da metamorfose, com a imagem da lagarta que se recolhe na pupa até que dali emerja um adulto alado. A maioria dos insetos passa por esse processo, mas em nenhuma outra ordem as fases da vida são tão distintas entre si.

Quando adultas, em geral as mariposas e borboletas se alimentam do néctar das flores – sugado através de uma tromba chamada probóscide –, e com frequência os grãos de pólen grudados em seu aparelho bucal são transportados até a próxima flor que visitam. “Os lepidópteros são os agricultores da floresta”, costuma dizer em palestras o entomólogo Alexandre Soares, que cuida da coleção de borboletas e mariposas do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

Borboletas e mariposas são os únicos animais capazes de polinizar certas flores. “Milhares de espécies de plantas – particularmente as orquídeas – desapareceriam se os lepidópteros fossem extintos”, afirmou Vitor Becker. Muitos desses insetos são polinizadores generalistas, contribuindo para a reprodução de várias espécies vegetais, enquanto outros foram selecionados pela evolução para polinizar plantas específicas. Dentre os exemplos mais notáveis estão certas mariposas que podem passar por beija-flores, uma vez que ficam suspensas no ar enquanto se alimentam. Para conseguir tal prodígio, esses insetos precisam se alimentar de flores abundantes em néctar, diferentemente de mariposas de outras famílias, que se alimentam pousadas sobre a flor.

No século XIX, um colecionador colheu uma orquídea singular em Madagascar e a enviou a Charles Darwin, entusiasta dessas plantas. A geometria da flor era de tal ordem que o néctar estaria acessível apenas a um bicho com uma língua de quase 30 centímetros. Intrigado, o naturalista escreveu que na ilha africana devia haver uma mariposa com aquelas características, mas não viveu para ver a descoberta de uma subespécie – batizada Xanthopan morganii praedicta– que correspondia exatamente à previsão feita por ele. Depois disso, quase um século se passou até que o flagra desse inseto polinizando a orquídea fosse documentado, sacramentando o vaticínio de Darwin.



Para coletar mariposas, é preciso acender uma lâmpada ultravioleta ao lado de um grande lençol branco, pendurado verticalmente, de preferência numa noite de lua nova. Até o amanhecer, inúmeros espécimes acabarão pousando sobre o pano e ali permanecerão imóveis, restando ao pesquisador escolher aqueles que lhe interessam e capturá-los com um frasco. O senso comum dirá que os insetos são atraídos pela luz, mas a explicação é mais complexa: a maior parte dos entomólogos acredita que a lâmpada desorienta o voo das mariposas, que geralmente é guiado pela luz da lua, e por isso elas vão parar no lençol.

Um investigador de mariposas só terá acesso a seu objeto de pesquisa se recorrer à chamada armadilha luminosa. Mas a luz perturba a rotina dos insetos e impede que o estudioso os contemple em situações cotidianas. É como se um antropólogo só pudesse estudar um grupo humano – sejam metaleiros, futebolistas ou entomólogos – instalando câmeras, microfones e spots de luz: seu comportamento se modificaria e não haveria mais a possibilidade de observar qualquer manifestação espontânea. Já o pesquisador interessado em borboletas não tem essa limitação, pois são insetos de hábitos diurnos, podendo ser mais facilmente observados enquanto se alimentam ou se reproduzem.

Embora haja dez espécies de mariposa para cada espécie de borboleta conhecida pela ciência, são estas últimas que atraem a atenção da maior parte dos especialistas. Na avaliação do entomólogo André Freitas, professor da Unicamp, a observação restrita que se pode fazer das mariposas ajuda a explicar a discrepância. “Quem gosta de observar a interação com o ambiente acaba indo estudar outros grupos”, explicou numa entrevista telefônica. “Para as espécies noturnas, o que sobra são os estudos de taxonomia.”



“A coleção de Becker é muito importante, pena que não é pública”, me disse em julho o entomólogo Marcelo Duarte, curador da coleção de borboletas e mariposas do Museu de Zoologia da USP, verbalizando uma reticência manifestada por outros colegas do catarinense. Duarte deixou no ar a dúvida: ao constituir sua coleção, teria Becker empregado recursos públicos ao longo dos 22 anos em que foi funcionário da Embrapa? Frisou, porém, que não tem elementos para julgar o caso. “Para um funcionário público, ter coleção particular cria uma zona nebulosa”, disse ele.

Becker havia puxado o assunto espontaneamente quando, algumas semanas antes de encontrar Duarte, estive na Serra Bonita. Disse que decidiu manter a coleção em âmbito particular porque a Embrapa não só não havia manifestado interesse por ela, como tampouco tinha espaço para abrigá-la. Afirmou que nunca se valeu de recurso público para montar sua coleção e que se cercou de medidas para evitar que um dia fosse acusado disso. “Nunca pedi diárias para as viagens de campo, mesmo que fosse trabalhar num projeto da Embrapa.” Disse ainda que não utilizou equipamento da instituição nas atividades da coleção: “Comprei os geradores necessários à coleta, a lupa que usava em casa e o equipamento fotográfico.”

O diretor da Embrapa Cerrados à época da saída de Vitor Becker era o engenheiro agrônomo Carlos Magno Campos da Rocha – hoje diretor da Embrapa Pesca e Aquicultura, a ser inaugurada em Palmas, no Tocantins. Falando por telefone de Brasília, Rocha lembrou que as viagens a trabalho de funcionários da empresa têm que ser autorizadas pela direção, mesmo que eles banquem despesas de hospedagem e alimentação. “Se viajou em horário de expediente, estava sendo pago pela Embrapa, com recursos da sociedade brasileira”, disse o diretor. Se fosse uma viagem ao exterior, continuou, teria sido necessária uma autorização do governo. “Se ele era funcionário, o material pertence à Embrapa, independentemente de o recurso ser de terceiros.” Perguntei ao ex-diretor se à época se questionou a legitimidade da coleção de Becker, e ele disse não se lembrar de nada nesse sentido. O departamento jurídico da empresa não guarda registro de qualquer reivindicação da coleção.

Becker me disse num telefonema posterior que, antes de sair da Embrapa, recebeu da instituição uma declaração – solicitada por ele – de que os insetos coletados em serviço haviam permanecido no centro de pesquisa, e que sua coleção particular fora obtida por seus próprios meios. Depois, enviou-me uma cópia digitalizada do documento, assinada por uma pesquisadora da Embrapa. Rocha não mencionou a declaração quando o entrevistei.



Adegradação da biodiversidade é um dos sintomas mais visíveis da crise ambiental que o planeta atravessa. Cada vez mais, biólogos sustentam que estamos atravessando o sexto episódio de extinção em massa de espécies – o último deles devastou os dinossauros, bem como três quartos das plantas e animais que viviam há 66 milhões de anos, provavelmente em decorrência da queda de um meteoro no Golfo do México. O número de espécies vitimadas pelo episódio atual de extinção em massa já se conta na casa dos cinco dígitos, quase todas elas em função do encontro desses organismos com uma única criatura: o Homo sapiens. Um estudo do ano passado concluiu que o contato com os humanos acelerou mil vezes a velocidade do desaparecimento de espécies.

As coleções zoológicas, nesse cenário, desempenham um papel que os organizadores dos gabinetes de curiosidades não podiam antecipar: passaram a ser o repositório da biodiversidade perdida, abrigando os últimos registros de que se tem notícia de muitas das espécies extintas. Os taxonomistas, por sua vez, transformaram-se em cronistas da sexta extinção. Ao descrever novas espécies que são automaticamente incluídas nas listas da fauna e flora ameaçadas, eles estão documentando, melhor do que ninguém, a magnitude da devastação.

As andanças de Vitor Becker pelo país em busca de mariposas lhe deram a consciência aguda da degradação do meio ambiente. Cansou-se de voltar a lugares em que havia coletado espécies raras só para descobrir que a área fora desmatada. “Na viagem de Belo Horizonte a Brasília havia cerrado dos dois lados da estrada, mas em poucos anos virou pasto e soja”, contou. “Em certos lugares do Mato Grosso você anda 50 quilômetros, 80 quilômetros, e não vê uma árvore.”

