sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O MORTO ESCUTA


Arte de El Greco. Texto dedicado ao amigo Marcelo

Sou místico, acredito no sobrenatural, em Deus, em anjos, fantasmas, duendes, rezo ao entrar no carro, faço sinal da cruz ao passar por igreja, enxergo coincidências e sigo rituais.


Quando pequeno, queria ser santo. Hoje, percebo que é difícil ser apenas um homem honesto.


Fiquei abalado pela história real de uma enfermeira mineira. Foi a descoberta espiritual mais importante de minha vida. Não dormi por duas noites seguidas relembrando as verdades ditas por aqueles olhos azuis enormes.


Ela trabalhou por 30 anos na Santa Casa de Misericórdia, cuidando e socorrendo pacientes terminais.


Confessou que a pessoa morre como ela viveu.


Os mais alegres têm despedida leve, tranquila, independente da enfermidade. Vão daqui para o outro lado sonhando. Não realizam drama, tampouco articulam chantagem. Tamanha a suavidade, não dá para identificar o último suspiro. Aceitam o destino, agradecidos pelo amor recebido.


Já os que estavam acostumados a reclamar de qualquer coisa também definham contrariados. Atolados de culpas e dívidas, esbanjam esgares de sofrimento, protestam pelas dificuldades adquiridas na doença, gritam a cada arrepio, lamentam ausência de atenção; o hospital nunca é bom, a dor sempre é insuportável.


Eles falecem com o rosto contraído, fechado, apunhalado. De quem apanhou da morte. Uma feição tensa, de escultura inacabada.


Mas, então, a enfermeira revelou um hábito surpreendente de sua equipe: conversar com o defunto.


Diante do morto sofrido, refratário e penoso, ela cochichava conselhos em sua orelha. Pedia para que ele reconsiderasse sua raiva, que desistisse da cara amarrada e emburrada, que se arrumasse para o velório e abandonasse o ressentimento.


Explicava que os familiares esperavam com ansiedade para vê-lo, que ele precisava se despedir bonito, que os parentes mereciam seu perdão e não valia a pena comprar briga por orgulho e teimosia.


Com as palavras delicadas de incentivo, não é que o morto ia soltando os traços e transformava a aparência na hora: libertava as bochechas, alforriava a boca, relaxava por completo.


O morto incrivelmente escutava. Entendia a súplica da enfermeira mesmo depois do seu fim. Atendia ao pedido e desinchava a amargura e serenava o espírito.


Nossos ouvidos não terminam com a morte. Continuam ouvindo onde quer que estejamos.

fabricio carpinejar

A ILHA APODRECIDA


Brasília tornou-se infelicidade.

Fui morar no mato porque queria ter vida à minha volta. Ver o passarinho fazer um ninho, pisar no chão de terra, ver a nuvem, o vento, o tempo; a Mãe Natureza, sabe?... Sentia a falta do seu carinho.

Um amigo que me vendia pães de maçã saborosamente integrais foi quem me deu a dica: “Lá, onde eu moro, é tudo assim, desse jeito aí que você falou”.

A primeira tentativa foi logo feita. Apareci bonito, ao natural, com barba e cabelo. E fui logo recebido pelo homem simples do local. Gostei da modéstia e da casinha recém reformada. Confirmei interesse e levei parentes para gostarem também.

Trato feito, ficou tudo acertado, firmado na oralidade. Dali a alguns dias, a mudança seria levada a cabo. Mas logo veio o desencanto: a casinha que tanto queria fora querida por outros também. Trato desfeito. Quebra de confiança. Poxa, logo com um homem da roça – de enxada na mão e tudo mais... Mas, quem desconfiaria?

Logo entendi que minha conversa tinha culpa. Quem manda falar para homem pobre que o dinheiro não vale nada? Que o valor maior está nos olhos, ou escondido, dentro do coração?

Pois foi o que fiz, cheio de ladainha e poesia, quis permear a prosa de valores verdadeiros, mas não financeiros. E as portas daquela casinha se fecharam.

Mas o tempo, o vento levou, e fez-se a próxima temporada; e mais uma empreitada.

Soube de nova casinha, a uma outra colada.

