sábado, 13 de junho de 2015

O BAR DO MCSORLEY

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O McSorley’s ocupa o térreo de um prédio de tijolinhos vermelhos, é o número 15 da rua 7, vizinho à Cooper Square, onde termina a Bowery. Foi inaugurado em 1854 e é o bar mais antigo de Nova York. Em seus 86 anos[1], teve quatro proprietários – um imigrante irlandês, seu filho, um policial aposentado, sua filha –, todos eles avessos a mudanças. Embora disponha de energia elétrica, o bar teima em ser iluminado por duas lâmpadas a gás – toda vez que alguém abre a porta, a luz oscila e projeta sombras no teto baixo, coberto de teias de aranha. Não há caixa registradora. As moedas são atiradas em tigelas – uma para as de 5 centavos, uma para as de 10, uma para as de 25 e uma para as de 50 –, e as notas são guardadas num cofre de madeira.
É um lugar modorrento; os atendentes nunca fazem um movimento a mais, os fregueses esvaziam as canecas lentamente, os três relógios de parede não entram em acordo há muitos anos. A clientela é variada. Inclui mecânicos das muitas oficinas das redondezas, vendedores das firmas da Cooper Square que abastecem restaurantes, motoristas de caminhão da loja Wanamaker’s, médicos que fazem residência no hospital Bellevue, estudantes da Cooper Union e balconistas dos sebos situados ao norte da Astor Place.
O esteio da freguesia, porém, consiste num grupo que está encolhendo a olhos vistos: são velhos rabugentos, na maioria irlandeses, que bebem ali desde a adolescência e se sentem donos do pedaço. Alguns vivem de aposentadorias irrisórias e não têm ninguém no mundo; dormem em hotéis da Bowery e passam no McSorley’s praticamente todo o tempo em que estão acordados. São poucos os frequentadores que se lembram bem de John McSorley, o fundador, morto em 1910, aos 87 anos. Referem-se a ele como “o velho John” e gostam de falar a seu respeito enquanto mordiscam o cachimbo, sentados nas cadeiras capengas que rodeiam a estufa bojuda responsável pelo aquecimento.
O velho John era excêntrico. Em geral afável, estava sujeito a crises de inexplicável mau humor, durante as quais se recusava a abrir a boca quando lhe dirigiam a palavra. Perdeu o cabelo ainda jovem e adotou umas costeletas desgrenhadas, patriarcais, antes de completar 40 anos. Restam inúmeras fotos dele, vê-se que esbanjava dignidade e modéstia. Decorou o bar ao estilo de um estabelecimento que conheceu em Omagh, sua cidade natal, no condado de Tyrone, na Irlanda, e o batizou de Old House at Home; por volta de 1908, a tabuleta caiu e, ao mandar fazer uma nova, ele mudou o nome para McSorley’s Old Ale House. Esse é o nome oficial, mas os fregueses só o chamam de McSorley’s. O velho John achava impossível que os homens pudessem beber em paz na presença de mulheres; nos fundos do bar há um belo reservado, mas durante muitos anos havia um aviso pregado na porta: “ATENÇÃO. NÃO DISPOMOS DE RESERVADO PARA SENHORAS.”
Com efeito, em toda a história do McSorley’s, a única freguesa bem aceita foi uma vendedora ambulante, uma velha meio maluca apelidada de Tia Torradinho na Hora, que contava que o marido morreu de mordida de lagarto, em Cuba, durante a Guerra Hispano-Americana; por duas gerações ela percorreu os bares do Lower East Side vendendo amendoim, que trazia no avental. Nos dias quentes, o velho John lhe vendia uma cerveja; ela o estimava tanto que bordou uma pequena bandeira americana e deu a ele de presente num Quatro de Julho; ele emoldurou e pendurou na parede, acima da bomba de chope, onde está até hoje. Se outra mulher entrasse no bar, o velho John corria ao seu encontro, cumprimentava com uma ligeira reverência e dizia: “Desculpe, madame, mas não servimos senhoras.” Se ela insistisse, ele a tomava pelo braço e conduzia até a porta: “Por favor, madame, não me provoque. Saia logo daqui ou serei obrigado a esquecer que a senhora é uma dama.” Essa técnica, sem tirar nem pôr, é utilizada até hoje.

Ovelho John atendia trabalhadores irlandeses e alemães que viviam na vizinhança da rua 7 – carpinteiros, curtidores, pedreiros, açougueiros, carroceiros e cervejeiros –, aos quais vendia cerveja em canecas de lata, a 5 centavos cada uma, e oferecia um lanche grátis, que consistia invariavelmente em bolachas de água e sal, cebola crua e queijo; os fregueses atuais costumam se queixar que parte do queijo servido na noite da inauguração, em 1854, ainda está por lá. Junto às travessas do lanche grátis ficavam um pote de tabaco e um estoque de cachimbos de barro ou de sabugo de milho – o consumo de uma caneca de cerveja dava direito a fumar no estabelecimento; alguns desses cachimbos comunitários continuam no mesmo lugar.
Econômico, o velho John conseguiu comprar o prédio – com cinco andares, abriga oito famílias – cerca de dez anos depois de ter aberto o bar. Ele não confiava em banco e sempre mantinha o dinheiro num cofre de ferro, que até hoje se encontra no reservado, mas com as portas soltas, não guarda nada além de alvarás vencidos e diversos pertences dos McSorley, inclusive a navalha de barbear. Ele morava com a família num apartamento do 1º andar; levantava-se diariamente às cinco da manhã e, chovesse ou fizesse sol, dava uma longa caminhada antes do café da manhã. Abria o bar às sete e varria o chão, espalhando serragem.
Enquanto teve forças para manejar uma charrete, manteve um cavalo e uma cabra num estábulo que ficava na esquina da St. Mark’s Place. Deixava-os na mesma baia, acreditando, como muita gente que gosta de cavalos, que esses animais precisam de companhia à noite. À tarde, quando havia pouco movimento, um empregado do estábulo levava o cavalo para a rua 7 e o amarrava num poste em frente ao bar; o velho John postava-se no meio-fio, com seu avental de barman, e escovava o animal. O freguês que quisesse fazer um pedido batia na janela e ele então largava a rascadeira, entrava, servia uma cerveja e logo voltava para o cavalo. Aos domingos, participava de corridas de charrete nas avenidas centrais.
Dos 20 aos 55 anos, o velho John bebeu todos os dias, mas em seus últimos 32 anos de vida não tomou uma gota. “Já tive minha cota”, explicava. Salvo alguns meses de experiência, em 1905 ou 1906, nunca vendeu destilados; acreditava que ninguém precisava de bebida mais forte que uma caneca de cerveja aquecida no rebordo da estufa. O velho John era um bom garfo. À noite, pouco antes de fechar o bar, geralmente grelhava uma bisteca de mais de um quilo, numa pá de carvão disposta sobre a brasa que ardia na lareira do reservado. Gostava de enfiar uma cebola inteira num bico de pão francês, previamente esvaziado do miolo, e comer como se fosse maçã. Adorava cebola – quanto mais ardida, melhor – e dizia que o lema de seu bar era “Boa cerveja, cebola crua e mulher nenhuma”.
No inverno, mais ou menos uma vez por mês, promovia um banquete no reservado, oferecendo bisteca por conta da casa; mais velho, presidiu uma organização de glutões chamada Honorable John McSorley Pickle, Beefsteak, Baseball Nine, and Chowder Club, que realizava piqueniques com mariscadas num bosque da North Brother Island, no East River. Nas paredes do bar veem-se inúmeras fotos desses eventos, e na maior parte delas os membros do clube aparecem acocorados em torno de barriletes de cerveja; com exceção do presidente, todos exibem o sorriso mole e o olhar aturdido de quem bebeu muito.
O velho John tinha uma voz de baixo profundo e gostava de cantar com um coro de bêbados. Suas canções favoritas eram Muldoon, the Solid ManSwim Out, You’re Over Your HeadMaggie Murphy’s HomeSince the Soup House Moved Away, todas escritas por Harrigan e Hart, então chamados de “os Gilbert e Sullivan dos Estados Unidos”.[2] Respeitava-os muito e exultou quando eles fizeram de seu bar o cenário de uma comédia, intitulada McSorley’s Inflation, em 1882.

