terça-feira, 16 de junho de 2015

HISTÓRIA MAL CONTADA







Quanto mais se mexe no caso do Banco PanAmericano, mais sinistro ele fica


Durante quarenta anos, Luiz Sebastião Sandoval trabalhou para o Grupo Silvio Santos, 28 dos quais na presidência da holding que controlava as empresas do apresentador e dono do SBT. Entre os negócios que comandava, estava o Banco PanAmericano, responsável pelo melancólico fim de sua carreira de executivo. Com um modesto patrimônio de 1,6 bilhão de reais, o banco de Silvio Santos protagonizou, no ano passado, o maior escândalo financeiro da década.

Em setembro de 2010, o Banco Central descobriu uma fraude de 2,5 bilhões de reais engendrada por seus executivos – a conta subiu para 4,3 bilhões após novos cálculos feitos pelo Fundo Garantidor de Créditos dos bancos. Criado para socorrer instituições em dificuldades, o fundo colocou dinheiro no PanAmericano para evitar sua quebra. O caso foi parar na Polícia Federal, que indiciou Sandoval e todos os executivos do banco. O inquérito beira as 2 mil páginas e será encaminhado à Justiça, que decidirá se condena ou não os envolvidos.

Sandoval é um homem franzino de calva acentuada e 67 anos. Numa tarde nublada, sentou-se num sofá na sala de sua cobertura, em São Paulo, com vista para o vale do Anhangabaú. Munido de caneta e papel, desenhou o organograma do grupo para tentar demonstrar que sua responsabilidade na fraude, ao contrário da avaliação feita pelo Banco Central e pela Polícia Federal, é nenhuma.

“Eu ficava no controle da holding. Recebia os relatórios das auditorias feitas no PanAmericano que indicavam que o banco estava em perfeita saúde financeira. Como eu poderia imaginar que os executivos tinham montado uma fraude sem tamanho?”, defendeu-se. Deu um gole no café, outro na água e continuou. “É inadmissível que a Deloitte, que era paga para averiguar as contas da instituição, não tenha visto esse rombo gigantesco.”

Para complicar ainda mais a história, o governo está metido até a alma na confusão. Em janeiro de 2009, os executivos do PanAmericano, além de Luiz Sandoval e do próprio Silvio Santos, convenceram o governo de que seria um ótimo negócio para a Caixa Econômica Federal ficar dona de 49% do capital montante pela bagatela de 739,2 milhões de reais. 
Na negociação, ficou estabelecido que, mesmo despejando essa dinheirama na instituição, a Caixa não participaria da sua operação, o que é totalmente fora dos padrões. Teria direito apenas a participar do conselho de administração, cuja função é dizer sim ou não para as decisões dos executivos. Ainda assim, a operação contou com o aval entusiasmado do ministro da Fazenda, Guido Mantega, que considerou a compra uma ótima oportunidade para o governo ampliar sua participação no mercado financeiro. Foi o ministro, garantiu Sandoval, quem bateu o martelo para que a Caixa fechasse o negócio.



oncretizada a venda, Sandoval levou Silvio Santos no dia 13 de setembro de 2010 até o prédio da diretoria da Caixa, em São Paulo, para que ele conhecesse a presidente e o vice da instituição, seus futuros parceiros. Junto com eles deveria estar Rafael Palladino, presidente do PanAmericano. Como o executivo não apareceu, Sandoval lhe telefonou. Ouviu uma voz tensa do outro lado da linha. “Não posso ir. Estamos com um problema. Venha para cá assim que puder.” Silvio Santos amenizou a ausência de Palladino, fazendo-lhe elogios rasgados. “Eu não conseguia entender essa admiração do Silvio por ele. O Palladino sempre foi um patife”, disse Sandoval. Quer dizer: Silvio Santos botou um patife à frente do seu banco.

Sandoval rumou ao PanAmericano após a reunião e encontrou Palladino com os cabelos despenteados. “Ele tem mania de desarrumar os cabelos quando fica nervoso”, contou. Ao vê-lo, Palladino disse que estavam com um problema com o Banco Central. “Descobriram um erro contábil de 2,5 bilhões de reais”, revelou. Sandoval arregalou os olhos ao relembrar a história. “Erro? Isso não é erro. Isso quer dizer que temos um rombo maior que o patrimônio do banco.” Mandou então que viessem os outros executivos.

O primeiro a chegar foi o diretor-financeiro, Wilson de Aro. Sandoval pediu explicações e ouviu do executivo que a responsabilidade era dele, De Aro. Ele montara a fraude ao não registrar no balanço do banco as vendas das carteiras de crédito para outras instituições financeiras. Assim, o PanAmericano demonstrava ter muito mais créditos a receber do que na realidade teria. Com isso, registrava lucros fictícios, mas que resultavam em pagamento de bônus generosos para seus executivos, dos quais também se beneficiavam Sandoval e Silvio Santos.

Sandoval disse que reagiu afirmando não acreditar na versão de Wilson de Aro. “Nada no banco era feito sem o conhecimento do Rafael”, assegurou. Ainda que De Aro tenha assumido a culpa, é contra Palladino que Sandoval despejou sua ira. “Ele é tão cafajeste que colocou para trabalhar com ele a maluca da filha do Silvio Santos – aquela que foi sequestrada e saiu elogiando o sequestrador.” E retificou: “Trabalhar, não, porque ela só ia às reuniões. Ele a colocou lá para fazer média com o Silvio.”

Depois, o apresentador decidiu empregar em suas empresas as quatro filhas que teve no segundo casamento. “O Silvio me pediu para colocar as filhas no grupo e prepará-las para substituí-lo. Mas como? Ele mesmo admite que elas são muito despreparadas e inexperientes.” Segundo Sandoval, a falta de tino das herdeiras para os negócios, aliada ao escândalo do PanAmericano, levou Silvio Santos a tomar a decisão de se desfazer de várias de suas empresas – inclusive o Baú da Felicidade, a mais identificada com ele.



história do PanAmericano ficou ainda mais esquisita depois que a Polícia Federal, ao analisar os computadores dos executivos do banco, descobriu que eles tinham uma relação íntima com integrantes do PT. Trocaram e-mails com Luiz Gushiken, ex-ministro da Comunicação Social no governo Lula, nos quais discutiram estratégias para a instituição. Gushiken exigiu, por exemplo, que não se fechasse qualquer negócio para a compra de horários no SBTsem sua participação. Descobriram também que o banco foi grande doador de dinheiro para campanhas políticas do PT. Só para a campanha de Lula em 2006, foram 500 mil reais. E, durante a campanha eleitoral, o SBT de Silvio Santos fez uma cobertura pró-Dilma no seu noticiário.

A entrada do banco BTGPactual no negócio tornou o caso mais nebuloso. Após assumir a dívida de 2,5 bilhões de reais, Silvio Santos foi surpreendido com a nova conta apresentada pelo Fundo Garantidor, afirmando que o rombo real era quase duas vezes maior. O apresentador disse que não tinha condições de arcar com aquele rombo. O governo mandou-o entregar o banco em troca das dívidas – e içou o BTGPactual como sócio. O que surpreende foram as facilidades concedidas ao comprador. O BTGPactual, de André Esteves – também com histórico de doações para campanhas do PT –, ficou com 51% das ações do banco por módicos 450 milhões de reais, a serem pagos até 2028.

Os ex-executivos do PanAmericano tampouco se saíram mal. Com a distribuição dos lucros e dividendos fictícios, Wilson de Aro, Palladino e o diretor jurídico compraram imóveis luxuosos. O de Palladino é uma cobertura de 6 milhões de reais. Para não ficar tão ostensivo, vendeu a Ferrari vermelha na qual circulava até bem pouco tempo atrás. Quando soube do rombo, Silvio Santos fez uma única pergunta a Sandoval: “Eu fui roubado?” A resposta foi sim. Depois, na Polícia Federal, Silvio culpou seu ex-pupilo, Palladino, de tudo: “Ele era o cabeça do negócio.”

Sandoval também garante ter sido enganado pelos ex-executivos do banco. E diz que a Caixa não ficou atrás. Advogado por formação, ele só não entendeu por que, ao tomar conhecimento do rombo, a Caixa não desfez o negócio. “A instituição podia alegar que fora enganada. Qualquer juiz lhe daria ganho de causa.” O que ninguém acredita é que Silvio Santos não sabia de nada.
16 de junho de 2015
Consuelo Dieguez

CAPELA SISTINA SUBTERRÂNEA




Sentimos nas paredes da gruta, pintadas por nossos longínquos antepassados, o desejo profundo de que a ordem do mundo durasse para sempre

Lascaux não está em nenhum mapa. Não existe, pelo menos da maneira que existem Londres ou Radom. É preciso inquirir no Museu do Homem, em Paris, para descobrir onde fica.
Viajei para lá no início da primavera. O vale de Vézère surgia no frescor do verde ainda inacabado. Da janela do ônibus, fragmentos da paisagem lembravam telas de Bissière. Uma rede verdejante e sensível.

Montignac. Vilarejo onde não há o que se ver, salvo a placa em memória de uma dedicada parteira: Aqui viveu madame Marie Martel – a parteira – funcionária da Academia. Sua vida era fazer o bem. Sua alegria, cumprir seu dever. É difícil dizê-lo com mais delicadeza.

Café da manhã num pequeno restaurante, e que refeição! Uma omelete de trufas. Trufas pertencem à história das loucuras humanas e, portanto, à história da arte. Então falemos de trufas.
É uma espécie de cogumelo, parasita de raízes de outras espécies, das quais suga o sumo. Para descobri-lo usam-se cães ou porcos, que possuem um excelente faro. Uma espécie de mosca também indica onde se encontram os tesouros gastronômicos.

As trufas têm um preço alto no mercado, por isso habitantes de regiões vizinhas se empenharam em procurá-las incessantemente. Cavaram a terra, destruíram florestas que agora estão secas e tristes. Grande extensão de terra foi atingida pela desgraça da infertilidade porque o cogumelo produz uma substância venenosa que impossibilita a vegetação em seu entorno. E, além disso, inconstante, o cultivo é mais difícil do que o cogumelo comum. Dito isso, a omelete de trufas é deliciosa e o cheiro – já que o prato não tem gosto marcante – é incomparável.

Deixa-se Montignac por uma autoestrada que se eleva formando um arco, mergulha numa floresta e acaba de repente. Um estacionamento. Quiosque com Coca-Cola e cartões-postais coloridos. Os que não se contentam com reproduções são conduzidos para uma espécie de quintal e depois para um subsolo de cimento armado, parecido com um bunkermilitar. Portões pesados se fecham e por um momento fica-se na escuridão, aguardando o momento da revelação. Em seguida, outra porta se abre e estamos no interior da caverna.