Bati palmas. Saiu de lá um sujeito franzino e dentuço, com cara de espiritualidade e roupas brancas, me lembrando a eternidade. Perguntou o meu nome e disse que ia meditar antes de me aceitar. Ao fim do dia, me ligou: "Gostei de você. Acho que vamos nos entender muito bem!”. Tornamo-nos vizinhos e grandes amigos.

Foi um tempo bom aquele... No início, quando tudo é novidade, a vida ganha contornos coloridos; até água fria e falta de energia são motivos de tranquilidade. De lá, o céu era mais bonito que o da cidade, e sempre tinha estrelas.

Enquanto isso, eu fazia tudo o que queria. O que eu mais gostava era de pular da cama e, ainda nu, ir direto ao jardim para fazer o xixi da manhã. Bocejar para as plantas é melhor do que para azulejo. De um lado, via mangas, goiabas e amoras recém-nascidas. Abaixo, formigas levando folhagem ao formigueiro. E ao longe, bem longe, os parcos sons de uma cidade da qual eu já não gostava tanto.

Aranha tinha. Barata não. Prefiro cinco aranhas a uma única barata.

E enquanto eu ia aprendendo a passar o tempo sem muito fazer, conversava com quem aparecesse. Gente diferente e sem preconceito. Gente pobre, gente simples e, como eu, cheia de defeitos. Eu, agora, tinha vizinhos à vontade; daqueles que dão “bom dia” por gosto, e não por ofício ou vício. Claro, faziam picuinha como a gente da cidade, embora fossem bem mais, gente de verdade.

Eu agora tinha janelas e portas abertas para a vida. Para as meninas que brincavam no gramado em frente, e que sempre invadiam minha casa, sorridentes. Para o vizinho que meditava. Para o amigo novo que chegava e logo se acomodava.

Foi realmente um tempo bom, um tempo novo. Que me estimula a olhar para frente, talvez olhar diferente... Já não posso mais afirmar o amor que um dia pensei sentir pela minha cidade.

Viver numa grande caixa, cheinha de gente, nunca me fez muita alegria. Invejava aqueles que, ainda que mais pobres, tinham uma turma, uma rua, uma comunidade a qual pertenciam. Eu nunca pertenci a Brasília; a uma superquadra – ainda que por ali houvesse toda a vida vivido. Mais de 30 anos em apartamentos de alto padrão não me davam alento, só solidão.

Acho que ela se tornou paradigma anticomunitário. Um reflexo espúrio do excremento mesquinho, pérfido e pútrido das autoridades que aqui cagam, cheias de cinismo e imunidade. Uma cidade que não se mexe e não se envergonha de nada. Que perde espaço para os muros e os condomínios feitos em dissonância; à perfeição dos anseios de cada individualidade.

Já não há o sonho candango, que, aliás, é palavra feia. Nunca foi adotada pelas elites que aqui chegaram com tudo já feito... Pelos próprios candangos!

Já não há tantas crianças pela grama. Já não há tantas crianças pelas ruas ou pelas quadras... Onde estão as crianças? Meteram-nas todas em grandes shoppings? Mas tantas assim? Sim, constroem-se mais shoppings e cinemas e casas de jogos e tudo mais o que for possível para tirá-las do convívio simples e real de uma vida comunitária. Dizem pertencer a várias comunidades que – pasmem! – não existem nem no papel, senão em telas – e somente nelas.

Ocupada, desordenada e desencantada. O livre caminhar perdeu rumo. O concreto virou vidro. A espontaneidade perdeu o sentido. A esperança virou desalento, medo, castigo.

E agora, Lúcio? E agora, Oscar? Porventura desconfiariam que o avião iria naufragar?

Pois naufragou a nossa Brasília, tornou-se puramente ilha, Brasólia, inglória.