Becker decidiu agir. Depois de conversar com a mulher, compraram uma área na mata para conservar e pesquisar. Restava escolher onde. A Amazônia foi de cara descartada, pois boa parte da mata original ainda está preservada e o esforço dos dois não teria impacto significativo. “Ficou óbvio que seria na Mata Atlântica, que é o bioma mais devastado e uma prioridade de conservação”, disse o pesquisador. A depender dos critérios usados na conta, hoje restam de 8 a 16% da cobertura vegetal existente quando os portugueses aqui aportaram.

A Serra Bonita, situada no sul da Bahia, a algumas dezenas de quilômetros do litoral, estava no radar do entomólogo desde os anos 80, quando a visitou pela primeira vez e coletou “coisas muito interessantes”. Por se tratar de uma área montanhosa com altitude de quase mil metros, a mata abrigava espécies incomuns para a região e se destacava pela biodiversidade. Observadores de pássaros costumavam relatar que no local se avistavam espécies que, de acordo com os guias de ornitologia, ocorriam apenas ao sul do Rio de Janeiro. Em 2007, um levantamento da diversidade de árvores numa reserva estadual próxima a Serra Bonita confirmou a riqueza da biodiversidade: foram encontradas ali 144 espécies em mil metros quadrados, um recorde que só foi superado num trecho de floresta na Colômbia.

A baixa nos preços das terras na região também pesou na escolha. A economia do sul da Bahia, tradicional região de plantio de cacau, entrou em crise no final dos anos 80, com a concorrência de produtores da Ásia e com a chegada da vassoura-de-bruxa, fungo que ataca os cacaueiros. Foi nesse cenário que em 1998 o casal comprou sua primeira propriedade na Serra Bonita, no município de Camacan, a 405 quilômetros de estrada de Salvador. Tratava-se de um lote de 125 hectares (pouco mais de um quilômetro quadrado) no topo do morro, ao lado de uma torre de telecomunicações, servido por uma estrada e com acesso à rede elétrica.

Quando o entomólogo se mudou para a Bahia, já havia adquirido quarenta pequenos imóveis rurais e era dono de 1 200 hectares. Segundo contou, a população local ficou desconfiada: por que alguém compraria terras e não faria nada com elas? “O senhor vai plantar o que lá?”, queriam saber. Nada, ele respondia. “Então o senhor vai tirar madeira? Lá tem ouro, mármore?” “Vou comprar para conservar.” Parecia inconcebível.

O casal fez questão de registrar em cartório o compromisso de conservar as matas, cadastrando-as como uma Reserva Particular do Patrimônio Natural. As RPPNs, sigla como são conhecidas as reservas privadas, só podem ser usadas para fins de conservação, pesquisa científica e ecoturismo, e têm caráter irrevogável – quem vier a comprar uma está obrigado a mantê-la com esse status.

Em 2001, Becker criou uma entidade civil sem fins lucrativos para viabilizar o recebimento de doações para sua reserva e o estabelecimento de parcerias com universidades e centros de pesquisa. Batizou-a de Instituto Uiraçu, homenageando a maior ave de rapina do Brasil (também conhecida por gavião-real ou harpia), capaz de atingir 1 metro de comprimento e 2 de envergadura – Becker a avistou duas vezes na Serra Bonita. O instituto já recebeu recursos de instituições brasileiras como a SOS Mata Atlântica e a Fundação Grupo Boticário, mas o grosso dos apoiadores são ONGs estrangeiras que financiam a aquisição de terras e ampliam a área protegida sob a gestão de Becker e Souza.

Quando estava começando a comprar terras para criar uma reserva, Becker foi atrás de uma amiga bióloga americana. Será que o irmão dela, um homem rico que mora em Frankfurt e tem uma companhia de recuperação de empresas quebradas, não teria interesse em fazer uma doação? Sondado pela irmã, o americano se disse disposto não a doar, mas a comprar terras. De cara propôs entrar com 300 mil dólares, muito mais do que o brasileiro havia imaginado. O “parceiro americano”, como Becker se refere a ele, também o ajuda de outra forma. Aproveitando os juros generosos do mercado brasileiro, criou um fundo patrimonial cujos rendimentos são repassados ao Instituto Uiraçu. “Com esse recurso pagamos o salário dos guardas”, disse Becker. Ainda que prefira preservar a identidade do mecenas, o cientista batizou uma bromélia encontrada em Serra Bonita – “uma das mais bonitas da reserva” – em homenagem ao pai do americano, que cultivava essas plantas por hobby.

Becker já negociou a compra de cerca de 2 200 hectares na Serra Bonita, dos quais mil hectares pertencem a sua família, e o resto, ao parceiro americano ou ao Instituto Uiraçu. O total equivale a pouco mais da metadedo Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, uma das maiores áreas de floresta urbana do mundo. A Serra Bonita está entre as quase 900 propriedades registradas como RPPN na Mata Atlântica. “Becker teve um papel importantíssimo na manutenção daquela área, num momento em que a região sofria muito devido à queda do cacau”, disse a bióloga Mônica Fonseca, consultora da SOS Mata Atlântica. “Ali era monocultura, os fazendeiros foram à falência e começaram a jogar a floresta no chão” – o cacau cresce à sombra de árvores maiores, num sistema conhecido como cabruca.



Numa terça-feira de junho, Vitor Becker decidiu tomar seu chimarrão vespertino sentado na varanda. Ele havia colocado duas bananas num comedouro para passarinhos e contemplava a refeição dos gaturamos, quando de repente pulou em seu colo Pelé, um bugio-marrom que lhe foi confiado por um morador da região há dois anos e meio. O macaco vive solto na mata, mas está sempre por perto ao perceber movimento no centro de pesquisa. Segue o dono em suas caminhadas ou se aboleta no capô quando ele está de carro.

Becker armou um bico e pôs-se a emitir uma série de grunhidos. Pelé agitou-se sobre seu colo e começou a imitá-lo. “Ele está aprendendo a vocalizar”, disse o pesquisador, como que para se justificar. “É meio tímido.” Explicou que o macaco pertence à espécie Alouatta guariba, da qual só devem restar na natureza cerca de 200 indivíduos. No começo do ano, o ICMBio, o órgão federal que zela pela biodiversidade do país, lhe disse que haviam encontrado uma possível namorada para o animal – queriam tentar reintroduzir a espécie na Serra Bonita, onde já não há mais bugios. Xuxa, como foi prontamente batizada a fêmea, foi levada para lá e por algumas semanas conviveu em harmonia com Pelé. Mas sumiu há três meses, e não se sabe de seu paradeiro.

Quando circulou em Camacan a notícia de que Vitor Becker comprara as terras no topo do morro, um morador o interpelou. “É verdade que o doutor vai morar lá no alto? Aquilo ali fica coberto por nuvem o inverno todo.” Numa tarde fria, ainda em junho, Becker quis continuar nossa conversa diante da lareira. Acendeu o fogo e convidou a mulher para dividir um chimarrão. Resfriada, Clemira Souza surgiu coberta de agasalhos, praguejando contra o frio. Sentou-se ao lado do marido e puseram-se a falar sobre as finanças da reserva e do instituto. Becker contou que, quando a mulher se tornou professora da UnB, ela assumiu os gastos domésticos, liberando-o para gastar seu salário com as viagens de campo, a biblioteca e a coleção de mariposas (foram 120 mil reais só em gavetas). “Temos uma finança conjunta”, brincou o marido, “ela ganha e eu gasto”, emendando com uma risada sonora.

O casal gastou cerca de 2 milhões de reais para adquirir as propriedades e construir as edificações na Serra Bonita, segundo as estimativas de Becker. Os dois empenharam as economias reunidas durante a vida, venderam a propriedade da Asa Norte e imóveis que tinham em Goiás.

A iniciativa criada pelos dois está fundada naquilo que eles chamam de uma “ética ecocêntrica”, oposta à concepção antropocêntrica de que a natureza foi criada para servir o homem. “Nossa concepção é diferente, o centro está na natureza”, explicou Becker. “Nós como parte dela, não como donos.” O entomólogo acrescentou que costuma ter atritos com movimentos ambientalistas que justificam os esforços de conservação com argumentos utilitaristas – a Amazônia precisa ser preservada porque nela está a cura do câncer, as matas ciliares têm que ficar de pé para que não nos falte água. “Conservamos árvore, animal, passarinho porque entendemos que eles também têm direito à vida, assim como nós”, argumentou. “Estamos todos no mesmo barco: se ele afundar, afundamos também.”