A fria luz elétrica é horrível, mas podemos imaginar como era a caverna de Lascaux quando o brilho vivo das tochas punha em movimento a manada de touros, bisões e veados pintados nas paredes e no teto. No meio disso, a voz confusa do guia dando informações, voz de sargento lendo a Escritura Sagrada.

As cores: preto, bronze, ocre, vermelho carmesim, malva e branco calcário. São mais vivas e pulsantes que afrescos renascentistas. Cores da terra, do sangue e de cinzas.
Imagens de animais, a maioria de perfil, eram desenhadas em movimento com grande vigor e ao mesmo tempo com a sensibilidade das mulheres de Modigliani. 
O conjunto tem um aspecto desordenado, como se tivesse sido pintado às pressas por um gênio louco, com técnica cinematográfica, cheia de aproximações e planos distantes. 
Ao mesmo tempo, parece existir uma unidade de composição panorâmica que quebra todas as regras. Certas imagens têm diferentes tamanhos: umas de poucos centímetros, outras com mais de 5 metros. 
Não faltam também palimpsestos. Em resumo: uma desordem clássica, que apesar de tudo dá uma sensação de harmonia.

 primeira sala, chamada sala dos touros, tem uma bela abóboda natural, que dá impressão de ter sido feita por nuvens congeladas. A sala tem 10 metros de largura por 30 de comprimento e pode acolher 100 pessoas. O zoológico de Lascaux abre com a imagem de um animal de dois chifres. 
Essa fantástica criatura tem uma forma poderosa, de pescoço curto e pequeno. Lembra a cabeça de um rinoceronte, de onde saem imensos cornos retos, e não se compara a nenhum animal vivo ou fóssil. 
Sua misteriosa presença, logo na entrada, avisa que não vamos olhar um atlas de história natural, mas que estamos num lugar de culto, encanto e magia. Os pré-historiadores estão de acordo que a caverna de Lascaux não era um lugar de moradia, mas um santuário, uma Capela Sistina subterrânea de nossos longínquos antepassados.

O rio Vézère meneia entre os morros calcários cobertos de florestas. Em suas margens mais baixas, logo antes de se juntar ao rio Dordogne, foi descoberto o maior número de grutas habitadas por homens do Paleolítico, os Cro-Magnon. Seus esqueletos se assemelham aos dos homens de hoje. 
O Cro-Magnon provavelmente veio da Ásia. Sua invasão da Europa começou depois da última época glacial, cerca de 30 ou 40 mil anos antes de Cristo. Ele exterminou sem piedade o homem de Neanderthal, ocupou suas grutas e se apossou de suas provisões. A história do homem começou sob o signo de Caim.

O sul da França e o norte da Espanha eram o terreno no qual o novo conquistador, o Homo sapiens, criou uma civilização. Ela se desenvolveu no Paleolítico Inferior, chamado também de época das renas. A partir do Paleolítico Médio, a região de Lascaux era uma verdadeira Terra Prometida, não de leite e de mel, mas do sangue quente dos animais. 
Assim como as cidades surgiram nos cruzamentos das estradas de comércio, na idade da pedra as casas dos homens se agrupavam ao longo das rotas migratórias de animais. 
Toda primavera manadas de renas, cavalos selvagens, vacas, touros, bisões e rinocerontes atravessavam essas terras para os pastos verdes de Auvergne. A misteriosa regularidade e a abençoada falta de memória dos animais, que todos os anos seguiam a mesma trilha para o massacre certeiro, eram para o homem paleolítico um milagre semelhante à enchente do Nilo para os antigos egípcios.

Nas paredes da gruta de Lascaux podemos sentir um desejo profundo de que essa ordem no mundo durasse para sempre. Talvez por isso os pintores da caverna sejam os maiores animalistas de todos os tempos. Ao contrário dos mestres holandeses, o animal não era um fragmento de paisagem pastoral; eles o viam num relâmpago, num tumulto dramático, vivo, mas destinado a morrer. Seus olhares não contemplavam o animal, mas lançavam sobre ele a armadilha negra com uma precisão de assassino.

A primeira sala era provavelmente o lugar dos rituais de caça (vinham aqui com tochas para praticar seus ritos). Seu nome provém dos quatro touros imensos, o maior tendo 5,5 metros de comprimento. Esses formidáveis animais dominam uma manada de cavalos e veados frágeis, com chifres magníficos. A debandada rasga o solo. Nas narinas dilatadas se condensa a respiração ofegante.

 sala conduz a um estreito corredor sem saída. Aqui domina, como dizem os franceses, “uma feliz desordem de figuras”. Vacas vermelhas, cavalinhos de criança e cabritos correm em diferentes direções, numa indescritível confusão. Um cavalo caído sobre as costas com patas esticadas para o céu calcário é prova do procedimento de caça ainda hoje usado por tribos primitivas de caçadores: animais perseguidos com fogo e gritos em direção a uma rocha escarpada, caindo e morrendo.

Um dos mais belos quadros de animais de todos os tempos é o Cavalo Chinês. O nome não determina a raça; homenageia a perfeição do desenho do mestre de Lascaux. O contorno negro e macio, ao mesmo tempo distinto e suave, modela e preenche o corpo inteiro. A crina é curta como nos cavalos de circo. São impetuosos e seus cascos trovejam. O ocre não preenche o corpo todo, a barriga e as pernas são brancas.

Dou-me conta de que qualquer descrição ou inventário é impotente diante desta obra-prima, que possui uma unidade verdadeira, ofuscante e óbvia. Somente um poema ou um conto de fadas tem esse poder inato de criação. Poder-se-ia dizer: “Era uma vez um belo cavalo em Lascaux.”

Como associar essa arte tão rebuscada com a prática brutal de caçadores pré-históricos? Como aceitar as flechas perfurando o corpo dos animais, um assassinato imaginário cometido pelo artista?

Antes da revolução, os povos de caçadores da Sibéria viviam em condições semelhantes às do homem da época das renas. Lot-Falk, no livro Les Rites de Chasse Chez les Peuples Sibériens [Os ritos de caça dos povos da Sibéria], escreve: “O caçador tratava o animal como um ser no mínimo igual a ele. Vendo que também caçava para se alimentar, 
considerava que o animal tinha o mesmo modelo de organização social. 
A superioridade do homem se manifestava somente no campo da técnica, graças à introdução de ferramentas; no campo da magia, o animal tinha a mesma força. Também reconhecia que o animal é superior ao homem por sua força física, flexibilidade de movimento, audição e olfato apurado – todas essas qualidades altamente louvadas pelos caçadores. 
No domínio espiritual, aos animais eram creditadas virtudes ainda mais significantes. O animal teria uma ligação muito mais próxima com o divino e com a força da natureza, ambos nele encarnados.” Isto ainda é compreensível para o homem moderno. O abismo da paleopsicologia começa no elo entre o assassino e a vítima: 
“A morte do animal depende em parte dele mesmo: para poder ser morto tem de concordar, entrar em acordo com seu assassino. Por isso o caçador vigia cuidadosamente o animal, tem sentimentos por ele. Se a rena não ama o caçador, não aceitará morrer.” Assim, nosso pecado original e nossa força é a hipocrisia. A magia do bestiário de Lascaux ensina: somente um amor possessivo é capaz de matar.

 direita da grande sala, um estreito corredor nos leva à parte conhecida como nave ou abside. Na parede da esquerda uma enorme vaca preta chama nossa atenção – não somente pela perfeição do desenho, mas por causa de dois misteriosos, porém distintos, sinais que se encontram debaixo das patas. Esses não são os únicos sinais que não conseguimos decifrar.

O significado de flechas furando animais é claro para nós desde a Idade Média, quando bruxas “matavam a imagem”, e perdura até a racionalidade dos nossos tempos. Mas o que são esses quadriláteros com um xadrez de cores que encontramos debaixo dos pés da vaca preta? O abade Breuil, o papa dos pré-historiadores, vê signos de clãs de caçadores e longínquas origens de brasões. Há hipóteses de que seriam armadilhas, outros acreditam ser modelos de moradia. Para Raymond Vaufray, são cobertores de pele, semelhantes aos que se encontram na Rodésia.

Cada uma das sugestões é possível, e nenhuma é certa. Também não conseguimos interpretar outros signos bastante simples: pontos, traços, quadrados e rodas, e esboços de figuras geométricas que se encontram em outras grutas, como a de El Castillo, na Espanha. Alguns estudiosos fazem tímidas suposições de que seriam as primeiras tentativas da escrita. Somente imagens óbvias nos dizem algo. Entre os animais galopando em Lascaux, os sinais permanecem em silêncio, e talvez fiquem assim para sempre. O conhecimento sobre nossas origens é modulado entre urros violentos e um silêncio sepulcral.

No lado esquerdo, há um belo friso de veados. O artista retratou somente pescoços, cabeças e chifres, de modo que parecem nadar num rio na direção de caçadores escondidos na vegetação.

É uma composição de sentido inigualável, perto da qual expressões de terror dos mestres atuais parecem infantis: dois bisões negros, virados de nádegas um para o outro. O da esquerda tem uma parte de couro arrancada no lombo, mostrando a carne. As cabeças levantadas, a pele eriçada; as patas dianteiras cavando galope. A pintura explode num poder primitivo e cego. Até as touradas de Goya são tímidos ecos desse furor.

A abside nos leva bem mais fundo, a um poço, ao encontro do segredo dos segredos. É uma cena, ou melhor, um drama. É como deveria ser um drama da Antiguidade, se desenrola entre poucos heróis: o bisão penetrado por uma zagaia (espécie de lança), o homem caído na terra, um pássaro e, num esboço pouco claro, um rinoceronte se afastando. O bisão é visto de perfil, mas com a cabeça virada para o espectador. 

Da barriga saem entranhas. O homem é esquematizado como em desenhos infantis e tem uma cabeça de pássaro com bico reto; mãos de quatro dedos, pernas e braços esticados. O pássaro é como se fosse recortado em cartolina e enfiado num pau. Tudo desenhado em giz negro grosso e preenchido somente por um ocre dourado no fundo. Difere das pinturas da grande sala por sua severa e desajeitada composição e fartura. 
Chama a atenção dos pré-historiadores não pelos aspectos artísticos, mas pela expressividade iconográfica.
Toda a arte dessa civilização é um pouco estranha, não narrativa. Apesar de conhecermos traços de rostos e estatuetas, o homem é praticamente ausente da pintura paleolítica. Para compor uma cena de caça é necessária a figura do homem.

essa cena do poço, o abade Breuil vê uma comemoração da fatalidade da caça. O bisão matou o homem, mas a ferida mortal do animal parece ter sido feita pelo rinoceronte, que aderiu ao duelo. A zagaia atirada no dorso do bisão – supõe o estudioso – não poderia rasgar a barriga de tal modo; deve ter sido feito pelo rinoceronte ou por uma ferramenta de arremessar pedras, cujo traço meio apagado está debaixo dos pés do animal. Finalmente, aquele pássaro quase sem pés e sem bico, segundo Breuil, é um poste funerário, usado ainda nos dias de hoje pelos esquimós do Alasca.