Antes que derrubem meu mato, boto minha viola no saco e vou-me embora, farto.

maltrapo

MOSAICO EXISTENCIAL


memória da pele

sua caretice impagável, meus sonhos de menina. nossas bicicletas. sua engenharia naval e meu jornalismo barato. o dia em que senti o cheiro do seu peito, a certeza que me rebocou até sua cama. os elevadores do seu prédio, seus olhos inchadinhos ao acordar. seus sucos de melão e melancia, minhas 200 cocas com gelo e sem limão, a estrada cheia, o parque nacional do itatiaia, a síndica neurótica do seu prédio, o cinema do leblon, ainda de biquini e sunga, pagando pra ver benjamin button e saindo antes daquela
merda acabar. o frescobol menstruada, o ônibus, com uma orquídea numa mão e uma lasanha na outra. a estante do seu candido que pintamos juntos, o sucesso da cor dos meus olhos, os beijos de namorado no elevador do prédio dele. o chuveiro desligado na hora de se ensaboar, o prato de pedreiro no micro, as brigas na chapada dos veadeiros, a comida da zezé, a casa da sua mãe crescendo em teresópolis, os dias em que tomei cerveja, muita cerveja. os cigarros que você fumava pra não me deixar morrer sozinha (que desculpa chata), a pedra bonita sem asa delta, a joatinga no final da tarde, o bar lagoa, o cinema do ccbb, com adolescentes chatos e fanáticos por woody allen, os chuveiros de água doce na praia, a sua preocupação com a minha pele, a minha adoração pelo seu ombro, as brigas por causa dos filmes japoneses indicados pela sua mãe, o restaurante lamas, a avenida oswaldo cruz, os melhores metros quadrados da minha vida. a instalação do ar condicionado, a visita aos velhinhos do 812, você me ensinando a contar azulejos pra controlar minha ansiedade, o jogo do flamengo no maracanã (eu torcendo pro botafogo, muda), nossa patética aula de salsa na escola do jaime aroxa, as vezes que você demorou segundos intermináveis para abrir a porta, o cheiro de ovomaltine na sua boca. seus problemas imaginários, tipo não saber pronunciar o fonema F e nadar torto na piscina, o prazer de ver você dormindo, as louças que lavei compulsivamente, sua mão no meu ombro quando o sinal estava fechado para pedestres e ciclistas, sorvete brasil de tangerina e chocolate no bondinho do pão de açucar, nossos mergulhos no mar, seu medo de altura e minha vontade de voar. minhas lágrimas na sopa de abóbora do dia dos namorados, o bloco de rua no carnaval, a pílula do dia seguinte e um fim de tarde na praia vermelha. foi ali. logo aqui.

você me ensinando a persistir e eu morrendo de medo de você desistir.

Silvia Pilz

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE...




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A MEDIOCRIZAÇÃO ACADÊMICA - EU E JANER CRISTALDO (com razão)


Sou um acadêmico, eu sei, vocês sabem, ademais de ser também funcionário público federal da carreira do Serviço Exterior Brasileiro, mais exatamente diplomata, como se diz comumente.

Não sei em qual profissão eu me divirto mais, sou mais anarquista, ou ganho mais. Não importa. Olho as duas com olhar crítico. E acho que mereço os dois salários que ganho, pois como todos sabem, eu trabalho, produzo (supostamente coisas úteis à sociedade), mostro o que produzo, e me submeto a avaliações (dos chefes, dos alunos, dos pares, da sociedade, todos podem ler, ou não, o que escrevo, comprar meus livros publicados, enfim, me julgar de modo aberto, alguns até anonimamente, aqui mesmo neste blog até agora gratuito).

Não é de hoje que eu digo que a universidade vai para o brejo, que ela está decadente, que o ensino é medíocre, enfim, o que constato, visualmente, diretamente.
Claro, não pretendo ofender os colegas, chamando-os de medíocres ou preguiçosos, tanto porque escolho me relacionar com pessoas produtivas, inteligentes, dedicadas e honestas intelectualmente. Sinto muito, mas não consigo me relacionar com "maus-caráteres", desonestos, fraudadores. Esses eu simplesmente deixo de lado. Mas eu os encontro, aqui e ali: numa palestra (ou numa arenga), num artigo entregue para revisão e publicação (e quando chega para meu parecer sou apenas rigoroso), pelo que leio por aí, nesses jornalecos medíocres, nesses blogs alimentados com o dinheiro público.

Pois bem, o Janer Cristaldo é um provocador (como eu), embora ele seja muito mais anarquista do que eu. Ele não tem nenhum respeito pelos poderes constituídos (nem eu, mas preciso manter as aparências, por enquanto).