A visão ambiental de Becker é coerente com suas pesquisas: a taxonomia se contenta em nomear e descrever o mundo, sem nenhuma preocupação utilitária. Quem descreve uma nova espécie é movido apenas pelo desejo de aumentar o conhecimento disponível. Saber o que existe – em oposição a não saber – já seria um valor suficiente, que dispensa razões ulteriores.

Clemira Souza acrescentou que adotar a ética ecocêntrica exige uma mudança radical de postura em relação à natureza, o que pode gerar certa resistência. “Sabemos onde está o nosso norte, mas não podemos ir sozinhos e deixar todo mundo para trás”, afirmou. “Se nos isolarmos aqui, mas nosso vizinho tiver outra mentalidade, não chegaremos a um acordo.”

Não há nada de dócil ou ingênuo na visão ambiental de Becker. Quando se instalou na região, ele penou para impedir a entrada de caçadores em sua reserva, em busca de caititus, pacas, quatis e macacos. Ao relatar sua dificuldade a um vizinho, recebeu o seguinte conselho: “A única maneira de resolver isso é comprar uma carabina e passar fogo nos cachorros de caça.” Recomendação aceita: o proprietário providenciou uma espingarda de calibre 20 e matou meia dúzia de cachorros. “A notícia correu, e pronto.” Becker admitiu ter pena dos cães sacrificados. “Quem tinha que levar chumbo era o dono, mas como não posso atirar nele...”



AEmbrapa, onde Vitor Becker fez carreira, é uma instituição de pesquisa que não oferece cursos de pós-graduação. Por isso, o entomólogo não teve muitos alunos em quase meio século de carreira. Coorientou estudantes de doutorado de outras instituições, mas não formou discípulos. Em compensação, nunca se negou a dividir sua expertise com colegas do Brasil e do mundo. Recebe com frequência espécimes ou fotos que ajuda a identificar, e coloca seu acervo à disposição da comunidade.

Seu maior legado científico é sua coleção de mariposas, sem igual no Brasil. Existem coleções de lepidópteros da mesma ordem de grandeza que a de Becker – notadamente na Universidade Federal do Paraná, no Museu de Zoologia da USP e no Museu Nacional da UFRJ. Em todas elas, porém, há mais borboletas que mariposas. Os três são acervos institucionais, obras coletivas derivadas do esforço de inúmeros entomólogos profissionais e amadores. Já a coleção de Vitor Becker foi toda reunida por ele – trata-se de um “museu de um taxonomista só”, como ele gosta de definir.

O biólogo Ricardo Monteiro, coordenador do Laboratório de Ecologia de Insetos da UFRJ, notou que o acervo de Becker chama a atenção não só pela grandeza, mas também pelo zelo na preparação dos espécimes. “Há coleções no país com grande número de exemplares, mas o estado do material às vezes é precário, seja porque não foi montado adequadamente, seja por falta de manutenção”, disse Monteiro, que é amigo do catarinense e ele próprio curador de um acervo modesto em seu laboratório. Becker, pelo contrário, mantém os exemplares “em estado perfeito, qualidade nota 10”.

Um amador pode colecionar insetos por hobby, como se acumulasse selos ou moedas, e se guiar por princípios estéticos, selecionando apenas os espécimes mais formosos. Um taxonomista, por sua vez, costuma ser guiado pelo desejo de documentar a diversidade de um determinado grupo, entender sua relação com outros grupos e determinar seu lugar na árvore da vida. Será guiado por um desejo de exaustividade, como se quisesse completar as figurinhas de um álbum. Mas a metáfora tem alcance limitado. Quem tenta preencher um álbum de figurinhas sabe de antemão quantos cromos existem e quais faltam para completá-lo. O colecionador de insetos às vezes pode topar com espécies de cuja existência ele sequer suspeitava.

Becker se lembra com nitidez de uma figurinha faltante em seu álbum – uma mariposa que ele viu certa madrugada numa parada de estrada no Vale do Ribeira, durante uma viagem de ônibus entre São Paulo e Curitiba. “No batente da porta havia um notodontídeo pousado que nunca mais encontrei”, lamentou. “Se o vir de novo, saberei que é ele.”

Uma das figurinhas especiais da coleção de Becker é uma mariposa cujas asas traseiras são amarelas e as dianteiras em padrões em preto, branco e cinza. O catarinense escolheu-a para homenagear a mulher, conforme contou enquanto tirava a gaveta em que jaziam onze exemplares do inseto. Queria que fosse uma espécie bonita, mas não qualquer uma. Becker soube que a hora tinha chegado quando se deparou com um inseto formoso que não estava corretamente classificado na literatura. Num trabalho publicado em 2009, o brasileiro mostrou que a mariposa até então conhecida como Aucula magnifica deveria ser encaixada em um novo gênero, que ele aproveitou para propor. A mariposa passou a ser chamada de Clemira magnifica.

A homenageada só tomou conhecimento da honraria depois que o artigo estava publicado. “Ave-Maria”, ela exclamou, encabulada, ao evocar o episódio. “Eu sempre tinha pedido a ele que não misturasse nossa vida pessoal, não queria ter meu nome ligado a isso.” O marido fez pouco caso do protesto. “Um novo gênero deve ser dedicado a alguém que fez algo relevante para o conhecimento do grupo”, argumentou. “Ela passou noites e dias preenchendo etiquetas e permitiu que eu montasse a coleção, assumindo os gastos da casa.” Moema Becker, filha do casal, tem umaClemira magnifica tatuada na omoplata esquerda. “Foi um jeito de homenagear os dois”, ela me disse.



Vitor Becker adoeceu numa de suas temporadas no Smithsonian em Washington. Quando, de volta ao Brasil, relatou o caso aos filhos, o mais velho quis saber que destino deveriam dar à coleção caso algo lhe sucedesse. O entomólogo impôs duas condições. “A primeira é que ela não pode sair do Brasil”, disse. Não quer que, no futuro, alguém que se disponha a estudar as mariposas tenha que começar do zero, como ele. “Em segundo lugar, não pode ir para o Museu Nacional.”

Fundado em 1818, o Museu Nacional foi uma das instituições criadas por dom João VI pouco depois de se instalar com a corte no Rio de Janeiro, e uma de suas finalidades era documentar a história natural brasileira. Atualmente abriga a mais antiga coleção de lepidópteros do país. “Temos 186 mil exemplares montados, dos quais de 85 a 90% são borboletas”, me disse o biólogo Alexandre Soares numa manhã de junho, durante uma visita ao acervo. Contratado há quase trinta anos pelo museu como técnico de laboratório, Soares faz as vezes de curador informal de lepidópteros – há mais de uma década a instituição não tem em seus quadros um pesquisador especializado.

O Museu Nacional ocupa desde 1892 o parque da Quinta da Boa Vista – é um prédio imponente com pé-direito alto e vastas janelas, que serviu de residência para a família imperial brasileira. Os lepidópteros hoje ficam no 2º andar, mas já ocuparam diversos cômodos. Soares contou que, desde 1984, já presenciou seis remanejamentos da coleção, alguns deles por causa de goteiras. “Peguei duas grandes chuvas aqui, uma em 1986 e outra em 1995. Ambas atrapalharam muito as borboletas”, disse o biólogo. Os remanejamentos também deixaram sequelas na coleção. “O bicho é muito frágil”, explicou. “A cada vez que você muda danifica o material, perde antena, perninha.”

Em 1990, quando Becker visitou o Museu Nacional, impressionaram-no as goteiras, a umidade e a fiação exposta. Alexandre Soares ressaltou, porém, que desde então o pesquisador não retornou, não tendo podido testemunhar as melhorias recentes. “Ele viu a coleção cheia de fungos e sujeita a praga, mas não tem noção do estado em que está hoje”, disse. “A umidade está controlada, e não tenho bichos comidos há muitos anos.”

Um possível destino para as mariposas de Vitor Becker seria reunir-se ao acervo da Universidade Federal do Paraná, que ele reputa ter a melhor coleção de borboletas da América Latina. Os curadores são Mirna Casagrande e Olaf Mielke, um entomólogo veterano de 74 anos nascido na Alemanha e naturalizado brasileiro. “Nossa coleção é forte em borboletas, e a do Vitor Becker, em mariposas”, disse Mielke, por telefone. “Juntar as duas seria o melhor que poderia acontecer para o Brasil.”