Essa não é a única exegese que parece demasiado simples. Outros pesquisadores também se deixaram levar pela fantasia. Somente uma explicação parece interessante e digna de resumo. O autor é o antropólogo alemão Kirchner, que apresentou a ousada hipótese de que toda a cena não tem nada a ver com a caça: o homem estendido na terra não é uma vítima dos chifres, mas um feiticeiro no êxtase de um transe. 
A explicação de Breuil evitou a difícil presença do pássaro (a analogia com o poste de cemitério dos esquimós do Alasca parece pouco convincente), como também a cabeça do homem estendido na terra, que parecia um pássaro.

Esses detalhes tornaram-se o foco da teoria de Kirchner. Ele baseia-se na analogia entre tribos de caçadores da Sibéria e lembra a cerimônia do sacrifício da vaca, descrita na obra de Sieroszewski sobre os Yakuts. De fato, nessa cena de sacrifício três postes são erguidos com esculturas de pássaros que lembram o pássaro de Lascaux. 
A descrição revela que essas oferendas eram feitas pelos Yakuts na presença do feiticeiro, que entrava em êxtase. Seu dever era levar a alma do animal para o céu. Depois de uma dança em transe, caía como morto no chão e precisava então da ajuda da alma de um pássaro, que baixava no feiticeiro usando um enfeite de penas e máscara de pássaro.

A hipótese de Kirchner é surpreendente, mas ela não explica a importância do rinoceronte, que se afasta calmamente como se estivesse orgulhoso da matança. A cena no poço é muito importante e fora do comum. Representa o primeiro imaginário do homem na arte paleolítica. Mostra uma chocante diferença na apresentação do corpo do animal e do corpo do homem. 
O bisão é sugestivo e concreto. Sente-se não somente a massa do seu corpo, mas também a agonia patética. A figura do homem – alongada com alguns traços dos membros – é completamente simplificada, apenas reconhecível. Era como se o pintor paleolítico tivesse vergonha do seu corpo, com saudade da família animal que abandonou. Lascaux é a apoteose desses seres que a evolução deixou imutada.

O homem transformou a ordem da natureza com pensamento e trabalho. Tentou criar uma nova disciplina, impondo a si mesmo uma série de proibições. Tinha vergonha do seu rosto, da visível diferença. Muitas vezes vestia uma máscara de animal, como se pedindo perdão por sua traição. Quando queria aparecer belo e poderoso, fantasiava-se de animal. Voltava à origem, mergulhava com prazer no colo acolhedor da natureza.

Na era aurignaciana, as imagens do homem tinham uma aparência híbrida, com cabeças de pássaros, macacos e veados, como a figura humana da caverna de Trois-Frères, vestida de pele e chifres. Como tem grandes olhos fascinantes, pré-historiadores chamam-na de Deusda Cavernaou Mago. Nessa mesma gruta, um dos mais belos desenhos representa uma fabulosa cena de Carnaval animal. Grupos de cavalos, cabritos, bisões e um homem de cabeça de bisão, tocando um instrumento musical.

O ideal da imitação absoluta dos animais era imprescindível para o ritual de magia e deve ter sido a causa do início do uso de pigmentos. A palheta de cores é simples e se resume ao vermelho e seus derivados, preto e branco. Tem-se a impressão de que o homem pré-histórico não era sensível a outras cores, como os bantos de hoje em dia. De qualquer modo, os antigos livros da humanidade, como Vedas, Avesta, Antigo Testamento e os poemas de Homero, são fiéis a essa visão limitada de cores.

O ocre era muito procurado. Nas cavernas Les Roches e Les Eyzies encontraram armazéns pré-históricos, e perto de Nantronm descobriram vestígios de exploração em pedreiras maiores. Naquele tempo as tinturas eram minerais. A base do negro era manganês e a do vermelho vinha do óxido de ferro. 
Pedaços de minerais eram transformados em pó, esfregados em pedras ou ossos de animais como as omoplatas de bisão encontradas na gruta de Pair-non-Pair. Esse pó colorido era guardado nos ocos de ossos ou pequenos sacos, amarrados no cinto, como fizeram os artistas boxímanes aniquilados pelos bôeres no século passado.

Misturavam o pó colorido com gordura animal, tutano ou água. Contornos eram desenhados com ferramentas de pedra, e depois pintavam com o dedo, pincel de pelo de animais ou um punhado de galho seco. Usavam também canudinhos para soprar a tinta, talvez a técnica usada nas pinturas de Lascaux, onde grandes superfícies foram cobertas de forma desigual. Esse procedimento dava um efeito de maciez de contorno e superfície granulada, como numa composição orgânica.

ma surpreendente capacidade de usar todas as técnicas de pintura e desenho levou pré-historiadores a concluir que nesses longínquos tempos de dezenas de milhares de anos atrás existiam escolas artísticas. O desenvolvimento da arte paleolítica parece corroborar a evolução dos simples esboços nas grutas de El Castillo até as obras-primas de Altamira e Lascaux.

O problema do desenvolvimento da arte paleolítica não é simples de se analisar. É muito difícil datar as gravações na pedra e as pinturas dessa época. Pode-se ter uma noção mais precisa baseadano desenvolvimento das ferramentas. Nessa fresta da história do homem (fresta para nós, por causa da falta de material escrito e do pequeno número de objetos de arte em relação à enormidade do tempo), relógios não marcam horas nem séculos; marcam milênios.

O início do Paleolítico, da era das renas e do homem racional durou cerca de 15 a 25 milhões de anos, acabando no 15º milênio antes de Cristo. Divide-se em três épocas: Aurignaciano, Solutrense e Magdaleniano. As condições climáticas se estabilizaram, o que possibilitou o nascimento da civilização. Desaparecia o pesadelo das catástrofes glaciais – massas alvas de frio vindas do norte eram mais devastadoras que as lavas dos vulcões. No entanto, foi o aquecimento do clima que derrotou essa cultura. No fim dessa época as renas migraram para o norte e o homem ficou sozinho, abandonado pelos deuses e pelos animais.
Qual é o lugar de Lascaux na Pré-História? Sabemos que a caverna não foi decorada de uma só vez, e que contém pinturas sobrepostas ao longo de milênios. Baseando-se na análise de estilo, Breuil determinou que as principais pinturas são do período aurignaciano. Sua principal característica é a perspectiva. 
Não se trata da perspectiva atual, convergente, que exige conhecimento de geometria, mas de uma perspectiva que podemos chamar de “torcida”. Os animais eram normalmente pintados de perfil, mas certas partes, como a cabeça, as orelhas e as pernas, eram viradas para o espectador. Os chifres do bisão na cena do poço têm o formato de uma lira inclinada.

 história da descoberta: em setembro de 1940, a França é invadida e a batalha aérea da Grã-Bretanha chega ao clímax. À margem desses acontecimentos, na longínqua floresta perto de Montignac, desenrola-se uma cena de romance juvenil, que trouxe ao mundo uma das mais maravilhosas descobertas da Pré-História. Não se sabe exatamente quando a tempestade derrubou a árvore, abrindo um buraco que despertou a imaginação de Marcel Ravidat, de 18 anos, e seus companheiros de aventura. 
Os meninos pensaram que se tratava de um corredor subterrâneo levando para as ruínas de um castelo vizinho. Jornalistas inventaram que um cachorro caiu nesse buraco e descobriu Lascaux. É mais provável que Ravidat tinha a alma de explorador, apesar de não buscar fama, e sim a descoberta de um tesouro.

A abertura tinha cerca de 80 centímetros de largura e parecia ter a mesma profundidade. Mas a pedra lançada ao fundo demorou a encontrar o chão. Os meninos alargaram a entrada. Ravidat foi o primeiro a descer para a caverna. Trouxeram algo para iluminar – e pinturas de 20 mil anos lacradas embaixo da terra apareceram diante dos olhos dos rapazes. “Nossa felicidade foi indescritível. Dançamos uma dança selvagem de guerra.”
Felizmente, os jovens não começaram a explorar o tesouro sozinhos. Avisaram ao professor, o sr. Laval, que por sua vez avisou Breuil, que morava por perto e apareceu em Lascaux nove dias depois. O mundo científico só soube da descoberta cinco anos mais tarde, quando acabou a guerra.

Os meninos de Lascaux merecem, se não uma estátua, ao menos uma placa da dimensão da de Maria Martel, a parteira. Montignac, a cidade onde os meninos nasceram, tornou-se famosa. Com a fama vieramos benefícios. A cidadeteveuma melhoria nas linhas de ônibus e apareceram diversos estabelecimentos novos para os turistas: “O Bisão”, “O Touro” e “O Quaternário” floresceram e agora inúmeras famílias vivem da venda de suvenires. Quem sabe Ravidat tenha aberto um restaurante e, na velhice, tenha contado sua descoberta aos turistas em volta da lareira; ou quem sabe estudou arqueologia. É pouco provável que tenha repetido uma façanha parecida. Na verdade, nada se sabe sobre ele.

A menos de 1 quilômetro da caverna surgiram pequenos negócios privados aproveitando a Pré-História. Os donos de pastos da redondeza descobriram algo que parecia ser a entrada de outra caverna e acharam alguns fósseis desimportantes. Construíram um barracão onde colocaram essas “amostras” e para dar um aspecto científico a seu “museu” penduraram informações nas paredes, com as quais se podia aprender sobre as quatro eras glaciais: Günz, Mindel, Riss e Würm. Por 1 franco, um camponês sagaz e cheirando a queijo de ovelha está disposto a contribuir para o conhecimento da paleontologia.