Ele não só critica as universidades (em geral, e as brasileiras em particular), no que acho que ele faz muito bem, mas ele critica a instituição do doutoramento. Concordo em grande medida com ele: tem muito teatro nessa coisa e muita embromação. Mas não ouso criticar sem oferecer uma solução alternativa. Não tenho ainda um substituto. Mas concordo em que as universidades estão defasadas e precisam se reformar, se modernizar, se transformar completamente...

Seguem três posts do Janer sobre um dos muitos motivos da decadência acadêmica.

Paulo Roberto de Almeida

SUTIÃ CAUSA CÂNCER

Esta seria a manchete dos meus sonhos. Eu sonho com manchetes quando sinto vontades ou a falta delas. Num dia de preguiça, por exemplo, sonho com manchetes do tipo “todas as pessoas que nasceram em 1971 estão proibidas de sair de casa hoje”.

Eu sempre detestei sutiã. Porém, não tenho a menor condição de dizer que ele não faz parte da minha vida. Fez e faz. A falta dele sempre foi um dilema, um obstáculo na hora de escolher roupas, motivo de brigas com namorados ciumentos.


Enfim, até no divã, os sutiãs que eu não tive já foram parar. Na adolescência, por razões quase óbvias. Depois que o infeliz do Washington Olivetto criou “o primeiro sutiã, a gente nunca esquece”, o produto da Valisère virou um sonho de consumo, uma obrigação entre as meninas que se deparavam com seus primeiros raios de mulher.

Coco Chanel já dizia que os espartilhos deixavam as mulheres menos inteligentes, por respirarem com dificuldade.
Mas, naquele tempo, eu não fazia idéia de quem era essa moça. E, quando recusava sutiãs, achava que este meu desconforto era herança indígena. Até minha sexualidade já foi questionada por causa da minha aversão ao sustentador de mamas.
Nas sessões de psicanálise, normalmente, o sutiã acaba indo parar no colo do meu pai, como quase tudo. Ele simplesmente nunca me obrigou a usar nada que me incomodasse, incluindo batons, laçarotes e salto alto.

Porém, até mesmo ele questionava a falta do sutiã quando fiquei mocinha. Achava que minha intenção era provocar. Toda mulher descobre no peito, uma arma. E, toda mulher acaba atirando, mesmo sem entender ao certo qual a razão deste fascínio dos homens pelos seios femininos.

Mal sabia eu que até mesmo a invenção desta algema peitoral – o sutiã – começou com um gesto de rebeldia. A história diz que a jovem nova-iorquina revoltou-se contra o espartilho que não só a apertava como sobrava no vestido de noite que acabara de comprar e fez uma espécie de porta-seios tendo como material dois lenços, uma fita cor-de-rosa e um cordão.

A invenção tinha o objetivo de acomodar o seio, possibilitando moldá-lo, diminui-lo, escondê-lo ou exibi-lo. Transformou a coadjuvante roupa de baixo em protagonista do figurino da mulher. Antes escondido, hoje é usado até como roupa de cima.

Independente da minha história com sutiãs, fica claro que carregar peitos sempre foi uma questão complicada. Parece que a mulher nunca soube exatamente o que fazer com aquele par de seios que, até hoje, mata a fome de bebês de todas as idades. Nada me impediu de evitar o uso do sutiã. Nem mesmo a possibilidade de encantar um príncipe exibindo meu parzinho de seios com rendinhas em volta me fazia crer que alguém pudesse achar um sutiã mais sensual que a ausência dele.

Ainda hoje, só dou o braço a torcer em casos extremos, como uma blusa social branca, por exemplo. Mesmo assim, livro-me do infeliz assim que saio de cena. Desenvolvi técnicas. Sei tirar um sutiã dirigindo, sem me despir e sem que quase ninguém perceba.

Referências revelam que em 2000 a.C., na Ilha de Creta, elas usavam tiras de pano para modelá-los. Mais tarde, as gregas passaram a enrolá-los para que não balançassem. Já as romanas adotaram uma faixa para diminuí-los. O espartilho surgiria na Renascença para encaixar a silhueta feminina no padrão estético imposto pela aristocracia. Por meio de cordões bem amarrados, ele apertava os seios a tal ponto que muitas desmaiavam.