Adespeito de não ser um sujeito sociá-vel, conhecia muita gente importante. Um de seus amigos mais chegados era Peter Cooper, presidente da North American Telegraph Company e fundador da universidade Cooper Union, situada a meio quarteirão do bar. Em seus últimos anos de vida, o sr. Cooper passou tantas tardes no reservado do McSorley’s, filosofando com os trabalhadores, que ganhou uma cadeira cativa, equipada de uma almofada de borracha inflável. (A cadeira ainda está lá e durante anos, desde que o sr. Cooper morreu, em 4 de abril de 1883, era coberta com um pano preto todo dia 4 de abril.) Como outros clientes fiéis, o sr. Cooper tinha uma caneca de lata com seu nome gravado com um furador de gelo. Ele presenteou o bar com seu próprio retrato, em tamanho natural, que se encontra sobre a lareira do reservado. É uma decoração adequada, pois a partir da Lei Seca o McSorley’s se converteu no bar oficial dos alunos da Cooper Union. Às vezes um estudante sentimental se posta diante da foto e ergue um brinde ao patrono.
O velho John era apaixonado por memorabilia. Durante anos, depois de cada Ação de Graças e do Natal, pendurava o ossinho da sorte do peru na vareta que une as duas lâmpadas a gás sobre o balcão; esses ossinhos empoeirados são invariavelmente a primeira coisa que desperta a curiosidade dos fregueses novos. Há pouco tempo um desses neófitos irritou um barman ao comentar que “talvez o velho acreditasse em vodu”. O velho John decorou a divisória entre o bar e o reservado com cardápios de banquetes, autógrafos, estrelas-do-mar, programas teatrais, cartazes políticos e ferraduras usadas por vários cavalos, de corrida ou de cervejaria. Acima da entrada do reservado colocou um porrete e um aviso: “COMPORTE-SE OU VÁ EMBORA.”
Numa das paredes do bar espalhou imagens de cavalos, barcos, chefões da Tammany Hall,[3]jóqueis, atores, cantores e estadistas. Por volta de 1902, pregou um painel com ótimos retratos dos presidentes Lincoln, Garfield e McKinley; na pesada moldura de carvalho, fixou uma plaqueta de metal com a frase: “Aqueles cachorros assassinaram estes homens bons.” Na mesma parede pendurou quadros com a primeira página de jornais antigos; uma delas, do Timeslondrino de 22 de junho de 1815, traz no canto inferior direito um único parágrafo sobre o início da batalha de Waterloo; outra, do Herald nova-iorquino de 15 de abril de 1865, contém um artigo de uma coluna sobre o assassinato de Lincoln.
Ele forrou uma outra parede com litografias e gravuras em metal. Uma delas retrata Garfield em seu leito de morte. Outra exibe o título A Grande Luta. Refere-se à luta de boxe travada entre Tom Hyer e Yankee Sullivan, ambos de punhos nus, em Still Pond Heights, Maryland, em 1849. Hyer venceu em dezesseis rounds e ganhou o prêmio de 10 mil dólares. Os juízes usavam cartola. Outra gravura traz uma placa com a inscrição “Resgate do coronel Thomas J. Kelly e do capitão Timothy Deacy por membros da Irmandade Revolucionária Irlandesa que os salvaram do governo inglês em Manchester, Inglaterra, em 18 de setembro de 1867”. Vê-se nessa parede uma cópia da Proclamação da Emancipação, bem como o indefectível fac-símile do alvará de funcionamento do bar, assinado por Lincoln.
Duas gravuras, postas lado a lado, mostram George Washington com seus generais e uma sessão do Grande Parlamento da Irlanda. O velho John acabou forrando com retratos e recordações praticamente todos os centímetros quadrados de parede existentes entre os lambris e o teto. Esses retratos e recordações ainda se encontram em boas condições, apesar de muitos estarem cobertos de teias de aranha. Os fregueses novos sobem nas cadeiras e passam horas a estudá-los.