Como vivemos em época de desconfiança, a autenticidade das pinturas das grutas ficou sob suspeita. A dúvida já tinha começado no ano de 1879, depois da descoberta de Altamira por Marcelino Sanz de Sautuola. Os padres jesuítas foram acusados de falsificar e adulterar as pinturas, tentando comprometer as afirmações dos pré-historiadores, que, por meio da ciência, ameaçavam ampliar o conhecimento do homem para além da interpretação bíblica, aceita pelo povo com certa ingenuidade. Os cientistas levaram vinte anos para confirmar a autenticidade de Altamira.

 ceticismo dos cientistas está coberto de razão. Basta lembrar a famosa história do crânio de Piltdown, estudada pelos melhores arqueólogos e antropólogos durante vinte anos até que fosse decretada a falsificação. A fraude foi considerada genial na sua concepção, preparada durante muito tempo por alguém que tinha acesso a coleções similares e conhecia métodos de pesquisa laboratorial. 
Os processos para transformar um pedaço de osso normal em “paleolítico” são muito mais simples do que executar pinturas sobre imensas superfícies da caverna – o que exige não só estudiosos, mas também pessoas de extraordinário talento artístico. Além disso, os custos dessas falsificações em relação ao lucro são desproporcionais.

A causa das maiores suspeitas é que algumas reproduções, publicadas imediatamente depois da descoberta, não coincidem com os detalhes que se podem verificar diante das obras. Existe a suspeita de que os pré-historiadores aumentaram alguns detalhes, segundo eles imprescindíveis. Em reproduções de revistas da cena do poço, o homem nu estendido na terra não tem falo. Esse fragmento simplesmente foi editado por redatores ciosos da moral de seus leitores. Se acrescentarmos que muitas estatuetas e gravações paleolíticas estão ligadas a ritos da fertilidade onde é característico o aumento dos órgãos sexuais, tudo fica esclarecido.

Visitando as grutas de Lascaux, eu mesmo fiquei cético vendo o frescor e a nitidez das cores e o estado impecável da relíquia de mais de 15 mil anos. A explicação desse fato surpreendente é muito simples. Durante milênios as grutas foram soterradas e por isso se encontravam em condições atmosféricas estáveis. 
A umidade na superfície criou uma camada de sais calcários cristalizados que serviram como espécie de verniz protetor.

No verão de 1952, o famoso poeta André Breton, visitando a gruta de Pech-Merle, decidiu resolver o problema da autenticidade das obras pré-históricas. Simplesmente esfregou a pintura com o dedo e, vendo que o dedo ficou tingido, concluiu que era uma falsificação de data recente. 
Foi multado (por raspar a obra de arte, não pela descoberta), mas a questão não terminou aí. A Société de Gens des Lettres exigiu uma investigação das grutas pintadas. O padre Breuil, no relatório entregue à mais alta comissão de obras de arte históricas, considerou a requisição inaceitável.
Esse método de esfregar com o dedo não entrou para o arsenal científico de métodos permitidos na pesquisa arqueológica.

oltei de Lascaux pelo mesmo caminho que havia chegado. Apesar de ter encarado o abismo da história, não emergi de outro mundo. Nunca antes senti uma convicção tão forte e reconfortante: sou cidadão da Terra, herdeiro não somente dos gregos e dos romanos, mas quase da infinidade dos tempos.

Esse é de fato o orgulho e a confissão humana, lançados à imensidão do céu, do espaço e do tempo. “Pobres corpos que somem sem vestígio, deixem que a humanidade seja nada para vocês; frágeis mãos escavam a terra repleta de indícios da semibesta aurignaciana e traços de reinos extintos – imagens, despertando indiferença ou compreensão, testemunham a vossa dignidade. Nenhuma grandeza pode ser separada daquilo que a sustenta. 
O resto são criaturas insignificantes e vermes sem juízo.”
O caminho abria para os santuários gregos e as catedrais góticas. Andei nessa direção sentindo o suave toque do pintor de Lascaux em minha palma. 


15 de junho de 2015
Zbigniew Herbert

TODAS AS COISAS SÃO DE TODOS



De Spartacus à Praça Tahrir, passando por Robespierre, Thoreau, Touro Sentado, Zapata, Adorno, Einstein, Drummond e o iraquiano que jogou o sapato em Bush, a força das palavras rebeldes numa seleta atualizada e abrasileirada
SPARTACUS_73 a.C.
A REVOLTA DOS ESCRAVOS
Spartacus, nascido na Trácia, havia sido soldado com os romanos, depois foi feito prisioneiro e vendido como gladiador. Convenceu cerca de 70 camaradas a lutarem pela própria liberdade e a não divertirem mais os espectadores. Eles fugiram e se refugiaram no monte Vesúvio. Lá, escravos fugitivos e homens livres dos campos uniram-se a Spartacus e passaram a saquear terras vizinhas. Como dividia a pilhagem em partes iguais, Spartacus logo passou a contar com muitos aliados. Contra ele, Roma recrutou forças às pressas e aleatoriamente, pois ainda não considerava aquilo uma guerra, mas um motim. Atacou Spartacus e foi derrotada.
Apiano, historiador romano de formação grega, autor de História Romana, fez o relato da revolta de Spartacus e dos escravos. Ela ocorreu entre 73 e 71 a.C. e é conhecida como a Terceira Guerra Servil. As tropas romanas acabaram derrotando os escravos no sul da Itália e supõe-se que Spartacus tenha morrido na batalha.

CIVAVAKKIYAR_900
AFORISMAS
O leite amamentado nunca voltará à teta. A manteiga nunca se dissolverá de novo em leite. O som do mar nunca voltará à concha quebrada, nem a vida ao corpo quebrado. A flor aberta e o fruto que tombou não reaparecerão na árvore. E os mortos nunca, nunca, nunca renascerão.
Civavakkiyar foi um iogue hindu que combateu a religião institucionalizada, os rituais e o sistema de castas.

LE LOI_1400
O ELEFANTE E O GAFANHOTO
Hoje é uma luta do gafanhoto contra o elefante. Mas amanhã o elefante terá suas entranhas arrancadas.
No início do século XV, o Vietnã foi governado pela China. Depois de dez anos de revolta, liderada por Le Loi, o Vietnã reconquistou a independência. A frase foi repetida por Ho Chi Minh, no século passado, na guerra contra os Estados Unidos.

PATTIRAKIRIYAR_1400
LAMENTAÇÃO
Ah, quando virá o dia em que viveremos sem distinção de castas?
Pattirakiriyar foi um rei que renunciou ao poder quando virou iogue e tornou-se mendigo na Índia.

THOMAS MÜNTZER_1524
SERMÃO AOS PRÍNCIPES
Vemos agora como enguias e serpentes copulam à vontade num emaranhado. Os padres e todo o clero pérfido são as serpentes, e os senhores e regentes são as enguias. Ah, adorados senhores, o Senhor há de espatifar os vasos de barro com sua vara de ferro. Portanto, regentes mais adorados e mais autênticos, aprendam o ensinamento diretamente da boca de Deus e não se deixem seduzir por padres bajuladores nem se deixem refrear por alguma falsa paciência e indulgência. Os leigos pobres e os camponeses enxergam isso com muito mais clareza do que os senhores.
Teólogo alemão, líder da Guerra dos Camponeses de 1524-25. Sob tortura, disse que omnia sunt communia – todas as coisas são de todos.

GUAMÁN POMA DE AYALA_1615
CARTA AO REI FILIPE III
Vossa Majestade, em sua grande bondade, sempre cobrou de seus vice-reis e de seus prelados, quando iam ao Peru, que zelassem pelos índios e que os tratassem bem. Mas assim que desembarcavam e punham os pés na terra, eles se esqueciam e se voltavam contra nós. Nossa antiga idolatria e heresia se deviam apenas à nossa ignorância. Nossos índios, que podiam ser bárbaros, mas eram criaturas boas, choravam por seus ídolos quando foram quebrados. Mas são os cristãos que adoram a propriedade, o ouro e a prata como ídolos.
Guamán Poma de Ayala, nobre quéchua, enviou uma carta de 1 189 páginas ao rei Filipe III, da Espanha, criticando o colonialismo e defendendo a autonomia dos índios. A carta nunca foi lida pelo rei.

GERRARD WINSTANLEY_1649
DECLARAÇÃO DO POVO POBRE
Estamos decididos a não sermos mais enganados, nem a viver com medo de vocês, pois a Terra foi feita para nós assim como para vocês. E se a Terra comum nos pertence, o mesmo vale para tudo que nela cresce.
Winstanley foi fundador dos Diggers, grupo igualitário da Inglaterra que veio a ser suprimido pelos proprietários de terra.

SPINOZA_1670
A LIBERDADE É O OBJETIVO
Oobjetivo do governo não é transformar os homens de seres racionais em feras ou fantoches, mas permitir que desenvolvam seu corpo e sua mente em segurança, e que empreguem sua razão sem embaraços; que não mostrem ódio, raiva nem desprezo, e que não sejam observados com os olhos da inveja e da injustiça. De fato, o verdadeiro objetivo do governo é a liberdade.
Exilado da comunidade judaica de Amsterdã por heresia, Spinoza tornou-se um personagem central da filosofia ocidental. Seu Tratado Teológico-Político faz uma defesa pioneira do governo secular e uma crítica à intolerância religiosa e à superstição.

ANDREW MARVELL_1677
O GOVERNO ARBITRÁRIO
O papismo é algo que, a não ser por falta de uma palavra para designá-lo, não pode ser chamado de religião. Tampouco deve ser tratado com a civilidade convenientemente usada quando se fala das diferenças de opinião sobre assuntos divinos. Há muitos anos se tenta transformar o governo legítimo da Inglaterra numa tirania absolutista, e converter a religião protestante num papismo.
Poeta e parlamentar inglês durante os anos de guerra contra a Holanda, Marvell escreveu contra a corrupção na corte, criticou a censura e defendeu os direitos individuais dos dissidentes puritanos.

TUPAC AMARU II_1781
MERECEMOS MORRER
Não existem cúmplices aqui, senão eu e você. Você é o opressor e eu, o libertador. Ambos merecemos morrer.
Tupac Amaru II foi um líder quéchua que comandou um levante indígena contra os espanhóis no Peru. Suas últimas palavras foram destinadas ao general espanhol José Antonio de Areche.

TUPAC KATARI_1781
ÚLTIMAS PALAVRAS
Vocês vão me matar agora, mas eu voltarei, e então serei milhões.
Líder indígena aimará, Tupac Katari liderou um exército de 40 mil pessoas contra os colonizadores espanhóis. Sitiou La Paz, na Bolívia, durante 184 dias, quando foi traído, capturado e esquartejado.