O sutiã apareceu para libertar a mulher daquela ditadura. Mais tarde, ele foi queimado em praça pública por ter se tornado símbolo da opressão masculina.

Hoje, a comissão de frente pode ser chamada de carro-chefe. Como qualquer outra coisa, representa faturamento, faz parte de uma engrenagem que movimenta mais de 734 milhões de reais ao ano ( eu inventei estes números). O silicone, que mantém o peito duro , sempre, não fez nem cócegas no crescimento do mercado. Muito pelo contrário. A mulherada turbina para manter decorado, enfeitado e apertado.

Respirar não é preciso. Até pra não correr o risco de oxigenar o cérebro.

Silvia Pilz

O MILAGRE DAS RAPADURAS


A estratégia é simples, mas funciona: vendendo cada doce a R$ 9, seguido Hilberto fica com o troco pela simpatia. Foto de Tadeu Vilani

A vida é dura como um pé de moleque, mas no fundo é doce.

Esta frase só tem sentido na boca de Hilberto Helvino Von Frühauf, 76 anos, morador de Victor Graeff, município de 3 mil habitantes, situado a 263 quilômetros da Capital.

Ele pagou a universidade de seis filhos vendendo rapadura de porta em porta. Desde 1975, acorda cedo, sai com uma cestinha verde cheia de confeitos feitos pela mulher Nelvi, caminha 200 metros de barro, embarca no ônibus da empresa Azul na Linha Jacuí e segue oferecendo o produto para quem encontrar pela frente em Carazinho, Passo Fundo e Não-Me-Toque, além de sua própria cidade.

O casal, que completa bodas de ouro em novembro, teve sete filhos; três já morreram: o químico Milton em acidente de carro em 1986; a professora Marilei ao cometer suicídio, inconsolável pelo fim precoce do irmão, em 1991; e Maristela, decorrente de complicações da paralisia cerebral, em 1993.

– Enterrar um filho é doer como bicho – desabafa.

Nelvi lembra que dobraram a produção caseira de rapadura para cobrir remédios tarjas preta de Maristela, que passou 19 anos na cama.

– Ela nunca deixou de ser meu bebê de colo, um bebê grande.

Com escolaridade até a 5ª série, Hilberto nem guarda ideia de como sustentou o ensino da prole.

– Eu lutei, não trabalhei. Trabalhar é fácil.

Sua aparência simples e pobre confirma o milagre. Toda manhã veste uma japona furada, o abrigo cinza com rasgo nos joelhos e as havaianas pretas.

– Juntei pobrezas para conseguir o estudo de minhas crianças.

Crianças? Mania de pai que não enxerga o filho adulto:

Márcia, 38 anos, é formada em Química e reside na praia de Cassino. Moacir, 43 anos, é graduado em Veterinária e Administração e mora em Salvador (BA). Marcos, 45 anos, é pós-graduado em Biologia e escolheu viver em Santa Cruz do Sul. Marize, 48 anos, cursou Filosofia e mora em Mogi das Cruzes (SP).

A saída de rapaduras depende exclusivamente do fôlego de maratonista de Hilberto, que não admite regressar para casa de mãos abanando.

– Questão de honra. Melhor voltar tarde, de madrugada, do que ver a cara triste de Nelvi, após horas cozinhando e embalando o material.

Hilberto comercializa 28 rapaduras de 660 gramas por dia, a R$ 9 cada. Foram 360 mil rapaduras vendidas ao longo de sua história. Isso que sofreu calotes em suas andanças, de clientes que pediram para anotar e desapareceram logo em seguida.

– Não tem problema, vou aceitando que é cortesia de Deus. Homem honesto não cobra o outro, cobra de si mesmo.

A memória fisionômica de Hilberto não perdoa nenhuma recusa. Lembrar quem comprou é o básico, ele tem refinamentos.

– Não esqueço mesmo de quem me disse não.

Um de seus métodos é contar piadas picantes diante da indecisão do cliente.

– Ou ele ri e compra ou ele odeia a gozação e também compra de vergonha para calar a minha matraca.

Sua carência charmosa ainda resulta em comissão de 10%. Afinal, ele é um garçom em permanente trânsito de sua cozinha às ruas.