Becker, contudo, se mostrou reticente quanto à perspectiva de transferência para uma universidade. O futuro do acervo da UFPR seria incerto, uma vez que a aposentadoria dos curadores se aproxima e nada garante que sejam substituídos por um especialista em lepidópteros. “O lugar apropriado para as coleções são os museus, que geralmente têm uma política de continuidade: se um cara de besouros se aposenta, eles contratam outro”, defendeu.

No início deste século, o Museu de Zoologia da USP abriu negociações com Vitor Becker a fim de adquirir sua coleção. As partes acertaram um preço, a ser pago com recursos da Fapesp, a fundação paulista de apoio à pesquisa. As tratativas não prosseguiram, porém, pois o pesquisador só se dispunha a entregar o acervo depois que desse por encerradas suas atividades de pesquisa. Não foi a única oferta que recebeu: o Museu Carnegie de História Natural, na Pensilvânia, lhe propôs 1,3 milhão de dólares – cerca de 4 dólares por exemplar –, mas Becker não abriu mão de manter a coleção no Brasil.



Na lateral do prédio em que funciona a pousada, numa parede que dá para a mata, ficam permanentemente instalados um lençol branco e uma lâmpada de mercúrio. (Becker já identificou 5 mil espécies de lepidópteros na Serra Bonita, mas acredita que o número possa aumentar bastante com estudos mais sistemáticos.) Numa noite de lua nova, disse, o pano pode amanhecer preto, com centenas de espécimes.

Pedi ao anfitrião que deixasse a luz acesa durante a última noite que passei na Bahia, para ver a armadilha luminosa em ação. Enquanto seguíamos rumo à pousada, ele previu que a noite não seria muito produtiva – continuava chovendo sem parar, e o termômetro de seu carro marcava 18 graus. “Com esse tempo não vai chegar praticamente nada”, vaticinou. “Umidade até que é bom, mas está ventando e muito frio.” Evoquei os versos de Adoniran Barbosa: As mariposa quando chega o frio/ Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá. Becker sorriu e decretou: “Está tudo errado”, disse ele, com a língua estrilando no céu da boca. “Para começar, elas não voam no frio, não são atraídas pela lâmpada e não vão se esquentar”, disse ele, cantarolando uma estrofe do samba. “O Adoniran era uma figura.”

Na manhã seguinte, fui conferir o butim da coleta antes do nascer do sol: não havia um inseto sequer, conforme Becker tinha antecipado. Durante o café da manhã, antes de tomarmos a estrada para Ilhéus, relatei a ele o fracasso da empreitada. O entomólogo não se mostrou surpreso. “Se eu não soubesse, depois de cinquenta anos trabalhando com isso, melhor seria mudar de atividade.”




8 de setembro de 2015

BERNARDO ESTEVES

ESTADOS ALTERADOS




          ANAIS DO BARATO

Minhas viagens químicas como um jovem médico neurologista

Viver só o dia a dia é pouco para os seres humanos. Precisamos transcender, delirar, escapar; precisamos de significados e de explicações; precisamos enxergar um sentido geral em nossas vidas. Precisamos de esperança, de uma perspectiva de futuro. E precisamos de liberdade (ou, pelo menos, da ilusão de liberdade) para irmos além de nós mesmos, seja com telescópios, microscópios e outros meios tecnológicos, seja em estados mentais que nos possibilitem viajar para outros mundos, além de nossas circunstâncias imediatas.
Podemos buscar, também, um relaxamento das inibições, de modo a estabelecer uma conexão mais fluida com os outros, ou meios de tornar nossa consciência do tempo e da mortalidade mais fácil de suportar. Procuramos férias de nossas restrições internas e externas, uma sensação mais intensa do aqui e agora, da beleza e do valor do mundo em que vivemos.
À moda do poeta inglês William Wordsworth, muitos de nós encontram “sugestões de imortalidade” na natureza, na arte, no pensamento criativo ou na religião. Certas pessoas conseguem atingir estados de transcendência através da meditação ou de outras técnicas de indução de transes, ou por meio da oração e de práticas espirituais. Mas as drogas oferecem um atalho, prometem uma transcendência imediata. Esses atalhos existem porque certas substâncias podem estimular diretamente funções cerebrais complexas.
Todas as culturas encontraram veículos químicos para a transcendência, e em determinado momento o uso dessas substâncias intoxicantes se institucionalizou em um nível mágico ou sagrado. O uso cerimonial de componentes psicoativos encontrados em plantas tem uma longa história e persiste até hoje em rituais xamânicos e religiosos no mundo inteiro.
Num plano menos ambicioso, as drogas são usadas não tanto para iluminar, expandir ou concentrar a mente, mas pela sensação de prazer e euforia que podem proporcionar. Mesmo os primeiros mórmons, proibidos de consumir chá ou café, em sua longa marcha até o estado de Utah encontraram na beira da estrada uma erva simples, o chá mórmon, cuja infusão restabelecia e estimulava os combalidos peregrinos. Era a éfedra, que contém efedrina, similar às anfetaminas em seus aspectos químico e farmacológico.
Muitas pessoas experimentam drogas, alucinógenas ou não, em sua adolescência ou nos tempos de faculdade. Eu só fui experimentá-las depois dos 30 anos, quando já era residente de neurologia. Essa longa virgindade não se devia à falta de interesse. Eu tinha lido os grandes clássicos –Confissões de um Comedor de Ópio, de Thomas de Quincey, e Paraísos Artificiais, de Baudelaire – ainda no colégio. Li a história do escritor francês Théophile Gautier, que em 1845 visitou o recém-criado Club des Hashischins, num canto sossegado da Île Saint-Louis. O haxixe, na forma de uma pasta verde, tinha sido trazido pouco antes da Argélia, e fazia furor em Paris. No salão, Gautier consumiu uma porção considerável de haxixe. Num primeiro momento não sentiu nada fora do normal, mas logo, conta ele, “tudo parecia maior, mais rico, mais esplêndido”, e em seguida ocorreram algumas mudanças mais específicas:
Um personagem enigmático apareceu de repente diante de mim... Seu nariz era curvo como um bico de ave, seus olhos verdes, que ele enxugava amiúde com um lenço grande, eram rodeados por três círculos castanhos, e preso ao nó da gravata num colarinho branco alto e engomado havia um cartão de visita que dizia: Daucus-Carota, du Pot d’or... Pouco a pouco, o salão foi sendo tomado por figuras fora do comum, do tipo que encontramos apenas nas gravuras de Callot ou nas águas-tintas de Goya; uma mistura de fragmentos desconexos, de formas humanas e bestiais.

a década de 1890, os ocidentais também começavam a provar o peiote ou mescal, cacto antes usado apenas em cerimônias místicas dos indígenas americanos. No meu ano de calouro em Oxford, livre para percorrer as estantes da Biblioteca Radcliffe deCiências, li os primeiros relatos publicados sobre a intoxicação com o peiote, entre eles os de Havelock Ellis e SilasWeir Mitchell. Ambos eram médicos, não apenas literatos, e isso parecia emprestar peso e credibilidade maiores às suas descrições. Fiquei cativado pelo tom seco de Mitchell e a naturalidade com que ele consumia o que na época era uma droga desconhecida, com efeitos ignorados.
A certa altura, escreveu Mitchell num artigo de 1896 para o British Medical Journal, ele tomou uma boa porção de um extrato produzido a partir do peiote, seguida de uma dose adicional. Embora tenha percebido que seu rosto estava corado, suas pupilas dilatadas, e ele apresentasse “uma tendência a falar muito, e de vez em quando... errar o emprego de uma palavra”, ainda assim continuou a fazer suas visitas domiciliares, e esteve com vários pacientes. Mais adiante, depois de três novas doses, deitou-se em silêncio num quarto escuro, onde experimentou “duas horas encantadas”, repletas de efeitos cromáticos:
Delicadas películas flutuantes de cor – geralmente lindos tons neutros de roxo e cor-de-rosa. Elas se deslocavam de um lado para o outro – ora aqui, ora ali. Depois, um jorro abrupto de incontáveis pontos de luz branca atravessou meu campo de visão, como se a Via Láctea tivesse começado a fluir, num rio resplandecente, diante dos meus olhos.
À diferença de Mitchell, que se concentrava nas alucinações coloridas e geométricas, que ele comparou em parte às da enxaqueca, Aldous Huxley, escrevendo sobre a mescalina na década de 50, concentrou-se na transfiguração do mundo visual, que lhe aparecia dotado de uma beleza e de um significado luminosos e divinos. Huxley comparava essas experiên-cias com drogas às dos grandes visionários e artistas, mas também às experiências psicóticas de alguns esquizofrênicos. Tanto a genialidade quanto a loucura, sugeria Huxley, residiam nesses estados mentais extremos – ideia não muito diversa das formuladas por De Quincey, Coleridge e Baudelaire em relação às suas próprias experiências ambíguas com o ópio e o haxixe (e amplamente descritas em 1845 no livro de Moreau, O Haxixe e a Alienação Mental). De Huxley, li As Portas da Percepção eO Céu e o Infernoquando foram publicados, nos anos 50, e me senti especialmente instigado pelo que ele escreveu sobre a geografia da imaginação e a dimensão em que ela existia – região mental não utilizada em situações normais e que ele chamava de “antípodas da mente”.