Embora só se considerasse aposentado em seus últimos anos de vida, o velho John parou de trabalhar diariamente por volta de 1890, quando confiou o bar a seu filho, William. Bill McSorley era o tipo de pessoa que não se intromete na vida de ninguém. Herdou toda a rabugice do velho John e apenas um pouco de sua afabilidade. O pai estava longe de ser um perdulário, mas o filho levou a temperança ao extremo: só tomava água da torneira e chá, e se gabava disso. Bill gostava de cheirar um rapé. Era tão formal que antes de completar 30 anos vários clientes já haviam se acostumado a chamá-lo de velho Bill.
Ele adorava o pai, mas a profundidade dessa adoração só se revelou quando o velho John morreu. Depois do enterro, Bill trancou o bar, subiu para o apartamento da família, fechou as venezianas e lá ficou quase uma semana. Por fim, num domingo de manhã, desceu as escadas, magro e silencioso, com um martelo e uma chave de fenda, e passou o dia pregando na parede os quadros e as recordações do pai, que haviam sido pendurados a esmo, em fios de arame, e que os fregueses costumavam tirar do lugar. Depois contratou um professor de arte da Cooper Union para pintar um pequeno retrato do velho John, a partir de uma fotografia. Colocou-o na parede atrás do balcão e o mantinha constantemente iluminado por uma lâmpada elétrica – homenagem conservada até hoje.
Durante toda a vida, sua principal preocupação foi manter o McSorley’s tal e qual era na época do pai. Qualquer modificação, qualquer conserto parecia lhe doer fisicamente. O balcão estava cedendo havia vinte anos. Várias vezes o carpinteiro o advertiu de que o desabamento não tardaria, mas só em 1933 Bill o autorizou a resolver o problema. Enquanto o carpinteiro trabalhava, Bill ficava sentado a uma mesa, no reservado, com a cabeça entre as mãos, tão deprimido que não conseguia comer. No mesmo ano a pintura do teto, impregnada de fumaça e cheia de teias de aranha, começou a descascar. As lascas de tinta se espalhavam pelo chão. Só depois que os fregueses reclamaram que poderiam morrer engasgados com as lascas que caíam em suas canecas, Bill mandou pintar o teto, ainda que de má vontade.
Em 1925 precisou aderir às canecas de barro, pois clientes ávidos de recordações haviam roubado a maioria das canecas de lata. No mesmo ano mandou instalar no reservado um telefone público que jamais atendeu. Foram praticamente essas as grandes mudanças que permitiu. Quando algum quadro de seu pai despencava da parede e o vidro se quebrava, ele tratava de preencher o espaço vazio. Suas contribuições incluem uma série de retratos das esposas de presidentes até a senhora Woodrow Wilson, um cartaz que apresentava Barney Oldfield num carro de corrida vermelho e um poema intitulado “O homem atrás do balcão”. Bill sabia o poema de cor e gostava do último verso em particular:
Quando o vir chegar, são Pedro deixará as portas entreabertas,
Pois sabe que o homem atrás do balcão viveu o inferno na Terra.
Como empresário, Bill era anacrônico; odiava banco, caixa registradora, contabilidade, vendedores. Se o bar estava lotado, ele fechava a porta cedo. “Estou ficando zonzo com tanto movimento”, dizia. Os representantes da cervejaria que abastecia o bar tentavam convencê-lo a abrir uma conta-corrente; ele teimava em pagar com moedas, em geral de prata. Contava o dinheiro quatro ou cinco vezes, colocava-o num saco de papel e o entregava ao motorista. Como barman, era competente. Entendia de cerveja: sabia tirá-la e conservá-la, e vivia limpando o equipamento. No verão, mergulhava as canecas de barro numa tina de gelo; assim, mesmo que um freguês demorasse para tomar sua bebida, a caneca a mantinha fria.
A Fidelio Brewery, firma da Primeira Avenida fundada dois anos antes do bar, sempre serviu o McSorley’s, salvo na época da Lei Seca. Em 1934, Bill vendeu a ele o direito de usar o nome McSorley’s Cream Stock para sua cerveja e permitiu que estampasse no rótulo o retrato do velho John; uma frase rodeando o retrato informa: “Tal como fabricada para o McSorley’s Old Ale House.”
Na vigência da Lei Seca, a cerveja do McSorley’s era misteriosamente produzida em barris e tinas de lavar roupa no porão do bar, por Barney Kelly, um cervejeiro aposentado que morava no Bronx e aparecia três vezes por semana. Nesses dias, o cheiro de malte e lúpulo molhado era intenso. Kelly fabricava uma cerveja pura e extraordinariamente forte, e Bill adotou o hábito de diluí-la, acrescentando uma bebida de malte com baixo teor alcoólico. Durante toda a Lei Seca, falava dela como “quase cerveja”, um eufemismo que divertia os clientes. Uma noite, um policial que o conhecia enfiou a cabeça na porta e disse: “Vi um velho, ali na esquina, brigando com um cavalo. Perguntei o que tinha bebido, e ele respondeu: ‘Quase cerveja, no McSorley’s.’” Uma caneca custava então 15 centavos, ou duas por 25. Hoje custa 10 centavos.

Bill era um homem alto, de ombros largos, mas não parecia forte; andava arrastando os pés e, com seu rosto abatido, dava a impressão de estar sempre em convalescença. Usava ternos de um preto ruço e gravata-borboleta preta, mas gostava de camisas surpreendentemente vistosas – de seda, com listras coloridas. Era míope, mantinha o bar pouco iluminado e opunha-se terminantemente à venda de bebida para menores de idade; daí que às vezes olhava para um adulto de baixa estatura e dizia: “Não vou lhe vender nada, amigo. Volte para casa, que é o seu lugar.” Certa vez ficou olhando durante um bom tempo um canto do bar e de repente gritou: “Tire o pé de cima da mesa!” Evidentemente observara uma sombra; não havia ninguém ali.
O velho Bill era tirânico. Quando estava lendo o jornal, ignorava por completo a fila de fregueses que aguardava atendimento. Se alguém se impacientava e exigia uma bebida, Bill o encarava com raiva e berrava comentários obscenos numa voz aguda e fanhosa. Longe de se aborrecer com seus modos, a clientela ria, achando graça. Na verdade, muitos fregueses gostavam dele, apesar de seu mau humor. Conheciam-no desde a juventude e, acostumados a suas esquisitices, chegavam mesmo a se orgulhar dele. Quando afirmavam que Bill era o sujeito mais casmurro ou mais sovina do hemisfério ocidental, havia um tom de satisfação em suas vozes; quanto mais excêntrico ele se tornava, mais o respeitavam.
Às vezes, para impressionar um novato, um desses clientes gritava: “Ei, Bill, me empreste 50 dólares!”, ou: “Ei, Bill, mortalha não tem bolso!” Em geral esse tipo de comentário provocava uma enxurrada de xingamentos. Então o cliente se voltava para o novato e perguntava: “Viu só?” Quando a Lei Seca foi implantada, Bill simplesmente a ignorou. Continuou trabalhando às claras. Não instalou olho mágico nem comprou proteção, mas nunca sofreu nenhuma batida; sua imunidade decerto se devia ao fato de sua clientela incluir numerosos políticos da Tammany e policiais.
Bill jamais estabeleceu um horário de fechamento: encerrava as atividades assim que sentia sono, o que em geral acontecia por volta das dez. Pouco antes de trancar as portas, convidava todo mundo a aproximar-se do balcão e servia uma rodada grátis. Era um costume que seu pai instituíra e que ele mantinha fielmente, embora o desgostasse muito. Se os fregueses custavam a esvaziar a última caneca, Bill tossia duas ou três vezes, impaciente, batia no balcão com os punhos cerrados e dizia: “Escute aqui, pessoal! Não tenho obrigação nenhuma de ficar aqui plantado a noite inteira, esperando que vocês terminem de beber.” Sempre que perdia as estribeiras, dava pulinhos e gemia pateticamente.
Uma noite, no inverno de 1924, uma feminista do Greenwich Village, vestindo calças, capote masculino e gorro, entrou no McSorley’s com um cigarro na boca. Pediu uma cerveja, tomou, tirou o gorro e balançou a cabeça, deixando os cabelos caírem soltos pelos ombros. Então chamou Bill de porco chauvinista, gritou alguma coisa sobre a igualdade entre os sexos e foi embora. Quando percebeu que tinha servido uma mulher, Bill produziu um som entre o gemido e o urro, e se pôs a dar pulinhos. “Uma mulher!”, berrou. “Era uma maldita mulher!”
Bill era surdo, ou então fingia que era; mesmo assim, os ruídos comuns do dia a dia o incomodavam terrivelmente. O método que concebeu para manter o bar tranquilo era bem característico de seu temperamento. Comprou um alarme de incêndio semelhante aos usados nas escolas e fábricas e afixou-o na geladeira de 2 metros de altura que ficava atrás do balcão. Se alguém começava a cantar ou se os velhos sentados ao redor da estufa se punham a gritar uns com os outros, Bill se esgueirava até o alarme e puxava a cordinha freneticamente. O alarme ainda está lá e soa religiosamente quinze minutos antes da meia-noite para avisar que está chegando a hora de fechar; os fregueses tapam os ouvidos quando a campainha dispara.
Coerente em sua aversão a barulho, Bill não gostava nem mesmo do som da própria voz. Era capaz de ficar dias sem falar, bufando ou resmungando quando lhe perguntavam alguma coisa. Um homem que bateu ponto no McSorley’s durante dezesseis anos revelou que em todo esse tempo Bill lhe dirigiu apenas cinco palavras inteligíveis. Foram elas: “A curiosidade matou o gato.” O homem havia pedido polidamente que contasse a história de umas algemas enferrujadas que estavam penduradas na parede. Mais tarde soube que um cliente que lutou na Guerra Civil as recolheu numa prisão confederada, em Andersonville, Geórgia, e deu de lembrança ao velho John.