– O troco é dele, para homenagear as covinhas do seu riso e seus olhos de Sinatra – brinca a bancária Juliana Ferreira, 29 anos, uma de suas freguesas em Victor Graeff.

Hilberto não sonha em ganhar na Mega Sena e se aposentar, muito menos delira com qualquer riqueza súbita.

– Se pudesse mudar algo hoje em sua vida, o que faria? – pergunto.
– Ficar mais novo para lutar mais – ele responde, sem pensar muito.

Sorte grande de seus nove netos.

Fabricio Carpinejar

ENTREVISTA COM FABRICIO CARPINEJAR


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SÍNDROME DE ESTOCOLMO

As relações humanas se tornaram competitivas, assustadoras e cheias de ciladas. O homem ficou amedrontado e resolveu estabelecer vínculos de afeto com animais não ambiciosos, que se satisfazem com aquilo que lhes é apresentado. Hoje, os cães são vítimas da síndrome de estocolmo, estado psicológico onde a vítima encarcerada desenvolve afeto pelo carcereiro.

Na recepção de um hotel da rede Best Western, numa pacata cidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, me deparei com uma plaquinha que dizia: “por favor, registre aqui, seu animal de estimação”.
Ou seja, para que o cachorro possa circular pelos corredores do hotel, é preciso que o dono faça uma coleira de identificação, com o nome do bicho e o número do quarto.

Naquele tempo, 2004, eu não imaginava que atualmente, cães seriam rastreados por chips, tomariam florais para síndorme do abandono, frequentariam terapia e fariam mapa astral. Eu acreditava que em algum momento, a relação insana que homem travou com seu melhor amigo fosse tomar outro rumo. Ledo engano.

Se a grande maioria da população trata cachorro como gente, é natural que esta grande maioria procure hotéis, supermercados e restaurantes que tenham comprado essa idéia.

Funciona como qualquer outro hábito de consumo. Enquanto os cachorros estiverem gerando despesas e movimentando o mercado, eles serão bem vindos Só nos Estados Unidos, 7 bilhões de dólares são gastos, por ano, na saúde dos animais domésticos. No Brasil, de acordo com dados do Sindicato Nacional das Indústrias de Alimentação Animal, de 1994 a 2004, o mercado de alimentos voltados para animais de estimação cresceu 690%.


Em matéria publicada na revista Super Interessante, especial Bichos 2, o químico e jornalista científico Stephen Budiansky, autor de The Truth About Dogs (“A verdade sobre os Cães”, ainda inédito no Brasil) dá algumas dicas sobre a “educação” de cachorros.

Fazendo um comparativo entre um bebê e um filhote de cachorro, o americano diz que uma criança precisa de amor incondicional e não pode ser criada obedecendo a comandos. Mas, para um cão, isso só mostra qual é a hierarquia dele dentro da casa. “A sociedade deles é mais simples: uns mandam e outros obedecem. E, se deixarmos isso claro, eles vão fazer de tudo para nos agradar e ganhar um cafuné ou biscoito”.

Ou seja, se você tem um cão, você busca uma relação segura, consistente, sem surpresas desagradáveis. Na verdade, você anula o cachorro e faz dele uma extensão sua, um rabo que se abana.

As relações humanas se tornaram competitivas, assustadoras e cheias de ciladas, o homem ficou amedrontado e resolveu estabelecer vínculos de afeto com animais não ambiciosos, que se satisfazem com aquilo que lhes é apresentado. Ficou mais fácil tratar bichos como pessoas e pessoas como bichos.

O bicho é como filho da casa e tem direito a tudo o que quiser, desde que não vire gente. Acredito que isso aconteça porque os bichinhos são mais facilmente adestrados, educados num regime de troca e condicionamento. A submissão do animal conforta seu dono.
Todo e qualquer sentimento de liberdade está atrelado ao dono, que é o chefe da cadeia e enxerga a escravidão do cachorro como fidelidade absoluta. Vontade própria é desacato a autoridade.

Quando um ou outro mostra ou lembra que é cachorro e engole uma galinha, come um rato ou morde alguém, pelo motivo que for, é submetido a “torturinhas” chamadas de castigos ou adestramento, dependendo do grau de violência instintiva do animal e de seu dono. Talvez eles tenham se acostumado com sua atual realidade e esquecido que são bichos. É natural que isso aconteça.