u havia lido muito, mas não tinha qualquer experiência própria com drogas até 1953, quando meu amigo de infância Eric Korn veio para Oxford. Ficamos animados ao ler sobre a descoberta do lsd por Albert Hofmann, e encomendamos 50 microgramas da substância (na época ainda legal) ao seu fabricante suíço. Com modos solenes, dividimos a droga e tomamos 25 microgramas cada um – sem saber das maravilhas ou horrores à nossa espera. Tristemente, eles não fizeram nenhum efeito em nós dois. (Devíamos ter encomendado 500 microgramas, e não 50.)
Quando me formei em medicina, no final de 1958, tinha concluído que queria ser neurologista, para saber como o cérebro encarnava a consciência e a identi-dade e compreender seus incríveis poderesde percepção, produção de imagens, memória e alucinação. Uma nova orientação surgia na neurologia e na psiquiatria na época. Era o início da era da neuroquímica, com os primeiros vislumbres da gama de agentes químicos, os neurotransmissores, que possibilitavam a comunicação entre as células nervosas e diferentes partes do sistema nervoso. Ao longo das décadas de 50 e 60, descobertas nesse sentido chegavam de todo lado, embora ainda não fosse nada claro como elas se encaixavam umas nas outras. Descobriu-se, por exemplo, que o cérebro parkinsoniano continha pouca dopamina, e que administrar uma precursora da dopamina, a levodopa, podia aliviar os sintomas do mal de Parkinson. De outro lado, viu-se que os tranquilizantes, introduzidos no início da década de 50, podiam inibir a dopamina e desencadear uma espécie de parkinsonismo químico. Faziacerca de 100 anos que a medicação típica para o mal de Parkinson eram as drogas anticolinérgicas, que inibem a produção do neurotransmissor acetilcolina. Mas como interagem os sistemas da dopamina e da acetilcolina? Por que os opiáceos – ou a cannabis– produzem efeitos tão fortes? Será que o cérebro tem receptores especiais para os opiáceos, e produz opioides para consumo próprio? Existiria um mecanismo semelhante para receptores da cannabise canabinoides? Por que o lsd tinha uma potência tão grande? Seriam todos os seus efeitos explicáveis a partir de alterações da serotonina no cérebro? Quesistemas transmissores governariam os ciclos de sono e vigília, e qual poderia ser o fundamento neuroquímico dos sonhos e alucinações?
Ao iniciar minha residência em neurologia, em 1962, encontrei um ambiente impregnado dessas questões. A neuroquímica estava claramente na moda, assim como – perigosamente, sedutoramente, especialmente na Califórnia, onde eu estudava – as drogas propriamente ditas.

omecei com a maconha. Um amigo em Topanga Canyon, onde eu morava na época, me ofereceu um baseado; dei duas baforadas e fiquei paralisado com o que aconteceu em seguida. Eu olhava para a minha mão e ela parecia preencher todo o meu campo visual, crescendo e crescendo ao mesmo tempo que se afastava de mim. Finalmente, tive a impressão de que eu via aquela mão estendida por todo o universo, com vários anos-luz ou parsecs de extensão. Ainda tinha a aparência de uma mão viva, humana, mas essa mão cósmica também lembrava, de algum modo, a mão de Deus. Minha primeira experiência com a maconha foi marcada pela mistura do neurológico e do divino.
Na Costa Oeste americana, no começo da década de 60, o lsd e as sementes de ipomeia [Ipomœa purpurea, também conhecida no Brasil como “bons-dias” ou “campainha”] eram fáceis de encontrar, de maneira que decidi experimentá-los também. “Mas se você quer uma expe-riência realmente incrível”, disseram os meus amigos da Muscle Beach, “tome Artane.” Achei surpreendente, pois sabia que o Artane, uma droga sintética similar à beladona, era usada em doses modestas (dois ou três comprimidos ao dia) no tratamento do mal de Parkinson, e que drogas desse tipo, em grandes quantidades, podem produzir delírio. (Tais delírios vêm sendo observados há muito tempo depois da ingestão acidental de plantas como a erva-moura, o estramônio e o meimendro.) Mas será que o delírio podia ser divertido? Ou informativo? Ficaria a pessoa em posição de observar o funcionamento aberrante do próprio cérebro – e apreciar seus prodígios? “Vá em frente”, insistiam meus amigos. “Tome vinte de uma vez – você ainda vai manter um controle parcial da sua cabeça.”
Então, num domingo de manhã, contei vinte comprimidos, engoli todos com um copo de água, e me sentei para esperar o efeito. Será que o mundo se transformaria, renasceria, como Huxley tinha descrito em As Portas da Percepçãoe eu próprio tinha experimentado com a mescalina e o lsd? Haveria ondas de sensações de volúpia e deleite? Haveria ansiedade, confusão mental, paranoia? Estava preparado para todos esses efeitos, mas nenhum deles ocorreu. Fiquei com a boca seca e as pupilas dilatadas, e achei difícil ler, mas só isso. Não senti qualquer efeito psíquico – foi muito decepcionante. Não sabia exatamente o que esperava, mas esperava alguma coisa.
Estava na cozinha, pondo uma chaleira no fogo para fazer chá, quando ouvi alguém bater na porta da frente. Eram meus amigos Jim e Kathy, que costumavam aparecer nas manhãs de domingo. “Podem entrar, a porta está aberta”, gritei, e enquanto eles se acomodavam na sala perguntei como queriam seus ovos. Jim disse que preferia fritos com a gema mole. Kathy preferia a gema passada. Conversamos fiado enquanto eu preparava os ovos com presunto – havia portas baixas de vaivém entre a cozinha e a sala, então nos ouvíamos perfeitamente bem. Cinco minutos depois, eu gritei “Está tudo pronto”, pus os pratos de ovos com presunto numa bandeja e fui para a sala – que estava vazia. Nada de Jim nem de Kathy, nenhum sinal de que tivessem passado por lá. Fiquei tão abalado que quase deixei a bandeja cair no chão.
Não tinha me ocorrido nem por um instante que as vozes de Jim e Kathy, suas “presenças”, fossem irreais, alucinatórias. Tivemos uma conversa amigável e comum, como era de hábito. As vozes deles eram as mesmas de sempre – não havia nenhum sinal, até eu atravessar as portas de vaivém e encontrar a sala vazia, de que toda aquela conversa, pelo menos a parte do lado deles, tinha sido inventada pelo meu cérebro.
Fiquei não só pasmo como também muito assustado. Com o lsd e outras drogas, eu sempre sabia o que estava acontecendo. O mundo tinha uma aparência diferente, a sensação era diferente. Mas minha “conversa” com Jim e Kathy não tinha nada de especial; foi totalmente corriqueira, sem nada que a caracterizasse como uma alucinação. Pensei nos esquizofrênicos que conversam com suas “vozes”, mas em geral as vozes da esquizofreniasão de zombaria ou acusação, não falam sobre presunto, ovos e o tempo.
“Cuidado, Oliver”, eu disse a mim mesmo. “Não vá perder o controle. Não deixe isso acontecer de novo.” Mergulhado em meus pensamentos, comi lentamente os meus ovos com presunto (e também os de Jim e Kathy) e depois decidi descer até a praia, onde veria o Jim e a Kathy de verdade e todos os meus amigos, podendo dar um mergulho e passar uma tarde sossegada.
Pensava nisso quando tomei consciência de um barulho de motor acima de mim. Fiquei intrigado por um momento, e depois percebi que era um helicóptero se preparando para pousar e trazendo os meus pais, que, tendo resolvido me fazer uma visita de surpresa, haviam chegado de Londres e, depois de desembarcarem em Los Angeles, fretaram um helicóptero para trazê-los até Topanga Canyon. Corri para o banheiro, tomei um banho rápido e vesti uma camisa e calças limpas – o melhor que podia fazer nos três ou quatro minu-tos que me restavam até a chegada deles. O barulho era quase ensurdecedor, e me dei conta de que o helicóptero devia ter pousado na pedra plana ao lado da minha casa. Corri para fora, animado para receber os meus pais – mas a pedra estava vazia, não havia helicóptero nenhum à vista, e o barulho do motor cessou abruptamente. O silêncio e a solidão, a decepção, me reduziram às lágrimas. Eu tinha ficado tão alegre, e agora não restava mais nada.
Voltei para dentro de casa e pus a chaleira no fogo para outra xícara de chá quando minha atenção foi atraída por uma aranha na parede da cozinha. Quando cheguei mais perto, a aranha disse: “Alô!” Não me pareceu nada estranho que uma aranha me dissesse alô (assim como Alice não achava estranho o Coelho Branco falar). Respondi “Alô, cara”, e com isso começamos uma conversa, quase toda sobre questões bastante técnicas de filosofia analítica. Esse rumo talvez tenha sido sugerido pelas primeiras palavras que a aranha me disse, querendo saber se eu achava que Bertrand Russell tinha mesmo destruído o paradoxo de Frege. Ou talvez fosse a sua voz – precisa, incisiva e muito semelhante à de Russell, que eu tinha ouvido no rádio. (Décadas mais tarde, mencionei essas tendências russellianas da aranha ao meu amigo Tom Eisner, que é entomólogo; ele assentiu com ar muito sério, e disse: “Sei, conheço essa espécie.”)