ROBESPIERRE_1792
NO JULGAMENTO DO REI
O direito de punir o tirano e o direito de destroná-lo são a mesma coisa. O julgamento do tirano é a insurreição; o veredicto, o colapso de seu poder; a sen-
tença, o que quer que os direitos do povo exijam.
Os povos não julgam da mesma forma que os tribunais de Justiça; não proferem sentenças, disparam raios; não condenam reis, jogam-nos de volta no vazio.
Revolucionário francês, Maximilien de Robespierre justificou assim a execução de Luís xvi. Disse também: “Se a revolução está errada, então o rei está certo; mas se a revolução está certa, então o rei está errado.” Líder do Terror, foi morto em 1794.

THOMAS PAINE_1793
A ERA DA RAZÃO
Todas as instituições nacionais de igrejas, sejam judaicas, cristãs ou turcas, parecem-me nada mais do que invenções humanas destinadas a aterrorizar e escravizar a humanidade, e monopolizar o poder e o lucro.
Nascido na Inglaterra, Paine emigrou para as colônias americanas em 1774 a fim de participar da Guerra de Independência.

SAINT-JUST_1794
IDEIA NOVA
A felicidade é uma ideia nova na Europa.
Frase de um discurso de Saint-Just no mesmo ano em que foi condenado à morte pela reação à Revolução Francesa. No julgamento de Luís XVI, ele disse: “Não se pode reinar inocentemente” e “Esse homem deve reinar ou morrer”.

TOUSSAINT L’OUVERTURE_1797
UNIR A ESPÉCIE
Que a chama da liberdade que conquistamos guie nossas ações. Plantemos a árvore da liberdade, rompendo as cadeias de nossos irmãos cativos sob o jugo da escravidão. Que possamos trazê-los para o abrigo dos direitos do homem livre. Que possamos superar as barreiras que separam as nações e unir a espécie humana.
Toussaint L’Ouverture foi um escravo que liderou a revolução haitiana, a única rebelião vitoriosa contra o colonialismo europeu no século XVIII. Derrotado pelas tropas de Napoleão, que defendia a escravidão, morreu numa masmorra francesa em 1803.

OS CARTISTAS_1838
CARTA AO POVO
Nós cumprimos os deveres de homens livres; devemos ter os privilégios de homens livres. Portanto, exigimos o sufrágio universal, que, para ser isento da corrupção e da violência dos poderosos, deve ser secreto.
Um dos grandes movimentos de massa do século XIX, o cartismo fez com que milhões de pessoas assinassem petições ao Parlamento inglês. A reivindicação de eleições anuais veio a se tornar lei.

MARX E ENGELS_1848
O MANIFESTO COMUNISTA
Os comunistas lutam para atingir objetivos imediatos, para a satisfação dos interesses momentâneos da classe trabalhadora; mas, no movimento do presente, também representam o futuro desse movimento e zelam por ele. Os comunistas não se recusam a esconder suas opiniões e seus propósitos. Declaram que seus fins só podem ser alcançados por meio da derrubada violenta de todas as condições sociais existentes. Que as classes dirigentes tremam diante da revolução comunista. Os proletários nada têm a perder, senão seus grilhões. Eles têm um mundo a ganhar.
Marx tinha 30 anos e Engels 28 quando escreveram o Manifesto do Partido Comunista, em Londres, pouco antes das revoluções de 1848.

HENRY DAVID THOREAU_1849
DESOBEDIÊNCIA CIVIL
Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para os justos é também a prisão. Hoje, o único lugar que Massachusetts reserva para seus espíritos mais livres são as prisões, para serem confinados longe do Estado, por um ato do próprio Estado. É ali que o escravo fugido, o prisioneiro mexicano em liberdade condicional e o indígena deveriam encontrar seus princípios; nesse chão discriminado, mas livre e honorável, onde o Estado coloca os que estão contra ele – a única casa onde um homem livre pode viver com honra.
Escritor e pensador, Thoreau recusou-se a pagar imposto e foi preso pelas autoridades americanas.

SOJOURNER TRUTH_1851
NÃO SOU UMA MULHER?
Tenho tantos músculos quanto qualquer homem, e posso trabalhar tanto quanto eles. Tenho arado e ceifado, e descascado e cortado e aparado, e pode um homem fazer mais? Consigo carregar tanto quantoqualquer homem, e comer o tanto quanto também, se conseguir o que comer. Vocês não precisam ter medo de nos dar nossos direitos, temendo que queiramos demais – pois não poderemos pegar mais do que nossa medida suporta. Não sei ler, mas sei ouvir. Ouvi a Bíblia e aprendi que Eva fez o homem pecar. Bem, se a mulher subverteu o mundo, deem-lhe a chance de colocá-lo na posição certa de novo.
Discurso improvisado na Convenção dos Direitos das Mulheres em Akron, Ohio. Sojourner Truth foi uma defensora da abolição da escravidão, dos direitos das mulheres, da reforma prisional e do fim da pena de morte.

TOURO SENTADO_1867
INTERROGATÓRIO EM FORT UNION
Matei, roubei e feri homens brancos demais para acreditar em uma paz justa. Eles são como remédios, e eu acabaria morrendo uma morte lenta. Preferiria morrer no campo de batalha.
Touro Sentado, chefe sioux, comandou as forças indígenas na Batalha de Little Big Horn – na qual morreu o general George Custer. Anos depois, foi morto por um agente indígena da polícia.

COMUNA DE PARIS_1871
DO COMITÊ CENTRAL
Trabalhadores, não se enganem – esta é uma guerra total entre parasitas e trabalhadores, entre exploradores e produtores. Se vocês estão cansados de vegetar na ignorância e na pobreza; se querem ver seus filhos crescerem para desfrutar os frutos de seu trabalho, em vez de serem animais criados para a fábrica ou o campo de batalha; se não querem que suas filhas sejam instrumentos do prazer da aristocracia endinheirada; se não querem que a pobreza e a devassidão levem os homens às fileiras da polícia e as mulheres à prostituição; finalmente, se querem que a justiça domine, trabalhadores, usem a inteligência, e despertem! Que suas mãos fortes esmaguem as forças repulsivas da repressão!
Em A Guerra Civil na França, Marx escreveu que, pela Comuna de Paris, “a forma foi enfim descoberta”para a emancipação do proletariado. Versalhes esmagou a Comuna em maio daquele ano.

GUERREIROS SIOUX_1875
CANÇÃO
Os Black Hills são minha terra e eu a
adoro.
E quem ousar interferir ouvirá o som
deste rifle.
O senador William Allison foi ao território sioux para negociar um acordo que permitisse a exploração de ouro na área. Foi recebido por 300 guerreiros, que entoaram a canção em resposta.

ANTONIO MACEO_1890
JURAMENTO
Quem quer que tente conquistar Cuba nada ganhará, a não ser a poeira do chão empapada de sangue – caso não pereça na luta primeiro!
Líder conhecido como Titã de Bronze, lutou pela independência de Cuba.

MARY ELIZABETH LEASE_1891
BOTAR PRA QUEBRAR
O que vocês precisam fazer é cultivar menos milho e botar mais pra quebrar.
Ativista americana da Farmers’ Alliance num discurso no Kansas.

ÉMILE ZOLA_1898
EU ACUSO!
Conheço pessoas que tremem de medo de uma possível guerra, sabendo em que mãos estamos! E que antro de intrigas maliciosas, boataria e calúnias aquela capela sagrada se tornou – mas é ali que o destino do nosso país é decidido! As pessoas se assustam com a luz chocante que acabou de ser lançada com o Caso Dreyfus, essa história de sacrifício humano! Um infeliz, um “judeu sujo” foi sacrificado. De que acúmulo de loucura, estupidez, delírio desenfreado, táticas policiais ignóbeis, métodos inquisitoriais e tirânicos, esse bando de oficiais escapou impune! Eles esmagaram a nação sob suas botas, sufocando o clamor por verdade e justiça sob o pretexto pecaminoso de que estão agindo para o bem da nação!
Zola arriscou sua carreira de escritor, e possivelmente a vida, com este artigo de primeira página no L’Aurore, no qual acusou as Forças Armadas, com o beneplácito do governo e da Igreja, de difamar o capitão Alfred Dreyfus. Zola foi condenado e teve de fugir da França. Uma campanha de opinião pública fez com que Dreyfus fosse reabilitado.

SINDICATOS_1905
CONSTITUIÇÃO DO IWW
A classe trabalhadora e a classe empregadora não têm nada em comum. Não pode haver paz enquanto a fome e a necessidade forem encontradas entre milhões de trabalhadores e os poucos que constituem a classe empregadora detiverem todas as coisas boas da vida.
A central sindical Industrial Workers of the World recrutou imigrantes, mulheres, não brancos e trabalhadores imigrantes para formar uma organização de combate independente.

EMILIANO ZAPATA_1911
PLANO DE ALAYA
Mexicanos: pensem no fato de que a astúcia e a má-fé de um só homem estão derramando sangue de forma escandalosa, porque ele é incapaz de governar; pensem que seu governo está sufocando nossa terra e ameaçando nossas instituições com a força bruta das baionetas; portanto, assim como erguemos nossas armas para trazê-lo ao poder, erguemo-las de novo contra ele por descumprir as promessas ao povo mexicano e por trair a revolução iniciada por ele; não somos personalistas, somos partidários de princípios, não de homens!
Zapata liderou a Revolução Mexicana que derrubou o ditador Porfírio Díaz. O Plano de Ayala adotou a palavra de ordem “Terra e Liberdade”, que se tornou o mote da revolução. Zapata foi morto numa emboscada, em 1919.

EMMA GOLDMAN_1911
SEM CONFLITO
O anarquismo é a única filosofia que devolve ao homem a consciência de si mesmo; que sustenta que Deus, o Estado e a sociedade não existem, que suas promessas são inválidas e vazias, pois só podem ser cumpridas por meio da subordinação do homem. O anarquismo é o instrutor da unidade da vida, não apenas na natureza, mas no homem. Não existe conflito entre os instintos individuais e sociais, não mais do que existe entre o coração e os pulmões. O indivíduo é o coração da sociedade, conservando a essência da vida social; a sociedade são os pulmões que distribuem o elemento que conserva a essência da vida – o indivíduo – puro e forte.
A escritora americana abordou temas como a homossexualidade, o ateísmo e os presídios. Detida por pregar o controle de natalidade e se opor ao serviço militar obrigatório nos Estados Unidos, foi deportada para a Rússia. Lá, se opôs aos sovietes quando Lênin lhe disse que “não pode haver liberdade de expressão em um período revolucionário”.