Às vezes Bill se afeiçoava inexplicavelmente a um freguês. Por volta de 1911, vários pintores se tornaram clientes do McSorley’s. Entre eles figuravam John Sloan, George Luks, Glenn O. Coleman e Stuart Davis. Todos eram bons pintores, não se davam ares de grandeza e foram aceitos como iguais pelos trabalhadores que frequentavam o bar. Uma noite o anarquista Hippolyte Havel acompanhou o grupo. Devido a seus discursos, esse tcheco cabeludo, míope e gentil tinha constantes problemas com a polícia. Até Bill estava curioso. “Como é que aquele sujeito com cara de maluco ganha a vida?”, perguntou a um dos pintores. Pisando em ovos, o outro respondeu que Havel era uma espécie de político.
Havel gostou do bar e se tornou assíduo. Depois de pronunciar um discurso incendiário na Union Square, costumava correr para o McSorley’s. Para espanto dos clientes antigos, o anarquista e o ultrar-reacionário democrata ligado à Tammany Hall tornaram-se grandes amigos; jamais alguém conseguiu entender essa amizade. Bill chamava o tcheco de Hippo e lhe concedeu um crédito de até 2 dólares (a outros fregueses não permitia que devessem sequer um charuto de 5 centavos). Bill tinha uma ideia extremamente vaga das atividades políticas de Havel. Um dia prometeu ao amigo que o recomendaria a Charles Francis Murphy, o cacique da Tammany, que às vezes aparecia no bar. “Pode ser que ele arranje alguma coisa para você”, falou. O anarquista, para quem não existia ninguém tão sujo quanto um chefão da Tammany, sorriu e agradeceu. Certa ocasião, um capitão da polícia resolveu alertar Bill. “É bom você ficar de olho naquele maluco cabeludo”, disse. “Por quê?”, perguntou Bill. A pergunta irritou o policial. “Que diabo, homem! Havel é anarquista! É a favor de explodir todos os bancos do país.” “Eu também sou”, Bill respondeu. A amizade que dedicava a Havel era extraordinária sob todos os aspectos.
Em geral, Bill reservava sua amabilidade aos gatos. Chegou a ter dezoito de uma vez, e os deixava circular à vontade pelo bar. Alimentava-os com salsicha de fígado de boi, e os animais eram enormes. Quando chegava a hora de dar comida, abandonava o balcão, por mais intenso que fosse o movimento, e batia numa frigideira; os gatos saíam de todos os cantos do bar, correndo como leopardos.
Bill era casado, mas não tinha filhos. “Quando eu morrer, este lugar morre comigo”, costumava dizer. Em março de 1936, porém, mudou de ideia – ninguém sabe por quê – e, para surpresa dos fregueses antigos, vendeu o bar e o prédio para Daniel O’Connell, um velho policial que desde 1900 passava a maior parte de seu tempo livre no reservado. O’Connell se aposentou dois dias antes de comprar o McSorley’s. Era o tipo de homem do qual se dizia: “Se ele não puder falar bem de você, mal não falará.” Ele se orgulhava das tradições do bar quase tanto quanto Bill e prometeu que não faria nenhuma mudança; essa foi uma das condições da venda.
Praticamente no dia em que entregou as chaves do bar, Bill começou a ter sérios problemas de saúde. Foi morar na casa de um parente, no Queens. Às vezes, à tarde, se o tempo estava bom, arrastava-se até o McSorley’s. Velho, pálido, desiludido, ficava horas sentado na cadeira de Peter Cooper, com as mãos nodosas no colo. Durante horas, contemplava o retrato do velho John. Os clientes tinham certeza de que ele se preparava para morrer, mas, ao vê-lo chegar, diziam: “Está com a cara boa hoje, garoto”, ou alguma coisa nessa linha. Bill parecia agradecido por esses comentários. Raramente abria a boca, porém uma vez se voltou para um homem que conhecia há quarenta anos e declarou: “Os tempos mudaram, McNally.” “Concordo em gênero e número”, o outro replicou. Então, como se temesse ter sido piegas, Bill tossiu, cuspiu e acrescentou: “O pão que se compra hoje em dia não serve nem para um cachorro.” Na noite de 21 de setembro de 1938, apenas 31 meses depois de deixar o balcão, morreu dormindo. Seus amigos calcularam que tinha 76 anos.