Como não são mais estimulados a agir como cachorro, com o tempo, deixam de lado suas habilidades caninas. Depois de adotá-los, o homem afirma, se justificando, que o bicho morreria de fome se fosse passar uma temporada com um grupo de animais selvagens. É óbvio. Mas, o importante é que eles não estão em extinção.
Aliás, a superpopulação canina vem incomodando a sociedade, a mesma que nos últimos tempos, lutou para transformar cachorros em ursinhos de pelúcia e estimulou a produção de animais “transgênicos”.

Médicos veterinários afirmam que tanto no Brasil como em outros países mais desenvolvidos, existem pessoas que não assimilam o conceito da pos se responsável de um animal.

Traduzindo: Posse responsável, além de bons tratos, significa controlar a reprodução dos bichos para evitar que cães mendigos circulem pelas ruas. O sistema é parecido com o que poderia ser imposto aos homens, já que assim como os cães, também tem muita gente dando cria sem controle.

Recentemente, o país das soluções apresentou uma novidade. A FDA, órgão do governo dos EUA que supervisiona alimentos e remédios, aprovou o Neutersol, uma alternativa à cirurgia de castração para filhotes de cachorro. O produto, injetado nos testículos do filhote na idade correta, produz atrofia dos testículos e da próstata.

A alternativa cirúrgica, remoção dos testículos, garante a esterilidade em 100% dos casos. Já o Neutersol, é menos eficiente: análises de sêmen mostraram uma esterilização química malsucedida em 224 cães testados. O novo método pode não eliminar os comportamentos associados ao hormônio, como demarcação de território e agressividade. É importante ressaltar que o cão não precisa assinar nenhum documento para se submeter ao tratamento. Quem faz isso é a mamãe ou o papai, como se intitulam os donos do refém.

“Eu tenho vergonha de ser ser humano”, Daniel Pilz.



silvia pilz

MALKOVICH


Seria pretensão da minha parte dizer que não faço parte desta manada desenfreada e cheia de freios. O que me intriga é a cartilha, o script. Ora, quero acreditar que felicidade é seguir a boiada, sem muito pensar, sem contestar de onde ela veio ou pra onde vai.
A minha volta, mulheres teoricamente felizes, mães, esposas independentes, com seus cardápios da semana colados na geladeira, com os horários de todas as atividades das crianças em dia, com as viagens de férias planejadas, com suas babás de branco, muito bem teinadas, com os presentes do próximo amigo oculto devidamente comprados.
O jantarzinho de sexta-feira, com o marido, nos restaurantes da moda, os esmaltes e batons na gaveta, o closet cheio de sapatos e um frasquinho de rivotril, na mesinha de cabeceira.

Com presença confirmada em todas as festinhas de crianças, que nos últimos tempos, se transformaram em mega festas, a massa segue, como um rolo compressor, achatando (tornando chato) tudo aquilo que encontra pela frente.

Ora, eu empaco, feito mula ou cachorro quando trava os freios traseiros. Ora, eu sigo a boiada, mesmo que a contragosto, sem salto alto ou escova inteligente. Normalmente, na hora da conversa cortês e sem sentido dos encontros sociais é que eu me machuco. As conversas são sempre baseadas em alguma coisa que envolva dinheiro, como liquidez na compra de imóveis, por exemplo.

Liquidez é um conceito econômico que considera a facilidade com que um ativo pode ser convertido no meio de troca da economia, ou seja, é a facilidade com que ele pode ser convertido em dinheiro. Liquidez é um pé no saco.

Em seguida, os presentes conversam sobre seus pratos, seus filhos, se divertem com piadas sem graça, falam da sobremesa, do regime que vão começar na próxima segunda-feira, combinam cineminha e conversam sobre a próxima viagem pro estragneiro. Agenda encerrada. Em silêncio, penso: Estou matando tempo. O tempo está me matando.

Se tem uma coisa que não falta na cartilha da manada, é dinheiro e contradição. O que mais se encontra é gente com dinheiro colado pelo corpo. Eles acompanham esta moda. Colam marcas ao redor do corpo, da casa, do carro e das crianças. Dentro deles? Nada. Muito medo de perder o poder que nunca tiveram.