ITO NOE_1914
PROBLEMAS DAS MULHERES
Os “problemas das mulheres” não são apenas problemas das mulheres. São problemas para os seres humanos. São questões para homens e mulheres refletirem. Mas os homens usam a tradição como um escudo. As mulheres ignorantes que,por milhões de anos, permaneceram como escravas são incapazes de escapar da disposição servil que se infiltrou em suas células. Sem autoconsciência, se alinham aos homens arrogantes e depreciam quem luta a seu favor.
Escritora feminista e anarquista, vinda de uma família trabalhadora japonesa, Ito se rebelou contra seu casamento arranjado, escreveu críticas aos misóginos, às mulheres da classe alta e aos comunistas. Foi assassinada pela polícia militar.

ROSA LUXEMBURGO_1915
PANFLETO JUNIUS
Violada, desonrada, esvaindo em sangue, emanando sujeira – eis aí a sociedade burguesa. Assim ela é. Não é totalmente imaculada e moral, com pretensões à cultura, à filosofia, à ética, à ordem, à paz e ao primado da lei – mas uma besta voraz, uma praga na cultura e na humanidade. Assim se revela em sua verdadeira forma. Em meio a esse sabá das feiticeiras, uma catástrofe aconteceu: a social-democracia internacional capitulou. Enganarmo-nos sobre isso seria a coisa mais estúpida e fatal que o proletariado poderia fazer.
O imperialismo e sua brutalidade política, e a sequência de catástrofes sociais incessantes que desencadeou, são sem dúvida uma necessidade histórica para as classes dominantes do mundo capitalista. Nada seria mais fatal para o proletariado do que se iludir, acreditando que é possível, após essa guerra, resgatar a continuação idílica e pacífica do capitalismo. A conclusão que o proletariado deve tirar da necessidade histórica do imperialismo é de que se render a ele significará viver para sempre à sua sombra vitoriosa e comer de seus restos.
É nossa força, nossa esperança, que são ceifadas dia após dia, como a relva sob a foice. As melhores forças, mais inteligentes e instruídas do socialismo, os portadores das tradições sagradas e os heróis mais ousados do movimento dos trabalhadores, a vanguarda de todo o proletariado, os trabalhadores da Inglaterra, França, Bélgica, Alemanha, Rússia – são esses que estão agora sendo estropiados e conduzidos ao matadouro.
Trata-se de um ataque não contra a cultura burguesa do passado, mas contra a cultura socialista do futuro, um golpe letal contra aquela força que traz em seu bojo o futuro da humanidade, e é a única capaz de conduzir os tesouros preciosos do passado para uma sociedade melhor. Aqui o capitalismo expõe sua caveira assustadora; aqui ele revela o fato de que sua lógica histórica está esgotada; sua dominação contínua já não é conciliável com o progresso da humanidade.
Proletários do mundo, uni-vos!
Escrito na prisão, o panfleto denuncia o apoio do Partido Social Democrata Alemão à Primeira Guerra Mundial. Rosa Luxemburgo foi assassinada, junto com Karl Liebknecht, também ele fundador da Liga Spartacus, por paramilitares alemães, em 1919.

JOE HILL_1915
ÚLTIMO PEDIDO
Não chorem a minha morte – organizem-se.
O mais popular compositor do IWW, Joe Hill foi acusado de homicídio em Salt Lake City. Apesar dos protestos internacionais contra a farsa judicial que se seguiu, foi fuzilado. Suas últimas palavras estão num telegrama enviado a um companheiro, Wobbly Haywood.

LÊNIN_1917
TOMADA DO PODER
É preciso passar imediatamente à insurreição... Palavra de ordem: todo poder aos sovietes, a terra para os camponeses, a paz para os povos, o pão para os esfomeados.
A vitória é certa. E, numa proporção de nove sobre dez, sem derramamento de sangue.
Esperar é um crime contra a revolução.
Lênin, o líder dos bolcheviques, escreveu essa recomendação numa carta ao Comitê Central do partido, em setembro de 1917, dois meses antes da tomada do poder pelos comunistas.

TRISTAN TZARA_1918
MANIFESTO DADA
DADA; conhecimento de todos os meios rejeitados até agora pelo sexo pudico dos bons costumes:DADA; abolição da lógica, a dança dos impotentes da criação: DADA; de toda hierarquia e equação social instalada como valores por nossos subordinados: DADA; cada objeto, todos os objetos, os sentimentos e obscuridades, as aparições e o choque preciso de linhas paralelas são úteis para a batalha: DADA; abolição da memória: DADA; abolição da arqueologia: DADA; abolição dos profetas: DADA; abolição do futuro: DADA; crença absoluta e indiscutível em cada deus como um produto imediato da espontaneidade: DADA.
Nascido na Romênia e ativo na França, Tzara foi artista de vanguarda. Combateu pelos republicanos espanhóis, ingressou no Partido Comunista e participou da Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial.

SULTAN-GALIEV_1919
O ORIENTE
Não devemos perder de vista que a Revolução Socialista no Oriente não deve se limitar à abolição do poder do imperialismo europeu; ela deve se espalhar e colocar para o Oriente a questão da destruição de sua própria burguesia, que se pretende liberal, mas que em realidade é brutalmente despótica; ela é clerical e feudal. E é capaz, para satisfazer os seus interesses egoístas, de mudar a todo momento a sua posição em relação aos adversários estrangeiros.
Dirigente bolchevique tártaro, Sultan-Galiev tentou criar uma república muçulmana autônoma na União Soviética. Detido por ordem de Stálin, em 1923, foi condenado à morte em 1940.

MAO TSÉ-TUNG_1927
O MOVIMENTO CAMPONÊS
Uma revolução não é um jantar de gala, ou escrever um ensaio, ou pintar um quadro, ou fazer bordados. Ela não é feita com a mesma elegância, calma e delicadeza. Nem com a mesma suavidade, amizade, cortesia, moderação e generosidade. A revolução é uma insurreição. Um ato de violência no qual uma classe derruba a outra.
Num relatório sobre o movimento no campo em Hunan, Mao defende que o Partido Comunista organize o campesinato chinês para levar adiante a luta pela revolução proletária.

WALTER BENJAMIN_1940
FILOSOFIA DA HISTÓRIA
Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo “como de fato foi”. Significa apropriar-se da memória tal como ela se revela em um momento de perigo. O materialismo histórico deseja reter essa imagem do passado que, inesperadamente, aparece ao homem escolhido pela história num momento de perigo. O perigo afeta tanto o conteúdo da tradição como seus receptores. A mesma ameaça paira sobre ambos: tornar-se um instrumento das classes dominantes. Em cada época, deve-se tentar libertar a tradição de um conformismo que está prestes a subjugá-la. O Messias não vem apenas como salvador, vem como o vencedor do Anticristo. Só terá o dom de atiçar as centelhas da esperança no passado o historiador que estiver convencido de que mesmo os mortos não estarão seguros se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de ser vitorioso.
Interlocutor e crítico de Bertolt Brecht, Theodor Adorno e Georg Lukács, Benjamin suicidou-se, em 1940, ao ser detido na fronteira com a Espanha, quando tentava escapar da França ocupada.

LEON TROTSKY_1940
TESTAMENTO
Além da felicidade de ser um combatente da causa do socialismo, quis a sorte me reservar a felicidade de ser o esposo de Natasha Sedova. Durante quarenta anos de vida em comum, ela permaneceu uma fonte inesgotável de amor, magnanimidade e ternura. Sofreu grandes dores, principalmente no último período de nossas vidas. Encontro algum conforto no fato de que ela conheceu também dias de felicidade.
Nos 43 anos de minha vida consciente, permaneci um revolucionário; durante 42 destes, combati sob a bandeira do marxismo. Se tivesse que recomeçar, procuraria evidentemente evitar este ou aquele erro, mas o curso principal de minha vida permaneceria imutável. Morro revolucionárioproletário, marxista, partidário do materialismo dialético e, em consequência, ateu irredutível. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é menos ardente; em verdade, ela é hoje mais firme do que o foi nos dias de minha juventude.
Natasha acabou de chegar pelo pátio até a janela e abriu-a completamente para que o ar possa entrar mais livremente em meu quarto. Posso ver a larga faixa de verde sob o muro, sobre ele o claro céu azul, e por todos os lados a luz do sol. A vida é bela, que as gerações futuras a limpem de todo mal, de toda opressão, de toda violência e possam aproveitá-la plenamente.
Dirigente bolchevique, Trotsky foi banido por Stálin, refugiou-se na Turquia, na Noruega, na França e depois no México. Ali, escreveu seu testamento, no mesmo ano em que foi assassinado por um agente stalinista.

ADORNO & HORKHEIMER_1944
EVOLUÇÃO?
Durante séculos a sociedade se preparou para Victor Mature e Mickey Rooney.
Exilados em Los Angeles, onde se refugiaram do nazismo, Theodor W. Adorno e Max Horkheimer analisaram a indústria cultural no livro Dialética do Esclarecimento.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE_1945
PASSAGEM DO ANO
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Maior poeta em língua portuguesa do seu tempo (e de vários tempos), Drummond cantou a esperança num mundo radicalmente modificado, que fosse fruto da vitória sobre o fascismo na guerra de 1939-45. Cantou também a desilusão que se seguiu.

ALBERT EINSTEIN_1949
POR QUE SOCIALISMO?
Estou convencido de que só existe um meio de eliminar esses graves malefícios: o estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educacional que seja orientado para fins sociais. Em tal economia, os meios de produção estão nas mãos da própria sociedade e são utilizados de forma planejada. Um sistema que ajusta a produção às necessidades da comunidade distribuiria o trabalho entre todos aqueles aptos a trabalhar, e garantiria um meio de subsistência a todo homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, além da promoção de suas próprias habilidades inatas, procuraria desenvolver nele uma sensação de responsabilidade por seu próximo, em vez da glorificação do poder e do êxito de nossa sociedade atual.
Com a tomada do poder pelos nazistas, o físico Albert Einstein renunciou à cidadania alemã e abandonou o país para nunca mais voltar.

SIMONE DE BEAUVOIR_1949
O SEGUNDO SEXO
Um homem tem razão por ser um homem; é a mulher que está errada. Ela é simplesmente o que o homem decreta; assim ela é chamada “o sexo”, no sentido de que aparece essencialmente ao macho como um ser sexual. Para ele, ela é sexo – sexo absoluto, nada menos. Ela é definida e diferenciada em referência ao homem, e não ele em referência a ela; ela é o incidental, o inessencial em oposição ao essencial. Ele é o Sujeito, ele é o Absoluto – ela é o Outro.
Fundadora de Les Temps Modernes, revista quecriou com Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir associou o existencialismo ao feminismo.

LOLITA LEBRÓN_1954
PALAVRAS AO SER PRESA
Não vim aqui para matar. Vim aqui para morrer.
Dolores Lebrón foi uma nacionalista porto-riquenha que ficou na prisão por 25 anos por ter atacado a Câmara americana, em 1954. Libertada, retornou a Porto Rico e à luta pela independência.