Opolicial aposentado se revelou um dono de bar complacente. Ao contrário de Bill, em vez de jogar na rua um bêbado briguento, procurava curar seu pileque com café ou sopa. “Se um sujeito fica doidão por causa de uma coisa que eu vendi para ele, não posso expulsá-lo a pontapés”, declarou certa vez. “Eu estaria fugindo à minha responsabilidade.” O’Connell comandou o estabelecimento por menos de quatro anos. Morreu em dezembro de 1939 e deixou o bar para uma filha, a senhora Dorothy O’Connell Kirwan. Jovem, respeitosa das tradições, a senhora Kirwan decidiu manter-se nos bastidores. A princípio, os fregueses temeram que houvesse reformas, porém agora constatam que seus receios eram infundados. “Sei como meu pai se sentia em relação ao McSorley’s, e, enquanto eu for a proprietária, não haverá mudanças”, ela garantiu. “Não vou modificar nem mesmo o veto à presença feminina.”
A senhora Kirwan só visita o bar no domingo à noite, a altas horas. Ainda assim, logo que o herdou, cometeu um erro de avaliação que desencadeou uma crise. Sofreu muito para se recuperar desse erro, mas hoje o considera uma bênção e vê a crise como uma espécie de demarcação inevitável entre o McSorley’s do passado, gerido pelo velho John, por Bill e por seu pai, e o McSorley’s do presente, gerido por ela. E gosta de falar sobre o assunto.
“Depois que meu pai morreu, o McSorley’s ficou entregue à própria sorte por alguns meses”, conta. “Deixei tudo nas mãos de dois velhos empregados, o barman do dia e o da noite, porém a responsabilidade era grande demais para eles, e as coisas pouco a pouco fugiram ao controle. Compreendi que precisava contratar um gerente – alguém para cuidar da contabilidade, pagar as contas e assumir o comando. E quanto mais pensava sobre isso, mais achava que a pessoa certa para a função era um tio meu, chamado Joe Hnida. Sou de família irlandesa e me criei num dos velhos bairros irlandeses do oeste do Greenwich Village, entre boêmios e excêntricos, e pensava que entendia muito de comportamento humano, mas logo descobri que não era bem assim.
“Joe Hnida é tcheco; é meu tio porque se casou com a irmã de meu pai. Ele trabalhava numa empresa de limusines especializada em casamentos e enterros; supervisionava os motoristas. É um homem bom, correto, trabalhador, e eu perguntei a ele se assumiria a administração do McSorley’s. Ele refletiu muito e respondeu que sim.
“Bem, Joe começou a trabalhar no McSorley’s numa segunda-feira de manhã, e no fim da semana alguns fregueses antigos, todos velhos amigos de meu pai, me telefonaram para se queixar dele. Eu não tinha levado em conta que Joe é um homem de poucas – pouquíssimas – palavras e simplesmente não conversa. Além disso, é autossuficiente até mais não poder. E ainda por cima – acho que ele concordaria –, se tem algum senso de humor, é um senso de humor tcheco; irlandês não é, com certeza.
“De qualquer modo, parece que alguns dos velhos que passavam o dia sentados naquelas cadeiras junto à parede, batendo papo e discutindo entre si, tentaram puxar conversa com Joe e não tiveram o menor sucesso. ‘Ele só diz bom-dia ou como vai e responde sim ou não’, um dos velhos reclamou. ‘Isso é mais ou menos tudo que ele tem para falar. Nem sobre o tempo ele comenta alguma coisa.’ ‘Se está atrás do balcão’, disse-me outro, ‘ele serve uma cerveja para o freguês, pega o dinheiro, dá o troco e pronto. Não pronuncia uma só palavra desnecessária.’
“Alguns desses velhos se afeiçoaram a Joe, mas eram justamente os que também nunca tinham muito para falar. E pouco a pouco a maioria acabou chegando à conclusão de que Joe os considerava apenas um bando de chatos tagarelas e os desprezava; para revidar, passaram a caçoar dele pelas costas e a chamá-lo de ‘aquele tcheco metido a besta que dirige carro funerário’. Quando me telefonavam, eu tentava explicar o jeito de ser de Joe, defendia-o e procurava acalmar os ânimos. ‘Afinal, Bill McSorley não era exatamente um conversador’, eu argumentava. ‘Meu pai dizia que havia dias em que vocês não conseguiam arrancar uma palavra dele.’ Mas isso não adiantava nada. Bill McSorley era diferente – era o proprietário e tinha o direito de fazer o que bem entendesse; podia não se importar com ninguém, mas não dava a impressão de que olhava para os outros de cima para baixo. O tcheco apareceu de repente, vindo não se sabia de onde, e nem sequer era gentil. As reclamações se sucederam.”

"Semanas e meses se passaram, e a situação não melhorou. Então, certo dia, o barman mais antigo, um homem em quem eu confiava cegamente, me ligou e me informou que tinha acontecido o pior. ‘É ridículo, Dot, mas os velhos descobriram que Joe não gosta de cerveja’, contou. ‘Ele fez de tudo para esconder, mas o segredo acabou escapando, e o pessoal imediatamente começou a azucriná-lo; ele se irritou e disse que detesta não só o gosto, como o cheiro de cerveja. Na verdade, disse que às vezes o cheiro lhe dá dor de cabeça. Bem, como disse, é ridículo, mas os velhos estão agindo como se tivessem descoberto uma coisa terrível a respeito de Joe. E eu os conheço – eles não vão deixar esse assunto morrer. Como se não bastasse, de repente uns e outros ficaram sensíveis demais. Com tudo isso vieram à tona diferenças que consideravam enterradas e esquecidas há muito tempo, e eles pararam de se falar, ainda que às vezes nem se lembrem bem por quê. Conclusão: eles andam se evitando e ao mesmo tempo parecem baratinados. Está um caos.’
“Eu precisava fazer alguma coisa. Meu marido, Harry Kirwan, nasceu e se criou numa velha cidade irlandesa chamada Ballyragget, em Kilkenny. Ballyragget é uma cidade de feiras, conhecida por seus bares antigos. Harry perdeu a mãe em criança e morava com a avó. Assim que entrou na escola, passou a trabalhar num desses bares, o Staunton’s. Varria o bar antes das aulas e depois ficava lá o resto da tarde, lavando copos, enchendo o depósito de carvão, fazendo entregas, levando recados – enfim, prestando serviços gerais. Harry é estudioso por natureza, sempre leu muito. Queria ser professor universitário na Irlanda, mas não tinha como pagar os estudos. Assim, aos 19 anos veio para os Estados Unidos e arrumou emprego numa indústria química do Bronx, e, quando nos casamos – menos de um ano antes de meu pai morrer –, já era chefe
da contabilidade.
“À noite, quando ele chegou em casa, eu disse: ‘Sente-se. Tenho uma coisa muito séria para conversar com você.’ Expus a situação e depois falei: ‘Sei que você adora o que faz e detesto pedir isso, mas será que você poderia abrir mão do seu emprego e assumir o comando do McSorley’s?’ A resposta que ele me deu foi esta, e me lembro de todas as suas palavras: ‘Em primeiro lugar, Dot, eu não adoro o que faço; finjo que adoro, mas odeio. Em segundo lugar, por que você demorou tanto para ter essa ideia, pelo amor de Deus? Você já me ouviu falar tanto do Staunton’s, lá em Ballyragget, e a maioria dos fregueses daquele bar eram velhos difíceis de lidar, e eu me dava bem com eles. Eu não só me dava bem, como gostava deles. Gostava de observá-los e de escutá-los. Pareciam atores representando uma peça, só que a peça era real. Havia alguns Falstaff[4] – quer dizer, eram uns velhos bêbados, fanfarrões, saídos dos becos de Ballyragget, mas para mim eles eram Falstaff. Também havia alguns Pistol. E um velho com cara de coração partido sentado num canto, com uma Guinness à mão, que ficava olhando para o nada durante horas e às vezes resmungava alguma coisa para si mesmo; sempre que ele entrava, eu dizia com meus botões: o rei Lear. Entre aqueles homens encontravam-se almas boas, mas também alguns parasitas – parasitas, leprosos e traidores –, e imagino que o elenco do McSorley’s seja praticamente igual. Em outras palavras, Dot, a resposta para sua pergunta é: sim, quero correr o risco e ver se consigo tocar o McSorley’s.’
“A substituição não demorou muito. Na manhã seguinte fui ao apartamento de Joe Hnida, conversei com ele de coração aberto e supliquei que me perdoasse por envolvê-lo em tudo aquilo; ele me perdoou e voltou para a empresa de limusines. No mesmo dia Harry pediu demissão no Bronx. E duas segundas-feiras depois começou a trabalhar no McSorley’s. Lembro muito bem desse dia. Eu estava preocupada, temendo que tivesse cometido mais um erro, e no meio da tarde liguei para o bar e pedi para falar com Harry. ‘Está tudo bem’, ele disse. ‘É impressionante como estou gostando disso. Quase que me sinto de novo em Bally-ragget, no Staunton’s.’ Ao voltar para casa, à noite, a primeira coisa que ele disse, quando abriu a porta, foi: ‘Acho que finalmente encontrei meu lugar no mundo.’”

