quarta-feira, 4 de maio de 2016

A POEIRA DA GLÓRIA

A POEIRA DA GLÓRIA

Autor: Martim Vasques da Cunha
Assunto: Literatura Nacional – Teoria e Crítica Cultural
Editora: Record
Edição: 1ª
Ano: 2015
Páginas: 630
Nota: Neste post você encontrará dois vídeos sendo uma entrevista do autor com Nivaldo Cordeiro e no final do texto o vídeo de lançamento do livro com apresentação do renomado escritor Rodrigo Gurgel.

SinopseEm "A poeira da glória", Martim Vasques da Cunha desmonta as teses sustentadas pela repetição da crítica, rechaça o estilo que falseia a sensibilidade moral e recoloca as idéias no lugar ao apontar como e quando a ideologia política envenenou a imaginação artística. O ensaísta mostra em detalhes como o país foi brutalizado pela paranóia e mistificação a respeito de si mesmo, de tal maneira que se transformou em um grande "Carandiru intelectual", o paraíso distópico onde a realidade brasileira gira em falso.

Comentário: Este livro não passará imune à sua percepção. Na contramão da análise convencional da literatura brasileira, o escritor Martim Vasques da Cunha ousa escrever o que até mesmo o politicamente incorreto considerou imprudente: ele desmonta as teses sustentadas pela repetição da crítica, rechaça o estilo que falseia a sensibilidade moral e recoloca as idéias no lugar ao apostar como e quando a ideologia política envenenou a imaginação artística.
Para concluir o livro Martim atravessou o seu estilo interior e, como poucos de sua geração, sentiu na pele que, acima de tudo, escrever uma obra é também arriscar amizades e desafiar a maioria das pessoas que querem manter o seu status quo, seja do lado da direita ou da esquerda.
Dono de um texto que convence o leitor por nocaute de argumentos, o ensaísta mostra em detalhes como o país foi brutalizado pela paranóia e mistificação a respeito de si mesmo, de tal maneira que se transformou em um grande “Carandiru intelectual”, o paraíso distópico onde a realidade brasileira gira em falso. (Fábio S. Cardoso)



DO PREFÁCIO:
A poeira da glória, de Martim Vasques da Cunha, não é um livro sobre literatura que se encerra nos limites teóricos de seu objeto. É um livro que expande a própria visão e a análise substantiva desde os fundamentos íntimos e ideológicos dos escritores, aqueles elementos que alicerçam e ajudam a explicar as suas obras. 

Este é um ensaio de crítica cultural que, ao partir de uma espécie de investigação arqueológica e antropológica da literatura brasileira, tenta mostrar, no espírito dos livros, aquilo que estava oculto sob a poeira da glória dos seus autores. Está aqui, portanto, a sua originalidade, ao redescobrir os elementos de virtude humana que não estão mais evidentes e explícitos na literatura, porque se degeneraram ou se perderam. 

Ao contrário de livros que se confinam em seus próprios objetos de estudos, cuja delimitação do escopo acaba por reduzir o alcance da análise, neste Martim elaborou uma obra que se amplia junto com as reflexões externas que agrega e o raciocínio interno que o fundamenta. Este livro é menos um estudo literário stricto sensu e mais um ensaio sobre o ser humano em sua dimensão cultural lato sensu. Por isso, abrange adequadamente as dimensões sociológicas e políticas com a ambição de identificar, por meio da literatura, o mal do espírito e a degradação do indivíduo, o problema e a tensão do Bem e do Mal, que se manifestam na compreensão e no tratamento da realidade, na construção e na corrupção da imaginação moral, na cultura literária e, por contaminação perversa, na literatura produzida por escritores que também decidem se sujeitar a certas estruturas de poder. 

Para compreender o drama da literatura brasileira, Martim reconstruiu uma narrativa histórica singular, que cobre diferentes períodos e autores para mostrar a dimensão e a profundidade do nosso drama cultural e da gradual perda de sentido. E, com a finalidade de estabelecer balizas teóricas de orientação superior, recorreu a um grupo seleto de escritores e intelectuais nacionais e estrangeiros, assim também resgatando os mais elevados padrões que se diluíram ou se extinguiram em nosso ambiente cultural devastado. 
Como mesmo lembra o autor em seu livro Crise e utopia: o dilema de Thomas More, obra-chave para se entender adequadamente a profundidade simbólica e substantiva deste livro, “se há um drama, há de se ter um conflito e, sobretudo, um sentido”. 

Em A poeira da glória, Martim evidencia a crueldade e as nuances perversas dos conflitos que ajudam a dimensionar o drama e a relevância do sentido para a experiência viva da literatura e do trabalho do escritor, especialmente daqueles que foram os protagonistas da ascensão e da degradação da literatura brasileira que servia como padrão de uma estética filha de uma ordem moral e transcendente. Porque é a hierarquia de valores, tão cara e necessária a uma vida em comunidade, que permite a organização interna dos indivíduos que será, no caso dos escritores, convertida em arte de alta qualidade. 

E é assim que também a desordem interna e o caos moral ajudarão a forjar espíritos confinados ao drama da existência, os futuros mensageiros soturnos de uma literatura degradada. Em seu Crise e utopia, Martim já havia observado que a missão do homem na terra e a responsabilidade que se impõe diante da ordem da verdade da existência agravam o sentido do seu próprio drama. Pois nem todos estamos dispostos a enfrentá-lo; nem todos somos “capazes de realizar tal acontecimento”; nem todos temos “a sensibilidade para suportar determinadas experiências”. 