CONTRA O PODER NUCLEAR_1955
O MANIFESTO RUSSEL-EINSTEIN
Descortina-se à nossa frente, se quisermos, o progresso contínuo com felicidade, conhecimento e sabedoria. Deveremos, em vez disso, escolher a morte, porque não conseguimos esquecer nossas contendas? Apelamos como seres humanos aos seres humanos: lembrem-se de sua humanidade e esqueçam o resto. Se conseguirem isso, o caminho está aberto para um novo paraíso. Do contrário, aguarda-os à frente o risco da morte universal.
Sete anos antes da crise dos mísseis de Cuba, cientistas e pensadores de todo o mundo, liderados pelo filósofo Bertrand Russell e Einstein, divulgaram uma declaração condenando a estocagem e o uso de armas nucleares.

DOM HÉLDER CÂMARA_1960
ME CHAMAM DE SANTO
Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista.
Arcebispo de Olinda e Recife, d. Hélder criou a “igreja dos pobres”, grupo de bispos preocupados com questões sociais, e atacou duramente os militares durante a ditadura.

BETTY FRIEDAN_1963
A MÍSTICA FEMININA
Não podemos mais ignorar essa voz dentro das mulheres que diz: “Quero algo mais do que meu marido, meus filhos e meu lar.”
Fundadora da Organização Nacional das Mulheres, Betty Friedan defendeu o direito ao aborto e disseminou o feminismo nos Estados Unidos com o livro A Mística Feminina.

MARTIN LUTHER KING JR._1963
EU TENHO UM SONHO
Eu tenho um sonho de que um dia esta nação vai se levantar e viver o verdadeiro significado de sua crença: “Consideramos que estas verdades são evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais.”
Eu tenho um sonho de que um dia, nos montes escarlates da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos senhores de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho de que um dia até o estado do Mississippi, um estado sufocado pelo suor da injustiça, sufocado pelo calor da opressão, será transformado num oásis de liberdade e de justiça.
Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos um dia viverão numa nação em que não sejam julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.
Eu tenho um sonho hoje!
Ativista político e pastor protestante, Luther King tornou-se um símbolo na luta pelos direitos civis dos negros dos Estados Unidos. O discurso foi proferido em Washington, para uma plateia de 200 mil pessoas. Luther King foi assassinado em 1968.

NELSON MANDELA_1964
EM DEFESA DA VIOLÊNCIA
Não nego que planejei sabotagem. Não a planejei num espírito de irresponsabilidade, nem por ter amor à violência. Eu a planejei como resultado de uma avaliação calma e fria da situação política que surgira após muitos anos de tirania, exploração e opressão de meu povo pelos brancos. Os fatos concretos eram que cinquenta anos de não violência nada trouxeram ao povo africano além de uma legislação cada vez mais opressora, e dando cada vez menos direitos.
Queremos direitos políticos iguais, porque sem eles nossas deficiências serão permanentes. Não é verdade que a emancipação de todos resultará no domínio racial. A divisão política baseada na cor é totalmente artificial e, quando desaparecer, desaparecerá também o domínio de um grupo racial pelo outro.
 Acalentei o ideal de uma sociedade democrática e livre na qual todas as pessoas possam conviver em harmonia e com oportunidades iguais. Trata-se de um ideal pelo qual espero viver e que espero ver realizado. Se preciso for, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer.
Mandela foi líder da Lança da Nação, o braço armado da luta contra o apartheidna África do Sul. Preso e condenado por terrorismo, passou quase trinta anos na prisão por recusar uma conciliação com o governo que implicasse no fim da organização armada da resistência. Solto, foi eleito presidente do país.

MALCOLM X_1964
VOTO OU BALA
As mãos de Tio Sam estão gotejando sangue, gotejando sangue dos negros deste país. Ele é o hipócrita número 1 da terra. Ele tem audácia – sim, ele tem –, imagine-oposando de líder do mundo livre. Saiba o mundo o quão ensanguentadas estão as suas mãos. Saiba o mundo da hipocrisia praticada aqui. Que seja o voto ou a bala.
Proferido menos de um mês após o rompimento de Malcolm X, o discurso do ativista muçulmano marcou sua disposição de se aliar com o movimento dos direitos civis. Foi assassinado no ano seguinte.

JEAN-PAUL SARTRE_1964
POR QUE RECUSO O NOBEL
Um escritor não se deve deixar transformar em uma instituição.
Ganhador do Nobel de Literatura, foi o primeiro a recusar o prêmio. Em 1945, já havia dispensado a maior honraria francesa, a Légion d’Honneur.

CHE GUEVARA_1965
VIDA E REVOLUÇÃO
Correndo o risco de parecer ridículo, me permita dizer que o verdadeiro revolucionário é guiado por um grande sentimento de amor. É impossível pensar num autêntico revolucionário que careça dessa qualidade.
Os líderes da revolução têm filhos que estão começando a falar, que não estão aprendendo a chamar seus pais pelo nome; esposas das quais foram separados como parte do sacrifício de suas vidas para a realização da revolução; o seu círculo de amigos se limita estritamente ao número de colegas revolucionários. Não há vida fora da revolução.
Guevara escreveu isso numa carta a Carlos Quijano, editor de Marcha, semanário publicado em Montevidéu. Estava numa viagem durante a qual discursou nas Nações Unidas e visitou países africanos. Também disse mais tarde que “um povo sem ódio não consegue derrotar um inimigo brutal”.

PAULO FREIRE_1968
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
A verdadeira generosidade está em lutar para que desapareçam as razões que alimentam o falso amor. A falsa caridade, da qual decorre a mão estendida do “demitido da vida”, medroso e inseguro, esmagado e vencido. Mão estendida e trêmula dos esfarrapados do mundo, dos “condenados da terra”. A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, essas mãos sejam de homens ou de povos, se estendam menos em gestos de súplica. Súplica de humildes a poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo.
Preso durante o golpe militar de 1964, o pedagogo brasileiro viveu quinze anos no exílio, onde escreveu Pedagogia do Oprimidoe outros livros que influenciaram professores de várias partes do mundo.

GRAFITE_1968
RAZÃO
Sejamos razoáveis: peçamos o impossível.
Pichação parisiense durante a greve geral de maio daquele ano.

MUHAMMAD ALI_1970
NENHUM VIETCONGUE ME XINGOU
Não tenho nada contra os vietcongues. Nenhum vietcongue jamais me chamou de crioulo.
Ali se opôs à Guerra no Vietnã, foi condenado por recusar o recrutamento e por isso privado do título de campeão mundial de pesos pesados. Mais de 200 mil pessoas recusaram-se ao alistamento e o presidente Jimmy Carter se viu forçado, em 1977, a conceder-lhes anistia.

PAULO EMÍLIO SALLES GOMES_1973
NÃO SER E SER OUTRO
Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nosso é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro.
Ao avaliar o cinema nacional, em 1973, Paulo Emílio fez uma súmula da problemática da identidade brasileira.

SALVADOR ALLENDE_1973
AVENIDAS SE ABRIRÃO
Trabalhadores de minha pátria, tenho fé no Chile e no seu destino. Outros homens superarão esse momento cinza e amargo em que a traição pretende impor-se. Saibam que, muito mais cedo do que tarde, grandes avenidas se abrirão novamente, por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor.
Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!
Em 11 de setembro de 1973, Allende fez um último discurso, ao ser derrubado da Presidência.

ANÔNIMO CHECO_ANOS 80
TRANSIÇÃO
O que é o socialismo?
É a dolorosa transição do capitalismo para o capitalismo.
Piada corrente nas universidades checas, nos estertores do domínio stalinista.

ANÔNIMOS DE PEQUIM_1989
SETE PEDIDOS
Reconhecer que a posição de Hu Yaobang em relação à democracia e à liberdade estava certa.
Admitir que as campanhas contra a poluição espiritual e a liberalização burguesa estavam erradas.
Publicar a remuneração das autoridades e de seus familiares.
Permitir a circulação de jornais independentes e a liberdade de pensamento.
Aumentar as verbas da educação e o salário de intelectuais.
Abolir a restrição a manifestações em Pequim.
Promover eleições democráticas para trocar as autoridades que tomaram decisões políticas ruins.
Durante as manifestações na Praça da Paz Celestial, a multidão chegou a um acordo em torno de sete reivindicações, que foram endereçadas à direção do Partido Comunista. A primeira delas se referia a Hu Yaobang, líder do partido em desgraça que morrera pouco antes. A manifestação terminou num banho de sangue, promovido pelos líderes do PCC, Deng Xiaoping à frente.

SUBCOMANDANTE MARCOS_1994
EM NOSSOS SONHOS
Em nossos sonhos vimos outro mundo, um mundo honesto, um mundo decididamente mais justo do que aquele onde vivemos agora. Vimos que nesse mundo não havia necessidade de exército. Paz, justiça e liberdade eram tão comuns que ninguém falava delas como conceitos distantes, mas como pão, aves, ar, água, como livro e voz. Assim as coisas boas eram chamadas nesse mundo. E nesse mundo havia bom-senso e boa vontade no governo, e os líderes eram pessoas de pensamento claro. Eles governavam obedecendo. Esse mundo não era um sonho do passado, não era algo que vinha para nós de nossos ancestrais. Vinha da frente, do próximo passo que iríamos dar. Assim começamos a avançar para realizar esse sonho, fazer com que descesse e se sentasse às nossas mesas, iluminasse nossos lares, crescesse nos nossos milharais, enchesse os corações de nossos filhos, enxugasse o nosso suor, curasse a nossa história. E era para todos. É isso que queremos. Nada mais, nada menos.
Porta-voz e “antilíder” do Exército Zapatista de Libertação Nacional, o subcomandante Marcos tornou-se um ícone da luta anticapitalista global. Ele se recusa a revelar sua identidade, embora o governo mexicano afirme que é Rafael Sebastián Guillén Vicente, ex-professor na Cidade do México.

ANGELA DAVIS_1998
BIG BUSINESS
As prisões não fazem problemas desaparecer, elas desparecem com seres humanos. E a prática de fazer desaparecer enormes contingentes de pessoas das comunidades pobres, imigrantes e racialmente marginalizadas tornou-se, literalmente, um grande negócio.
Ex-militante do partido Black Panther, Davis foi duas vezes candidata a vice-presidente dos Estados Unidos pelo Partido Comunista. Fundou o grupo Resistência Crítica, que propugna o fim do sistema carcerário.