Como o velho John e como o velho Bill, como seu sogro e sua esposa, Harry Kirwan é totalmente avesso a mudanças e, desde que assumiu o comando, fez apenas uma alteração – que foi de caráter fiscal e já deveria ter sido feita muito tempo antes. Aumentou o salário dos barmen, Eddie Mullins e Joe Martoccio; do cozinheiro, o ucraniano Mike Boiko; e de Tommy Kelly, que chorou ao receber a notícia. Tommy Kelly talvez seja o membro mais importante da equipe do McSorley’s, porém desempenha funções tão indefinidas que os velhos o chamam de Kelly, o Faz-Tudo.
Quando há muito movimento, Kelly atua como ajudante de barman, levando as canecas de cerveja – duas em cada mão – do balcão para as mesas. Às vezes substitui o barman. Às vezes vai ao açougue ou à mercearia fazer compras para Mike. Atende o telefone público. No inverno, mantém aceso o fogo na estufa. Quando chega, por volta das oito e meia da manhã, é só um homenzinho de olhos tristes que está de ressaca, porém ao meio-dia adquiriu certa dignidade, graças à cerveja morna, e às seis está tão bem-humorado que fica parado na porta, cumprimentando os fregueses como se fosse o dono. Alguns novatos o tomam pelo proprietário e o chamam de sr. McSorley. Kelly conta que teve muitos empregos esquisitos antes de parar no McSorley’s. “E quando digo esquisito, quero dizer esquisito mesmo”, ressalta.
Certa ocasião trabalhou por um breve período como vigia noturno de uma casa funerária do Brooklyn; deixou o emprego porque um defunto falou com ele. “Eu ficava sentado na frente do escritório a noite inteira e sempre trazia uma garrafinha de gim no bolso do casaco, que ficava pendurado no armário, e de quando em quando eu ia lá e tomava um golinho – não era um trago, era só um golinho, o bastante para me ajudar a passar a noite –, e para chegar lá eu precisava atravessar a sala onde estavam os caixões e os defuntos. E naquela noite tive que passar por um caixão aberto, onde havia um homem pronto para ser enterrado na manhã seguinte, e eu devo ter passado por ele umas dez vezes, pra lá e pra cá, e uma vez, quando eu ia passando, ele falou comigo, com toda a clareza. ‘Tire o chapéu’, ele disse, ‘apague esse charuto, derrame aquele gim e desligue o maldito rádio.’”
Para um frequentador assíduo do McSorley’s, grande parte dos bares de Nova York é de ambientes tensos e agitados. É possível relaxar no McSorley’s. Primeiro, porque se trata de um local escuro e melancólico, e a melancolia facilita o repouso. Segundo, porque o tique-taque quase inaudível dos relógios antigos é relaxante. E também porque o cheiro de mofo – na verdade, um conjunto de cheiros: serragem de pinho, cerveja, fumo de cachimbo, fumaça de carvão, cebola – atua como um bálsamo para nervos abalados. Certa ocasião, um interno do Bellevue comentou que o cheiro do McSorley’s seria muito mais benéfico para alguns estados mentais do que psicanálise, sedativos ou orações.