urante a semana eu evitava as drogas, trabalhando como residente no departamento de neurologia da Ucla, a Universidade da Califórnia em Los Angeles. Ficava impressionado e tocado – como antes, nos meus tempos de estudante em Londres – com a gama deexperiências neurológicas dos pacientes. Descobri que só poderia compreendê-las bem, ou conciliar-meemocionalmente com essas experiências, se tentasse descrevê-las ou transcrevê-las. Foi então que escrevi meus primeiros artigos publicados e meu primeiro livro. (Que nunca foi publicado, porque perdi os originais.)
Mas nos fins de semana eu continuava a fazer experiências com drogas. Lembro-me nitidamente de um episódio em que uma cor mágica apareceu para mim. Eu tinha aprendido, ainda menino, que existem sete cores no espectro, entre elas o índigo ou anil. (Foi Newton que escolheu as sete, um tanto arbitrariamente, por analogia com as sete notas da escala musical.) Mas poucas pessoas concordam quanto ao que seja o “índigo”.
Fazia tempo que eu desejava ver o “verdadeiro” índigo, e me pareceu que as drogas podiam ser o caminho. Assim, num sábado ensolarado de 1964, preparei uma plataforma de lançamento farmacológica que consistia numa base de anfetamina (para uma excitação generalizada), lsd (para a intensidade alucinógena) e um toque de cannabis(para acrescentar um pouco de delírio). Uns vinte minutos depois de consumir essa mistura, fiquei de frente para uma parede branca e exclamei: “Quero ver a cor índigo agora – agora!”
E então, como que criada por um pincel gigantesco, apareceu na parede uma mancha imensa e trêmula do mais puro índigo, em forma de pera. Luminosa, numinosa, ela me deixou arrebatado: era a cor do céu, a cor, pensei, que Giotto tinha passado a vida inteira tentando obter sem jamais conseguir – talvez porque a cor do céu não possa ser vista da Terra. Mas ela existiu no passado, eu achava – era a cor do mar paleozoico, a cor que o oceano já teve. Curvei-me na direção dela numa espécie de êxtase. E então ela sumiu de um momento para outro, deixando-me com uma sensação quase insuportável de perda e tristeza. Mas eu me consolei: sim, o índigo existe, e pode ser conjurado no cérebro.
Continuei à procura do índigo por vários meses depois disso. Revirava pedras e rochas maiores perto da minha casa. Examinei amostras de azurita no museu de história natural – mas mesmo elas estavam infinitamente distantes da cor que eu tinha visto. E então, em 1965, depois que me mudei para Nova York, fui a um concerto no Metropolitan Museum. Na primeira parte, executaram uma peça de Monteverdi, e me senti numa viagem. Não tinha tomado droga alguma, mas sentia um glorioso rio de música, com centenas de anos de comprimento, correndo da mente de Monteverdi para desaguar na minha. Nesse estado de êxtase, saí caminhando durante o intervalo e corri os olhos pelos objetos exibidos nas galerias egípcias – amuletos de lápis-lazúli, joias. Fiquei encantado ao perceber vislumbres de índigo. E pensei: Graças a Deus, o índigo existe mesmo!
Durante a segunda metade do concerto, fiquei um pouco entediado e inquieto, mas me consolei pensando que em seguida podia sair e tomar uma “dose” de índigo. Ainda estaria no mesmo lugar, à minha espera. Mas, quando saí para olhar as galerias depois do concerto, só consegui ver azul, roxo, malva e marrom-arroxeado – nada de índigo. Faz 47 anos, e nunca mais tornei a ver a cor índigo.

uando uma amiga e colega dos meus pais – Augusta Bonnard, uma psicanalista – veio passar seu ano sabático em Los Angeles em 1964, era natural que nos encontrássemos. Convidei-a para vir à minha casinha no Topanga Canyon, e tivemos um jantar maravilhoso. Com o café e os cigarros (Augusta fumava sem parar; eu me perguntava se não fumaria inclusive durante as sessões), seu tom mudou, e ela me disse, com sua voz engrossada pelo fumo: “Você precisa de ajuda, Oliver. Você está com problemas.”
“Que bobagem”, respondi. “Eu gosto da vida. Não tenho queixas. Vai tudo bem no trabalho e no amor.” Augusta deixou escapar um grunhido de ceticismo, mas não insistiu mais.
A essa altura eu tinha começado a tomar lsd, e quando não encontrava consumia sementes de ipomeia em seu lugar. (Antes de as sementes de ipomeia começarem a ser tratadas com pesticidas, como são hoje, para evitar seu consumo.) As manhãs de domingo eram geralmente meu horário de tomar drogas, e deve ter sido dois ou três meses depois do meu encontro com Augusta que tomei uma dose substancial das sementes de ipomeia conhecidas como Heavenly Blue (azul celestial). As sementes eram negras e tinham uma dureza de ágata, de modo que as pulverizei num pilão e depois misturei o pó com sorvete de baunilha. Uns vinte minutos depois de ingerir a mistura, sofri uma náusea intensa, mas, quando ela passou, me senti num lugar de calma e beleza paradisíacas, um território fora do tempo, que foi rudemente invadido por um táxi que subia com dificuldade o íngreme caminho de acesso à minha casa, emitindo petardos pelo escapamento. Uma mulher idosa desceu do táxi e, num ímpeto, saí correndo na direção dela, gritando: “Eu sei quem a senhora é – uma réplica de Augusta Bonnard! Tem a aparência dela, a postura e os movimentos dela, mas não é ela. Não me engana nem por um momento!” Augusta levou as mãos às têmporas e disse: “Nossa! Está pior do que eu pensava.” Entrou de volta no seu táxi e partiu sem dizer mais nada.
Tivemos muito que conversar no nosso encontro seguinte. O fato de eu não tê-la reconhecido, e de vê-la como uma “réplica”, achava ela, era uma forma complexa de defesa, uma dissociação que só podia ser classificada como psicótica. Discordei, e continuei a afirmar que o fato de considerá-la uma duplicata, ou uma impostora, tinha origem neurológica, era uma desconexão entre a percepção e os sentimentos. A capacidade de identificar (que estava intacta) não era acompanhada pela sensação apropriada de calor e familiaridade, e foi essa contradição que levou à conclusão lógica, embora absurda, de que ela era uma “duplicata”. (Essa condição, que pode ocorrer na esquizofrenia, mas também com a demência ou o delírio, é conhecida como síndrome de Capgras.) Augusta disse que, qualquer que fosse a explicação correta, o consumo de drogas que alteravam a mente todo fim de semana, sozinho e em altas doses, indicava necessidades ou conflitos interiores de grande intensidade, e que eu devia falar daquilo com um terapeuta. Em retrospecto, não tenho dúvida de que ela estava certa, e comecei a frequentar um analista um ano mais tarde.