Em face da aflição que emerge a partir do reconhecimento da nossa responsabilidade de agir, e do inevitável julgamento de nossas ações, podemos desenvolver uma doença interna que certamente contaminará a literatura e a percepção do homem em relação e a si mesmo e na vida em comunidade. Por isso é incompleta qualquer análise literária sem um exame da imaginação moral que fundamenta a construção de uma ordem interna e a preservação de uma cultura virtuosa que seja o seu espelho. 

Se, como escreveu o poeta W. H. Auden, “as palavras de um morto modificam-se nas entranhas dos vivos”, é possível entender por qual razão os revolucionários, segundo Edmund Burke, tentam esgarçar “toda a roupagem decente da vida” cujas ideias dela decorrentes sejam fornecidas pelo “guarda-roupa da imaginação moral”. A partir da metáfora criada por Burke, Russell Kirk definiu a imaginação moral como sendo aquilo que permite “discernir acerca do que a pessoa humana pode ser, apreendendo, por alegorias, a correta ordem da alma e a justa ordem da sociedade, diferenciando o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o belo e o feio, além de oferecer uma correta visão da lei natural e da natureza humana”. 

Considerando que a imaginação moral “aspira à apreensão da ordem correta na alma e da ordem correta na comunidade política”, Kirk concorda com Burke que “as letras e a erudição ficam ocas, se esvaziadas da imaginação moral”.6 Se as obras literárias podem ser usadas como instrumentos da degradação provocada pela desordem da alma e da sociedade, também são valioso escudo do indivíduo contra as tiranias culturais e políticas que vilipendiam e escravizam o espírito e que pretendem converter as pessoas em servos voluntários. 

A literatura, e não só a poesia, como defendeu Ungaretti, permite a restauração da integridade, da autonomia e da dignidade. Nesse sentido, explica-se a preocupação de Martim com a liberdade interior, “a única liberdade que nos protege dos ataques de um país tomado pelo totalitarismo cultural”. É, de fato, a espécie mais difícil de liberdade porque, se é verdade que pode ser condicionada ou moldada segundo intervenções externas que criam um hábito serviçal, sua existência e preservação dependem quase exclusivamente da decisão individual de não ser servil, mesmo sob um ambiente político e cultural totalitário. 

Como diz Martim, essa liberdade “é algo a ser conquistado a custo de uma disciplina interior, harmonizada justamente com a consciência correta”, e que, por isso, não pode “ser confundida de forma alguma com a liberdade exterior, que (...) depende de uma correta manutenção das instituições políticas que devem proteger as liberdades individuais (...)”. Martim vê a ruína da literatura brasileira ao longo da história como a impecável consequência do aviltamento das virtudes e dos princípios e da quebra da hierarquia que orientava os homens, não só os escritores, como uma bússola capaz de preservar “aquele ‘fundo insubornável do ser’, que nenhum governo pode invadir sob qualquer permissão” — semelhante à casa de um inglês, o castelo cuja entrada sem convite era vedada inclusive aos reis. 

Sendo a liberdade interior “a base de tudo o que se construiu no que hoje chamaríamos de ‘magnífica estrutura do mundo moral’”, a sua degeneração faz ruir as bases mais sólidas. É extraordinário que este A poeira da glória estabeleça um diálogo íntimo com o meu Pare de acreditar no governo: por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado. 
Se o meu livro tem como estrutura substantiva a dimensão cultural ao tratar de política, o de Martim utiliza a dimensão política para aprofundar sua análise sobre a cultura. 

São, portanto, livros que se complementam extraordinariamente porque mostram, juntos, como a degradação política e literária foi o resultado de uma degradação cultural, e também como, segundo o alerta feito por Michael Oakeshott, o quietismo político-cultural preserva “a mesma armadilha de quem quer ver o mundo como um palco de teatro”, sendo também responsável pelo estado de coisas aquele que “decide observar a confusão do mundo como um espectador desinteressado”. 
A maneira arguta e elaborada com que Martim forjou sua perspectiva crítica sobre os autores e suas obras não é um imperativo para endossar as suas posições. 
Entretanto, contrapô-las exige não apenas uma amplitude intelectual, mas uma abertura plena para a grande conversação que ele estabelece neste livro com o leitor inteligente. É enriquecedor, por exemplo, a forma como desloca o debate para dimensões inexploradas, seja quando ataca a dissimulação de Machado de Assis ou recupera “a força arrasadora da personalidade” do padre Antônio Vieira, cuja “coragem era expressa com a aflição do homem que ainda tem algum contato com a realidade concreta”. 

Mais do que expor um conhecimento profuso e vivo sobre a história da literatura e a produção literária, Martim revela sua brilhante intuição sobre o homem e sobre a sua atuação substantiva na cultura. E, mesmo que o foco seja a literatura produzida no Brasil, felizmente não se furta, num texto primoroso, a convidar escritores e intelectuais estrangeiros para esse grande diálogo sobre a cultura brasileira. 

Ele analisa a sensibilidade e o caráter nacional investigando a voz daqueles considerados os narradores da alma brasileira e que, de certa forma, são os nossos intérpretes. Mais do que uma história inesperada da literatura, Martim apresenta o grande conflito entre o Bem e o Mal, evidenciando as dimensões da Verdade e do Belo sem as quais inexiste uma experiência individual virtuosa na prática concreta da vida em sociedade a ser narrada pelas obras literárias. Sem os padrões éticos e estéticos que lhe conferem uma natureza única, a literatura é esvaziada de sentido. 
Este A poeira da glória é um grande contributo à reparação da literatura a partir da necessária restauração do brasileiro e da nossa própria cultura.

Sobre o autor: Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, colaborador do jornal Rascunho e autor do livro Crise e utopia: o dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012)