MIGUEL ALVES DOS SANTOS_2000
VENCER
Saber respeitar, ser jovem até os 100 anos de idade – a cor não interessa, pode ser preto, pode ser branco. Somos todos iguais. Isso é importante. O Movimento dos Sem Terra tem esse brilho, tem esse caráter de liberdade. Então, é por isso que eu vim para o Movimento. Para uma coisa que vinha depois e que me destinou a voltar àquele nosso processo de antigamente, a lutar junto, a me aliar, que é o que sempre quis: “Vencer, vencer.” Lutar para vencer. Para ver os nossos filhos, nossos netos, nossos companheiros dando risada. Formar um lar, ter uma casa produtiva, com saúde e com educação. É importante você chegar numa praça e ver os velhinhos se divertindo, alegres e satisfeitos.
Trabalhador preso e torturado por suspeita de comunismo, Santos viveu dois anos nas ruas de São Paulo e depois se tornou líder do Movimento dos Sem Terra, o MST.

NAOMI KLEIN_2001
AGENDA LOCAL
O movimento antiglobalização precisa se transformar em milhares de movimentos locais, combatendo os efeitos da política neoliberal na vida das pessoas: falta de casas, estagnação dos salários, disparada dos aluguéis, violência policial, aumento explosivo da população carcerária, criminalização dos trabalhadores migrantes, e assim por diante. Essas também são lutas que envolvem questões prosaicas: o direito de decidir para onde vai o lixo, de dispor de boas escolas públicas, de receber água limpa. Ao mesmo tempo, os movimentos locais que combatem a privatização precisam vincular suas campanhas a um grande movimento global, que pode mostrar como suas questões particulares se encaixam na agenda econômica internacional. O objetivo não deveria ser regras boas e governantes distantes, mas uma democracia próxima da vida das pessoas.
Klein, jornalista e ativista canadense, é autora do livro Sem Logo, publicado um ano após as manifestações de Seattle, em 1999, contra a Organização Mundial do Comércio.

NOAM CHOMSKY_2003
CONTROLE DA MÍDIA
É necessário algo para amansar o rebanho perplexo, e esse algo é a nova revolução na arte da democracia: o consentimento forjado. A mídia, as escolas e a cultura popular precisam ser divididas. A classe política e os tomadores de decisões têm que fornecer alguma sensação tolerável de realidade, embora também tenham de inculcar as crenças de que necessitam.
No Estado totalitário, ou Estado militar, isto é fácil. Brande-se um porrete e, se alguém sair da linha, recebe uma bordoada na cabeça. Mas à medida que a sociedade se tornou mais livre e democrática, perdeu-se essa capacidade. Portanto, agora é necessário recorrer às técnicas de propaganda. A lógica é clara. A propaganda está para a democracia como o porrete está para o Estado totalitário.
Teórico da linguística, o intelectual americano criticou a política externa americana e fez oposição à Guerra do Vietnã. Seus alvos têm variado dos meios de comunicação em massa ao governo israelense, passando pela ocupação do Iraque.

HAROLD PINTER_2005
DISCURSO DO NOBEL
Como todos sabem, a justificativa para a invasão do Iraque foi que Saddam Hussein possuía um arsenal de armas de destruição em massa, algumas das quais poderiam ser disparadas em 45 minutos, ocasionando uma destruição pavorosa. Garantiram-nos que era verdade. Não era verdade. Disseram-nos que o Iraque mantinha relações com a Al Qaeda e que era corresponsável pela atrocidade que se abateu sobre Nova York em 11 de setembro de 2001. Garantiram-nos que era verdade. Não era. Disseram-nos que o Iraque era uma ameaça à segurança do mundo. Garantiram-nos que era verdade. Não era.
Os crimes dos Estados Unidos têm sido sistemáticos, constantes, cruéis, impiedosos, mas pouca gente toca no assunto. É preciso responsabilizar os Estados Unidos. Eles manipulam o poder com extrema frieza no mundo todo, fazendo-se passar por uma força universal do bem. Trata-se de um ato de hipnose brilhante, e muito bem-sucedido.
Escritor, diretor de teatro e ator inglês, Pinter intitulou seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura “Arte, Verdade e Política”.

HUGO CHÁVEZ_2006
NA ASSEMBLEIA DA ONU
O diabo esteve ontem aqui, bem aqui. Ainda há cheiro de enxofre hoje. Ontem, nesta mesma tribuna, o presidente dos Estados Unidos, a quem chamo de “o diabo”, falou como se fosse o dono do mundo. Seria apropriado que um psiquiatra analisasse o discurso do presidente dos Estados Unidos. Como porta-voz do imperialismo, veio dar suas receitas para manter o atual esquema de dominação, de exploração e de saque dos povos do mundo. Foi como um filme de Alfred Hitchcock. Eu até proporia um título: A Receita do Diabo.
O discurso do tirano mundial, cínico e cheio de hipocrisia, mostra a tentativa dos imperialistas em controlar tudo. Eles querem nos impor o modelo democrático tal e qual o concebem: a falsa democracia das elites. É um modelo democrático muito original: imposto a explosões, a bombardeios, na base de invasões e canhonaços. Ora, que democracia! Seria preciso revisar as teses de Aristóteles, não?
O que ocorre é que o mundo está despertando e em todo canto os povos se insurgem. Sim, podemos ser descritos como extremistas, mas nos insurgimos contra o império, nos insurgimos contra o modelo de dominação...
A aurora ocorre em todos os lugares: na América Latina, África, Europa e na Oceania. Gostaria de enfatizar essa visão otimista. Para que possamos fortalecer nossa vontade e nossa disposição em lutar pelo salvamento do mundo, e construir um mundo novo e melhor.
O presidente venezuelano falou à Assembleia Geral das Nações Unidas um dia depois de George W. Bush. Chávez tentou dar um golpe de Estado em 1992 e não conseguiu. Foi eleito presidente em 1998 e reeleito em 2000 e 2006, além de ter vencido uma tentativa de golpe em 2002.

ANTONIO CANDIDO_2009
EXAGEREM, ERREM, ACERTEM
Estou aqui para fazer um protesto veemente contra a intervenção da força policial no campus: ela é um atentado a um dos direitos mais sagrados, que é o de debater sem sofrer pressão externa. Atuem, ajam, exagerem, errem, acertem na busca da justiça social.
Num discurso numa assembleia na Universidade de São Paulo, o decano da crítica literária incentivou estudantes que protestavam contra a entrada da polícia militar no campus.

MUNTAZER AL-ZAIDI_2009
POR QUE ATIREI O SAPATO
Estou livre. Mas meu país ainda é prisioneiro de guerra. Muito se falou sobre a ação e sobre a pessoa que realizou a ação, e sobre o herói e o ato heroico, e o símbolo e o ato simbólico. Mas, simplesmente, eu respondo: o que me impeliu a agir é a injustiça que se abateu sobre o meu povo e a humilhação que a ocupação quis impor à minha pátria, colocando-a sob seu tacão.
Digo àqueles que me reprovam: sabe em quantos lares destruídos aquele sapato que atirei entrou? Quantas vezes pisoteou o sangue de vítimas inocentes? Talvez aquele sapato fosse a reação adequada quando todos os valores são violados.
Quando atirei o sapato no rosto do criminoso George Bush, quis expressar minha rejeição às suas mentiras, à ocupação do meu país, ao assassinato do meu povo. Minha rejeição à sua pilhagem da riqueza do meu país, à destruição da infraestrutura. E à dispersão dos filhos do Iraque em uma diáspora.
Al-Zaidi, jornalista iraquiano, jogou um sapato em George W. Bush na ocasião de uma visita do presidente americano a Bagdá. O número de mortes de civis devido à ocupação do Iraque foi estimado em mais de 1 milhão de pessoas, entre 2003 e 2010.

LIU XIAOBO_2009
O TAMBOR E A CANETA
Seja na China ou em outras partes do mundo, na Antiguidade ou na era Moderna e Contemporânea, a inquisição literária através da criminalização do discurso constitui um ato contra a humanidade e os direitos humanos.O primeiro imperador da dinastia Qin conseguiu a unificação da China, mas a tirania de sua “queima de livros e de enterrar vivos os sábios confucianos” tornou-se uma triste lembrança. O imperador Wu, da dinastia Han, foi um homem de grande talento e visão, mas sua decisão de mandar castrar o grande historiador Sima Qian valeu-lhe críticas e ignomínia.
Em termos de efeito objetivo, é mais perigoso calar a boca das pessoas do que represar um rio. As altas paredes da prisão não conseguem deter a livre-expressão. Um regime não pode estabelecer sua legitimidade suprimindo diferentes pontos de vista políticos, nem pode preservar a paz e estabilidade duradouras mediante a inquisição literária. Pois os problemas oriundos do tambor de uma caneta só podem ser resolvidos pelo tambor de uma caneta.
Participante dos protestos da Praça da Paz Celestial, em 1989, o escritor Liu Xiaobo tem defendidoos direitos humanos na China desde então. Foi condenado em 2009 a onze anos de prisão, e recebeu o Nobel da Paz no ano seguinte.

HENNING MANKELL_2010
A AÇÃO E A PALAVRA
A Faixa de Gaza foi transformada na maior prisão ao ar livre do mundo, e era óbvio que deveríamos fazer alguma coisa. Achamos que talvez devêssemos tentar romper o bloqueio, e a única maneira de fazer isso era com um comboio de barcos. A primeira vez que ouvi falar disso, pensei que era uma boa ideia, gosto de navegar. Acredito muito na solidariedade como um instrumento para mudar o mundo, e acredito no diálogo, mas é a ação que prova a palavra.
Escritor sueco, Mankell estava no comboio que tentou romper o embargo da Faixa de Gaza, em maio, quando tropas israelenses invadiram os barcos e mataram nove pessoas. Desde 1989, Israel restringe o direito de ir e vir em Gaza, e em 2007 bloqueou a área. David Cameron, o primeiro-ministro inglês, descreveu Gaza como um “campo de prisioneiros”.

ZUCCOTTI PARK_2011
CONTRA O 1%
Nós somos os 99%.
Divisa do movimento Ocupar Wall Street, em Nova York e em dezenas de cidades nos Estados Unidos, referindo-se à maioria prejudicada da sociedade.

PRAÇA TAHRIR, CAIRO_2011
CONTINUAR
Não vamos sair, ele sai.
Grito dos manifestantes que exigem a renúncia do marechal Mohamed Hussein Tantawi e a queda da junta militar que controla o Egito desde fevereiro, quando foi derrubado o ditador Hosni Mubarak. J
16 de junho de 2015
Organizado por Andrew Hsiao e Audrea Lim