Ao meio-dia, o bar fica lotado. À tarde é tranquilo. Às seis enche-se de homens que trabalham nas vizinhanças. À noite costuma receber alguns curiosos – que são tolerados desde que se comportem bem e não façam muitas perguntas. A maioria desses curiosos soube da existência do McSorley’s graças a John Sloan, que o retratou com riqueza de detalhes em cinco telas pintadas entre 1912 e 1930: O Bar do McSorley, que focaliza Bill presidindo seu estabelecimento numa pose majestosa e que se encontra no Detroit Institute of Arts; O Reservado do McSorley’s, onde um velho trabalhador está sentado à janela, ao entardecer, com as mãos no regaço e a caneca de lata sobre a mesa; Em Casa no McSorley’s, que mostra um grupo de fregueses conversando ao redor da estufa; OsGatos do McSorley’s, em que Bill está prestes a servir comida para seu bando de gatos; eO McSorley’s Sábado à Noite, que data da Lei Seca e apresenta Bill entregando canecas para uma multidão alegre de fregueses.
Sempre que uma dessas obras aparece numa exposição, num jornal ou numa revista, um enxame de forasteiros invade o bar. O Bar doMcSorleyfigura no livro A Treasury of Art Masterpieces, de Thomas Craven, que foi publicado em 1939 e atraiu centenas de visitantes ao estabelecimento. Não há dúvida de que nenhum outro bar do país inspirou tantos quadros. Louis Bouché pintou umMcSorley’sque pertence à Universidade de Nebraska. Com um óleo intitulado Manhã no Bar doMcSorley, o comissário de bordo Ben Rosen ganhou o primeiro prêmio numa exposição de obras de marinheiros mercantes realizada em fevereiro de 1943. Reginald Marsh elaborou diversos esboços do McSorley’s.
Em 1939, houve uma retrospectiva da obra de Sloan no departamento de arte da Wanamaker’s e vários fregueses do bar foram vê-la em grupo. Um deles perguntou a um funcionário o preço deOsGatos do McSorley’s. Ao ser informado de que custava 3 mil dólares, achou que o sujeito estivesse brincando e continua indignado até hoje. Kelly gosta dos quadros de Sloan, mas prefere um nu dourado e corpulento que há muitos anos o velho John pendurou no reservado, bem ao lado do retrato de Peter Cooper. Ao curioso que visita o bar para ver uma pintura de Sloan, Kelly recomenda: “Se quer ver arte de verdade, dê uma espiada na dama nua do reservado.” A figura está deitada num divã, brincando com um papagaio; provavelmente feita por um aluno da Cooper Union, a pintura é uma cópia de La Femme au Perroquet, de Gustave Courbet. Kelly sempre traduz o título para os forasteiros. “É francês”, explica, com cara de entendido. “Quer dizer ‘A guria e o louro’.”
O balcão do McSorley’s é pequeno – comporta uns dez cotovelos – e se apoia em tubos de ferro. Fica à direita da entrada. À esquerda enfileiram-se as cadeiras de braço, com o espaldar voltado para os lambris. As cadeiras são capengas; quando sustentam um ocupante gordo, toda vez que ele respira, elas rangem como sapato novo. Os fregueses são adeptos das cadeiras; se há alguma vazia, ninguém fica de pé no balcão. Uma fila de mesas gastas, sempre com o tampo pegajoso de cerveja derramada, estende-se até o meio da sala.
No centro da sala fica a estufa, que tem porta de mica e é idêntica às das estações da ferrovia elevada. Kelly a mantém funcionando o inverno inteiro. “Quanto mais aquecido, mais bêbado”, diz ele. Alguns fregueses preferem a cerveja tão quente como café e, assim, seguram a caneca na borda da estufa até a bebida alcançar a temperatura que desejam. Uma gata preguiçosa, chamada Minnie, dorme num caixote de carvão, ao lado da estufa. As tábuas do assoalho empenaram, e aqui e ali há uma lata achatada de sopa tapando um buraco. O reservado dá para um pátio sem saída e comporta três mesas redondas e grandes.
A cozinha fica num canto da sala; Mikeescondeu o fogão atrás de um biombo e guarda panelas, frigideiras e sacos de mantimentos sobre a lareira. Quando vai descascar batatas, ele se instala numa mesa da frente, põe uma bacia no colo e fica conversando com os fregueses que chegam cedo. A comida do McSorley’s é simples, barata e boa. Goulash, salsicha com chucrute e hambúrguer acebolado são as especialidades de Mike. Ele rabisca o cardápio numa lousa que fica pendurada no bar e sempre erra na ortografia de quatro entre cinco pratos. Não há garçom. Na hora do almoço, se Mike está atarefado demais para atender os clientes, eles pegam os pratos e se servem diretamente no fogão.

Obar abre às oito da manhã. Mike dá uma varrida e joga serragem limpa no chão. Depois abastece com queijo e cebola as travessas do lanche grátis e enche uma tigela de ovos cozidos frios (5 centavos cada um). Kelly chega.
O caminhão da cervejaria faz a entrega. No meio da manhã, os velhos começam a aparecer. Kelly os chama de “os assíduos”. Em sua maioria, são operários aposentados e pequenos negociantes. Preferem o McSorley’s a suas próprias casas. Alguns moram nas redondezas, porém muitos vêm de longe. Um deles, que no passado administrava uma rede de cortiços na Bowery, vem de Sheepshead Bay praticamente todos os dias. Quando se aposentou, declarou: “Se minhas economias aguentarem, nunca mais estarei sóbrio.” Ele diz que bebe para esquecer a miséria que viu em seus hotéis; certamente viu muita, pois costuma tomar 25 canecas por dia, e a cerveja do McSorley’s está longe de ser fraca.
Kelly serve os velhos. Para poupá-lo de tanto ir e vir, os clientes geralmente pedem duas canecas por vez. A maioria é tranquila e séria; alguns são excêntricos. Há alguns anos, um deles teve que dar um salto para não ser atropelado por um carro na Terceira Avenida; está furioso até hoje. Vive resmungando consigo mesmo. Quando perguntaram o que ele resmungava tanto, respondeu: “Vou comprar uma espingarda e me postar na Terceira Avenida e atirar nos carros.” “Vai atirar nos pneus?”, perguntaram. “Claro que não! Nos motoristas. Acho que dá para matar uns quatro ou cinco, antes que me prendam. Eu mataria mais, se conseguisse recarregar mais rápido.”
Apenas alguns dos velhos se interessam pelo presente a ponto de ler jornais. Sentam-se na frente, para aproveitar a luz que entra pelas janelas imundas. Quando se cansam de ler, passam horas olhando para a rua. Na 7 há sempre algo que vale a pena ver. É uma daquelas ruas do East Side completamente dominadas por moleques. Quando jogam taco (com bola de borracha e cabo de vassoura), fazem grandes fogueiras de caixotes na sarjeta e às vezes assam batatas. No McSorley’s o lanche grátis fica no fim do balcão, perto da porta, e toda tarde os garotos entram sorrateiramente várias vezes, pegam punhados de queijo e cebola e fogem, batendo a porta. Os velhos sempre se divertem com isso.
A estufa aquece demais o ambiente, e alguns velhos conseguem tirar longas sonecas, sentados na cadeira. Quando alguém se põe a roncar, Kelly o desperta e avisa: “Você está fazendo tanto barulho que vai acordar os mortos.” Certa vez ele resolveu cronometrar o sono de um dorminhoco. Duas horas e quarenta minutos depois, começou a ficar assustado – “Vai ver que ele morreu”, disse – e o sacudiu até acordá-lo. “Dormi muito?”, o homem quis saber. “Desde a parada”, Kelly respondeu. O outro esfregou os olhos. “Que parada?”, perguntou. “A parada do Dia de São Patrício, que aconteceu duas semanas atrás”, Kelly disse com desdém. “Nossa!”, o homem exclamou; depois bocejou e dormiu de novo.
Kelly brinca com a assiduidade dos velhos. Certa manhã comentou com Eddie Mullins: “O velho Ryan deve ter morrido!” Quando o barman perguntou o motivo de sua suposição, Kelly explicou: “Faz uma semana que ele não aparece!” No verão, os velhos se instalam no reservado, que é frio como uma adega. No inverno, colocam as cadeiras o mais perto possível da estufa e ficam ali sentados, imóveis como cracas, até as seis horas, mais ou menos; então bocejam, espreguiçam-se e vão para casa, protegidos pela cerveja contra a pavorosa solidão dos velhos . “Vão com Deus”, Kelly diz, quando eles cruzam a porta.
 13 de junho de 2015
JOSEPH MITCHEL


[1]Este texto foi publicado na década de 40 pela revista The New Yorker. As datas do original foram mantidas.
[2]Os ingleses W. S. Gilbert (1836–1911) e Arthur Sullivan (1842–1900), coautores de óperas cômicas que fizeram sucesso na era vitoriana e influenciaram gerações subsequentes de humoristas e dramaturgos.
[3]Associação ligada a imigrantes irlandeses que controlou a máquina do Partido Democrata em Nova York de meados do século XIX até os anos 30.
[4]Falstaff é um personagem boêmio e malandro que aparece em algumas peças de Shakespeare e comenta com humor e ironia as intrigas palacianas; Pistol aparece como parte do séquito de Falstaff em As Alegres Comadres de Windsor, entre outras.