verão de 1965 foi uma espécie de intervalo: eu havia completado minha residência na Ucla e deixado a Califórnia, mas tinha três meses pela frente antes de começar uma bolsa de pesquisa em Nova York. Deveria ter sido um período de deliciosa liberdade, férias maravilhosas e muito necessárias depois das semanas de sessenta e até oitenta horas de trabalho que eu tinha vivido na Ucla. Mas eu não me sentia livre. Quando não estou trabalhando, sinto-me sem amarras, tenho uma sensação de vazio e falta de estrutura. Quando eu morava na Califórnia, os fins de semana eram os momentos mais perigosos, a hora das drogas – e agora um verão inteiro na minha cidade natal, Londres, estendia-se à minha frente como um fim de semana com três meses de duração.
Foi durante esse período de ócio traiçoeiro que entrei fundo no consumo de drogas, não mais confinado aos fins de se-mana. Experimentei injeções intravenosas, o que nunca tinha feito. Meus pais, ambos médicos, estavam fora, e decidi explorar o armário de remédios em seu consultório, no andar térreo da nossa casa, à procura de alguma coisa especial para comemorar meu 32º aniversário. Nunca antes eu tinha tomado morfina ou qualquer outro opiáceo. Usei uma seringa grande – por que me contentar com doses insignificantes? E, depois de me instalar comodamente na cama, reuni o conteúdo de vários frascos, mergulhei a agulha numaveia e injetei a morfina bem devagar.
Dali a mais ou menos um minuto, minha atenção foi atraída por uma espécie de comoção na manga do meu robe, pendurado na porta. Concentrei meu olhar ali, e o movimento se definiu como uma cena de batalha em miniatura, mas microscopicamente detalhada. Vi tendas de seda de várias cores, a maior das quais ostentava um pavilhão real. Havia cavalos alegremente enfeitados, soldados a cavalo, com suas armaduras reluzindo ao sol, e homens armados de arco. Vi flautistas com longas flautas prateadas, e depois, muito ao longe, escutei a música que tocavam. Vi centenas, milhares de homens – dois exércitos, duas nações – se preparando para o combate. Perdi toda a noção de que se tratava de um trecho da manga do meu robe, ou de que eu estava deitado na cama, em Londres, e era 1965. Antes de me aplicar a morfina eu vinha lendo asCrônicas de Froissart e Henrique v, e agora essas leituras se misturavam à minha alucinação. Percebi que estava em Agincourt, no final de 1415, vendo os exércitos da Inglaterra e da França avançarem, em fileiras cerradas, para a batalha. E na tenda maior com o pavilhão, eu sabia, estava o próprio Henrique v. Nada me indicava que eu estivesse imaginando aquilo; o que eu via era concreto, real.
Depois de algum tempo, a cena começou a perder nitidez, e tornou a emergir em mim uma consciência tênue de que estava em Londres, drogado, delirando a batalha de Agincourt na manga do meu robe. Foi uma experiência deliciosa e arrebatadora, mas agora tinha passado. O efeito da droga se dissipava depressa; agora mal se via Agincourt. Olhei para o meu relógio. Eu tinha injetado a morfina às nove e meia, e agora eram dez. Tive uma sensação de estranheza – já era noite escura quando eu tomei a morfina, e agora devia estar mais escuro ainda. Não era o caso. Estava clareando, e não escurecendo, do lado de fora. E então eu percebi que eram dez horas, sim, mas dez da manhã. Eu tinha ficado imóvel, contemplando a minha Agincourt, por mais de doze horas. Isso me causou um choque e me fez recobrar alguma sobriedade, fazendo-me ver como era possível alguém passar dias inteiros, noites, semanas, até mesmo anos de sua vida no estupor do ópio. E decidi que minha primeira experiência com o ópio seria também a última.

o fim daquele verão de 1965, mudei-me para Nova York a fim de começar uma bolsa de pós-graduação em neuropatologia e neuroquímica. Dezembro de 1966 foi um mau momento: tive dificuldades para me ajustar a Nova York depois de meus anos na Califórnia; um caso amoroso tinha dado errado; minha pesquisa ia mal; e eu estava descobrindo que não tinha vocação para a ciência de laboratório. Deprimido e insone, eu tomava doses cada vez maiores de hidrato de cloral para dormir. Chegava a consumir doses quinze vezes maiores do que o normal. E, embora tenha conseguido fazer um grande estoque da droga – assaltando os suprimentos do laboratório em que trabalhava –, ele acabou esgotado numa triste terça-feira pouco antes do Natal. Pela primeira vez em vários meses, fui dormir sem ser apagado pela minha dose habitual. Meu sono foi ruim, interrompido por pesadelos e sonhos bizarros, e ao acordar me descobri intensamente sensível aos sons. Havia sempre caminhões trovejando pelas ruas de paralelepípedos do West Village; naquela manhã, pareciam triturar os paralelepípedos e reduzi-los a pó com sua passagem.
Sentindo-me um pouco debilitado, nãofui de motocicleta para o trabalho, como costumava, mas peguei o metrô e um ônibus. Quarta-feira era dia de dissecção de cérebro no departamento de neuropatologia, e era a minha vez de cortar o cérebro em fatias horizontais bem definidas, identificando as estruturas principais durante o processo e observando se havia algum desvio da normalidade. Em geral eu era bom nessa tarefa, mas naquele dia minha mão tremia visivelmente, o que me deixou constrangido, e a nomenclatura anatômica tardava a vir à minha memória.
Quando a sessão terminou, atravessei a rua, como tantas vezes antes, para um sanduíche e um café. Enquanto eu mexia o café, ele de repente ficou verde, e depois roxo. Levantei os olhos, espantado, e vi que o freguês que pagava sua conta na caixa tinha uma imensa cabeça proboscídea, como a de um elefante-marinho. Fui tomado pelo pânico; deixei uma nota de 5 dólares na mesa e atravessei correndo a rua para tomar o ônibus. Mas todos os passageiros pareciam ter cabeças brancas e lisas como ovos gigantescos, com olhos imensos e cintilantes que lembravam os olhos multifacetados de insetos – e pareciam se mover em espasmos repentinos, o que aumentava a sensação de estranheza e o medo que me causavam. Percebi que eu estava alucinando ou experimentando algum bizarro distúrbio da percepção, que não tinha como parar o que estava acontecendo no meu cérebro e que precisava manter pelo menos alguma aparência de controle e não entrar em pânico, não gritar, nem ficar catatônico diante dos monstros de olhos de inseto ao meu redor. A melhor coisa a fazer, descobri, era escrever, descrever aquela alucinação com toda a clareza e em pormenores quase clínicos, e, ao fazê-lo, transformar-me num observador, até mesmo num estudioso, em vez de vítima indefesa, da loucura dentro de mim. Nunca ando sem caneta e caderno, e agora eu escrevia como se a minha vida dependesse disso, enquanto ondas de alucinação passavam por mim.
Escrever, descrever, sempre foi minha maneira de lidar com situações complexas ou assustadoras – embora eu nunca tivesse testado esse recurso numa situação tão apavorante. Mas funcionou. Ao descrever no meu caderno de laboratório o que acontecia, consegui manter um simulacro de controle, embora as alucinações continuassem, em mutação constante.
Não sei dizer como eu desci do ônibus no ponto certo e peguei o metrô, apesar de tudo estar em movimento, rodopiando vertiginosamente, girando e até virando de cabeça para baixo. E consegui descer na estação certa, na região em que eu morava no Green-wich Village. Quando emergi das escadas do metrô, os prédios à minha volta balançavam de um lado para o outro e se agitavam como bandeiras em uma ventania. Senti um alívio imenso quando me vi de volta ao meu apartamento, sem ter sido atacado, preso ou morto pelo tráfego intenso do caminho. Assim que cheguei, achei que precisava entrar em contato com alguém – alguém que me conhecesse bem, que fosse médico e também meu amigo. A pediatra Carol Burnett era essa pessoa; tínhamos estudado juntos em San Francisco cinco anos antes, e retomamos a amizade depois de nos reencontrarmos em Nova York. Carol seria capaz de compreender, saberia o que fazer. Disquei o número dela com a mão agora muito trêmula. “Carol”, eu disse, assim que ela atendeu, “quero me despedir. Enlouqueci, fiquei psicótico, doido. Começou hoje de manhã, e o tempo todo só vem piorando.”
 “Oliver!”, disse Carol. “O que você acabou de tomar?”
“Nada”, respondi. “É por isso que estou tão assustado.” Carol pensou alguns instantes, e depois perguntou: “O que você acabou de parar de tomar?”
“É isso!”, disse eu. “Eu vinha tomando doses imensas de hidrato de cloral, e tive de parar ontem à noite, porque acabou.”
“Oliver, seu tapado! Sempre exagerando nas coisas”, disse Carol. “Você está tendo um caso clássico de dt, delirium tremens.”
Foi um alívio imenso – muito melhor delirium tremens que uma psicose esquizofrênica. Mas eu conhecia bem os perigos do dt: confusão, desorientação, alucinação, delírio, desidratação, febre, taquicardia, exaustão, convulsões, morte. Eu aconselharia qualquer pessoa no meu caso a seguir imediatamente para um pronto-socorro, mas decidi aguentar firme e viver toda a experiência. Carol concordou em ficar ao meu lado no primeiro dia, e depois, se achasse que eu podia ficar sozinho em segurança, passaria na minha casa ou me ligaria a intervalos, recorrendo à ajuda externa se julgasse necessário. Com essa rede de segurança, perdi boa parte da ansiedade, e até consegui, de certo modo, apreciar as criações do delirium tremens(embora a infinidade de animaizinhos e insetos fosse tudo, menos agradável). As alucinações continuaram por quase 96 horas e, quando finalmente cessaram, eu caí num estupor de cansaço.