Quantas vezes já ouvi, que meu mundo seria melhor ou mais fácil se eu deixasse de ser tão contestadora. Se eu buscasse um caminho menos árduo, menos solitário e me entregasse ao Mickey Mouse e não ao Mickey Knox [personagem de natural born killers]. Acontece que pra mim, isso nunca foi simples. Desde a infância, meu príncipe encantado, escrachado e, de bolso furado, era de massinha e tomava milhares de formas. Já me casei com meu professor de natação, com o John Malkovich, com o Roger Federer e com a Mart´nália.

Eu não quero carros. Não quero o controle nem as marchas. Eu não quero festas nem música alta pra abafar os pensamentos. Não quero a sorte de um amor tranquilo. Amores inquietos são mais produtivos. Quero amar minhas culpas. Sem elas, eu jamais teria aprendido a nadar. Quero havaianas e bom sexo. No verão, ar condicionado. No inverno, churros na porta do cinema. Estive em escolas, onde acho que pouco aprendi. Não sei se fui bem ou mal educada pelos meus pais. Mas, estou aprendendo a descobrir.

silvia pilz

CACHORRADA

Escova de dente é um item de higiene particular. Seguia na merendeira da escola, ao lado da toalhinha de rosto e avental bordados, com o nome do dono colado com durex. Poderia emprestar pente aos coleguinhas, escova nunca.

Mas vá explicar privacidade a um irmão.
° ° °
A mãe confundia a partilha, obcecada por harmonias invisíveis (combinava a tonalidade da esponja com os ladrilhos do banheiro ou da toalha com o sabonete).

Ela comprava quatro escovas azuis: turquesa, marinho, calcinha e petróleo. E avisava aos quatro filhos de igual forma:

— Sua escova é azul.
E deu! Sem nenhum parêntese, detalhamento, explicação das diferentes matizes.

Qual azul: a forte, a fortíssima, a fraca, a fraquíssima?

° ° °
Acabávamos descobrindo tarde demais que a nossa escova servia a dois senhores ao mesmo tempo, a dois homens, um marido e um amante. Havia indícios contundentes: na primeira escovação do dia, ela continuava úmida. No momento do almoço, surgia estranhamente no box do chuveiro. Não parava no lugar que deixávamos.
° ° °
Não me importava em dividir as cáries, não tinha nojo de mim, mas Rodrigo sim, até porque não usava aparelho como eu. Ele fazia careta quando guardava a minha dentadura de adolescente no estojo.


° ° °
Acho que tomei sua escova sem querer. Complicado definir o corno da história, e quanto tempo demorou o caso.
° ° °
Com as suspeitas, o mano pirou, a ponto de diversificar esconderijos e me perseguir. Eu entrava no banheiro e ele batia na porta, pedia para entrar; um inferno, sempre no meu pé, sempre me controlando, ferrando meus devaneios com as revistas eróticas.

° ° °
Sua vigilância se transformou em doença. Colocava pimenta, catchup e mostarda nas cerdas, tudo para me prejudicar por tabela. Desejava me pegar em flagrante e me denunciar aos pais.

° ° °
A guerra fria durou de 1980 a 1983.
° ° °
Não suportava seu ciúme. Com a mesada, adquiri uma escova vermelha para me diferenciar.

° ° °
Em seguida outras cores apareceram no copo terminando a ditadura materna.

° ° °
Tristeza é azar. Na hora de lavar o nosso cachorro e limpar sua boca, apanhei uma escova amarela, velha, guardada no fundo do armarinho.

° ° °
Não tinha como saber que aquela escova era do irmão, disfarçada de suja para prevenir meus ataques.

° ° °
Ele dividiu a escova com o cachorro por alguns meses.

° ° °
Meu irmão ainda me odeia por isso.
° ° °
Fui visitar sua casa no interior do estado. Ao procurar lenço de papel, encontrei uma gaveta inteira repleta de escovas de dente.

Mais de cinquenta, ele que não é dentista e não trabalha como representante comercial.

° ° °
Eu me senti todo culpado.

Carpinejar