MORTE ANUNCIADA

Obituários fazem sucesso na Irlanda
No noroeste da Irlanda, onde o Atlântico encontra uma parede de falésias rochosas cobertas de gramíneas verdes, onde castelos, florestas e precipícios à beira-mar compõem um cenário de filme épico, situa-se o condado de Sligo, um dos principais destinos turísticos do país. Em torno de 65 mil pessoas vivem em paz – uma paz excessiva – nesse cartão-postal na borda do mapa, terra em que viveu o poeta William Butler Yeats.
Os moradores costumam combater o tédio da cidade de Sligo, capital do condado, com partidas de rúgbi, banhos hidroterápicos e passeios a cavalo. Mas o que realmente galvaniza a vida por lá são as emissões radiofônicas de obituário, quando os habitantes da cidade, do condado e de vilarejos vizinhos ficam de orelha em pé para se inteirar da mais recente lista dos mortos da redondeza.
Conhecidos como death notices, esses programas têm atravessado gerações como fenômeno de audiência: no interior da Irlanda, só perdem em popularidade para o futebol da Champions League. São transmitidos quatro vezes por dia pela Ocean FM, rádio local de Sligo, com picos de audiência de 25 mil ouvintes, de acordo com pesquisas da JNLR MRBI, o Ibope das rádios irlandesas. Um casemidiático que se repete em outras regiões do país, mas que é exclusivo da Irlanda, sem paralelo mesmo nas vizinhas Irlanda do Norte, Escócia ou Inglaterra.
A simplicidade da atração aumenta o enigma de seu sucesso. A death notice de maior audiência na Ocean FM, no meio da manhã, se encaixa entre The Breakfast Clube o North West Today. Tem duração de 1 a 6 minutos – a depender do número de desafortunados – e é antecedida por uma vinheta sonora semelhante a trilha de filme romântico antigo. Só então entra no ar a voz de Niall Delaney, um irlandês de 50 anos, calvo, cuja fisionomia lembra a do personagem Doug Stamper, assessor de Frank Underwood na série House of Cards.
Delaney tem experiência no metiê. Com milhares de mortes no curriculum vitae, passou metade da existência transmitindo obituários. Recita um a um os nomes dos finados, seus endereços, circunstâncias de óbito, local de sepultamento e missa, além de pedir doações ou sugerir para onde enviar flores. Capricha nas pausas e dá uma carregada na respiração pesada, efeitos que produzem a tensão necessária ao show. É um sucesso.
Que o diga um açougueiro de Sligo. Certo dia, desatento do noticiário, notou uma movimentação estranha diante da loja. Longe dali, sua mulher caminhava pelo Centro sem entender por que todos a cumprimentavam com um obsequioso aperto de mãos. Ainda que ela soubesse que essa é a forma cerimoniosa com que os irlandeses demonstram pesar, nem lhe passou pela cabeça que um defunto homônimo do marido tivesse sido anunciadopouco antes pelas ondas da Ocean FM.
“O açougueiro ligou para a rádio e não conseguia parar de rir”, contou Delaney. O locutor garante que, para evitar erros e trotes, as informações são sempre confirmadas com as funerárias. “Nós costumamos dar o nome e o endereço do morto, mas em geral ninguém presta atenção na localidade, daí a confusão. A mulher do açougueiro nunca recebeu tantos cumprimentos.”

Em Sligo, o apreço aos mortos não é dehoje: o município conta com mais de 5 mil sítios arqueológicos, entre eles o Cemitério Megalítico Carrowkeel, construído há cerca de 6 mil anos, e portanto mais antigo que as pirâmides do Egito. As falésias, praias e florestas dos arredores se prestam à preservação de mitos e lendas celtas – que deram origem ou inspiraram histórias como a dos Cavaleiros da Távola Redonda, Tristão e Isolda e até a da ilha Hy Brazil, um paraíso que se pensava existir na mesma latitude da Irlanda.
Essa atmosfera feérica, no entanto, não tem nada a ver com o interesse dos irlandeses pelos mortos, segundo Delaney. O tema é para eles cotidiano, natural. “As pessoas se interessam porque é notícia. E são novidades locais, que é o que as pessoas querem. Lembro o hábito de meu pai ao ler o jornal: ele ia direto para a editoria de esportes e logo passava para os obituários, para ver se precisava ir a algum funeral. Só depois lia as manchetes da primeira página.”
No início dos anos 90, antes até que o crescimento da internet alterasse o modo como as pessoas se informam, muita gente começou a augurar o provável fim das death notices. Davam como certo que, quando os ouvintes mais antigos entrassem na pauta, o programa também morreria. A convicção caiu por terra não só pela estabilidade da audiência, como por causa dos 250 mil visitantes mensais na página de obituários do site da Ocean FM. A seção é destaque nos endereços eletrônicos das emissoras do interior, sem contar pelo menos três portais dedicados exclusivamente ao tema.
O assunto é rotineiro na mesa das famílias tradicionais. No dia em que algum conhecido integra a lista fatídica, os mais antigos têm por hábito perguntar “Adivinha quem morreu?”, e o interlocutor se vê obrigado a citar metade da vizinhança, até descobrir. Às vezes a estratégia é outra: por quinze minutos a matriarca conta histórias divertidas de um amigo, para no fim anunciar que ele passou desta para melhor.
Apesar do desassombro com que os irlandeses tratam a morte, a matéria nunca se torna burocrática. Depois de 25 anos de carreira, Delaney ainda se deixa afetar pelo que divulga, embora procure manter a compostura. Não foram poucas as vezes, ele disse, em que chegou para trabalhar e descobriu um amigo na lista. Só lhe restou engolir em seco e dar conta do recado.
Nem sempre se pode contar com esse nível de profissionalismo. Corre que, em meados dos anos 80, numa rádio que funcionava num condado da região central do país – uma emissora pirata, mais tarde fechada pelo governo –, o interesse de um locutor pelas notícias acabou transparecendo. Depois de ler todo o obituário do dia, com o microfone ligado, o sujeito respirou com alívio: “Graças a Deus, ninguém que a gente conhece!” 
13 de junho de 2015
 Felipe Sáles
Piauí, Ed.105