uando menino, eu me deliciava com o estudo da química e adorei montar meu próprio laboratório. Esse deleite pareceu se extinguir mais ou menos aos 15 anos; nos meus anos de colégio, faculdade, formação médica e depois internato e residência, eu consegui um bom desempenho acadêmico, mas as matérias que eu estudava nunca provocaram em mim o entusiasmo que a química despertava nos meus tempos de garoto. Foi só quando cheguei a Nova York e comecei a ver os pacientes de uma clínica de enxaqueca, no verão de 1966, que passei a sentir um pouco do entusiasmo intelectual e do envolvimento emocional que tinha experimentado na minha juventude. Na esperança de promover uma intensificação desses sentimentos, recorri às anfetaminas.
Eu tomava a substância nas noites de sexta-feira, depois que voltava do trabalho, e passava o fim de semana inteiro tão enlouquecido que as imagens e os pensamentos se convertiam quase em alucinações controláveis. Muitas vezes eu dedicava esses fins de semana de barato a devaneios românticos, mas, numa sexta-feira de fevereiro de 1967, enquanto explorava a seção de livros raros da biblioteca médica, encontrei e peguei emprestado um livro raríssimo intitulado SobreEnxaqueca, Dor de Cabeça e Algumas Desordens Correlatas: uma Contribuição para a Patologia das Tempestades Nervosas, escrito em 1873 por um certo dr. Edward Liveing.

u vinha trabalhando havia vários meses numa clínica de enxaqueca, e estava fascinado com a gama de sintomas e fenômenos que podem ocorrer nas crises da doença. Essas crises muitas vezes incluíam sintomas como alucinações. Eram inteiramente benignas e só duravam alguns minutos, mas esses poucos minutos proporcionavam uma janela para o funcionamento do cérebro e como ele era capaz de entrar em colapso e depois se recuperar. Desse modo, achava eu, cada crise de enxaqueca era uma abertura para uma verdadeira enciclopédia de neurologia.
Eu tinha lido dúzias de artigos sobre a enxaqueca e suas possíveis causas, mas nenhum deles parecia apresentar toda a riqueza de sua fenomenologia ou a gama e a profundidade do sofrimento que os pacientes podiam experimentar. Foi na esperança de encontrar uma abordagem mais ampla, profunda e humana da enxaqueca que peguei o livro de Liveing na biblioteca naquele fim de semana. Assim, depois de tomar minha amarga porção de anfetaminas – com muito açúcar, para torná-la mais palatável – comecei a ler. À medida que a intensidade do efeito da anfetamina tomava conta de mim, estimulando minhas emoções e a minha imaginação, o livro de Liveing me parecia adquirir ainda mais intensidade, profundidade e beleza. Eu não queria nada além de entrar na mente de Liveing e sugar aquela atmosfera em que ele trabalhou.
 Numa espécie de concentração catatônica tão intensa que em dez horas mal movi um músculo ou umedeci meus lábios, li de uma enfiada as 500 páginas de Enxaqueca.Enquanto lia, eu quase tinha a impressão de me transformar no próprio Liveing, atendendo os pacientes que ele descrevia. Às vezes, eu não sabia ao certo se estava lendo o livro ou escrevendo o que ele dizia. Senti-me na Londres de Dickens, nas décadas de 1860 e 70. Amei a compaixão e a sensibilidade social de Liveing, sua afirmação categórica de que a enxaqueca não era um capricho dos ricos ociosos, mas podia afetar pes-soas malnutridas e que trabalhassem muitas horas em fábricas mal ventiladas. O livro me lembrava o grande estudo de Henry Mayhew de 1861, sobre as classes trabalhadoras de Londres, mas também era possível perceber como Liveing tinha sido bem treinado em biologia e nas ciências físicas, além de ser um mestre da observação clínica. E me vi pensando: isso representa o melhor da ciência e da medicina em meados da Era Vitoriana; trata-se de uma verdadeira obra-prima! O livro me apresentava o que eu tanto tinha querido encontrar por todos os meses em que examinei pacientes com enxaqueca, sentindo-me frustra-do com os artigos sumários e pobres que pareciam constituir a “literatura” moderna sobre o tema. No auge dessa viagem, eu via a enxaqueca brilhando como um arquipélago de estrelas nos céus da neurologia.
Cerca de um século havia se passado desde o tempo em que Liveing trabalhou e escreveu em Londres. Ao despertar do devaneio em que eu era Liveing ou um dos seus contemporâneos, voltei a mim e pensei: “Estamos na década de 1960, não de 1860. Quem poderia ser o Liveing do nosso tempo?” Uma variedade dissimulada de nomes me veio à mente. Pensei no dr. A., no dr. B., no dr. C. e no dr. D., todos bons homens, mas nenhum dotado daquela combinação de ciência e humanismo que era tão poderosa em Liveing. E então uma voz interior muito alta disse: “Seu babaca idiota! É você!”

m todas as ocasiões anteriores em que eu havia aterrissado depois de dois dias de euforia induzida pela anfetamina, eu experimentara umaviolenta reação oposta, sentindo um cansaço e uma depressão quase narcolépticos. Tinha também uma sensação clara do despropósito que era pôr minha vida em risco em troca de nada – as anfetaminas, nas grandes doses que eu consumia, mantinham meus batimentos em torno de 200 por minuto e uma pressão sanguínea de nem sei quanto; várias pessoas que eu conhecia tinham morrido de overdose de anfetamina. Eu sentia que tinha feito uma ascensão louca até a estratosfera, mas voltava de mãos abanando, não tendo nenhum resultado daquilo para apresentar; sentia que a experiência tinha sido intensa, mas vazia. Dessa vez, porém, quando retornei, conservava uma sensação de clareza e descoberta; eu tivera uma espécie de revelação sobre a enxaqueca. E tinha a sensação de ter decidido, também, que estava de fato equipado para escrever um livro equivalente ao de Liveing, e que talvez eu pudesse ser o Liveing do nosso tempo.
No dia seguinte, antes de devolver o livro de Liveing à biblioteca, fotocopiei todas as suas páginas e então, pouco a pouco, comecei a escrever o meu próprio livro. A felicidade que isso me proporcionava era real – infinitamente mais substancial que a euforia vazia provocada pelas anfetaminas –, e nunca mais voltei a tomá-las.
8 de setembro de 2015
Oliver Sacks