sábado, 3 de abril de 2010

TRÊS POETAS

O que me encanta em Adélia Prado (e o seu nome já parece um canto), é seu gesto simples de apanhar o verso, como quem colhe uma pedra no caminho. Não requer o amor à vida, mais do que gestos simples, mais do que olhar o cotidiano e deliciar-se com ele: vento no cio roçando a copa dos pequenos arbustos, pássaro pousado na cerca de bambu, procissão contrita cortando a cidade pelo meio, riacho correndo manso, cantando aquele verso de Garcia Lorca: "y el murmurio del agua es una cosa eterna..."
Essa vocação para o encantamento das coisas, creio eu que é a fonte, a nascente da poesia.
Adélia carrega esse vocação: o sagrado olhar de quem vê as coisas pela primeira vez. Porque é no primeiro olhar que descobrimos a beleza, ou não a desvelamos mais.
Falo de Adélia, de Cora Coralina, e de Ferreira Gullar com o coração disparado.
Quando batemos os sentidos na poesia de Cora Coralina, é inevitável sentir uma coisa muito funda, bem lá dentro da nossa alma. Há sempre a sensação de que algo fundamental tocou na nossa mais sentida emoção.
Há santidade, há sabedoria, há cheiro dos mistérios da terra, dos viventes... Dos vegetais no campo. Na poesia de Cora vive um pouco de cada um de nós, algo telúrico. É muito bom beber a poesia de Cora.
Já Ferreira Gullar é uma parabólica, negando, a intervalos escuros, o consumo do modismo, da discreção elegante, da hipocrisia. Sua palavra afronta o comodismo, o olhar barato das vitrines, das luzes coruscantes.
Mas o olhar está sempre aprisionando o cotidiano dos homens e das coisas, o cotidiano de todos os viventes. Há sentimentos transbordantes, incontidos, penosos porque não seguram o fluir da vida, não aprisionam o instante vivido como se fosse uma eternidade.
Não há muito o que falar quando se trata de poesia. Mas basta ouvir o seu canto...

BAIRRO
(Adélia Prado)
O rapaz acabou de almoçar
e palita os dentes na coberta.
O passarinho recisca e joga no cabelo do moço
excremento e casca de alpiste.
Eu acho feio palitar os dentes,
o rapaz só tem escola primária
e fala errado que arranha.
Mas tem um quadril de homem tão sedutor
que eu fico amando ele perdidamente.
Rapaz desses
gosta muito de comer ligeiro:
bife com arroz, rodela de tomate
e ir ao cinema
com aquela cara de invencível fraqueza
para os pecados capitais.
Me põe tão íntima, simples,
tão à flor da pele o amor
o samba-canção,
o fato de que vamos morrer
e como é bom a geladeira,
o crucifixo que mamãe lhe deu,
o cordão de ouro sobre o frágil peito
que.
Ele esgravata os dentes com o palito,
esgravata é meu coração de cadela.

O PODER DA ORAÇÃO
(Adélia Prado)
Em certa manhãs desrezo:
a vida humana é muito miserável.
Um pequeno desencaixe nos ossinhos
faz minha espinha doer.
Sinto necessidade de bradar a Deus:
"brim coringa não encolhe."
E eu entendo comprido
o comovente esforço da humanidade
que faz roupa nova para ir na festa,
o prato esmaltado onde ela ama comer,
um prato fundo verde imenso mar cheio de estórias.
A vida humana é muito aventurosa.
"Brim coringa não encolhe?"
Meu coração também não.
Quando em certas manhãs desrezo,
é por esquecimento,
só por desatenção.

MINHA CIDADE
(Cora Coralina)
Goiás, minha cidade...
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
uma das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.

Eu sou aquela mulher
que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando estórias,
fazendo adivinhação.
Cantando o teu passado.
Cantando o teu futuro.

Eu vivo nas tuas igrejas
e sobrados
e telhados
e paredes.

Eu sou aquele teu velho muro
verde de avencas
onde se debruça
um antigo jasmineiro,
cheiroso
na ruina pobre e suja.

Eu sou estas casas
encostadas
cochichando umas com as outras.
Eu sou a ramada
dessas árvores,
sem nome e sem valia,
sem flores e sem frutos,
de que gostam
a gente cansada e os pássaros vadios.

Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.

Eu sou a dureza desses morros,
revestidos,
enflorados,
lascados a machado,
lanhados, lacerados.
Queimados pelo fogo.
Pastados.
Calcinados
e renascidos.
Minha vida,
meus sentidos,
minha estética,
todas as vibrações
de minha sensibilidade de mulher, têm, aqui, suas raízes.

Eu sou a menina feia
da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.

De FERREIRA GULLAR, apenas alguns poucos versos do seu POEMA SUJO.

[...]
Que importa o nome a esta hora do anoitecer em São Luís do
Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro de um enigma?
                                          Mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma critaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos de louça que se quebraram já
                       um prato de louça ordinária não dura tanto
                       e as facas se perdem e os garfos
                       se perdem pela vida caem
                       pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de
                                                      [erva-cidreira
e as grossas orelhas de hortelã
                       quanta coisa se perde
                       nesta vida
                       Como se perdeu o que eles falavam ali
                       mastigando
                       misturando feijão com farinha e nacos de carne assada
e diziam coisas tão reais como a toalha bordada
ou a tosse da tia no quarto
e o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa
janela
        tão reais que
        se apagaram para sempre
                                             Ou não?
[...]

M. AMERICO