terça-feira, 20 de outubro de 2015

SE VOCÊ NÃO EXISTISSE, QUE FALTA FARIA?

Mário Sérgio Cortella | Se você não existisse, que falta faria?

  • 9 meses atrás
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20 DE OUTUBRO DE 2015
m.americo

UMA MULHER TÃO GASTADEIRA QUANTO DILMA...

Os colunistas Marcelo Madureira e Joice Hasselmann comentam as trapalhadas da semana: ministério de segunda não pode mais viajar de primeira classe, Lula diz que as pedaladas foram para pagar o Bolsa Família, impeachment de Dilma nem começou e já está paralisado e a fatura da mulher mais cara do Brasil. Acompanhe no ‘Belo e a Fera’. 
Assista aqui.


20 de outubro de 2015
VEJA

O QUE SE PODE SABER DE UM HOMEM?

MARIO DE ANDRADE

Assim como Macunaíma, Mário de Andrade, seu criador, encarna as ambivalências brasileiras 



Quando estudei modernismo e música para o mestrado e o doutorado, ler Mário de Andrade de ponta a ponta era o primeiro requisito e o alvo final de um trabalho que me envolveu durante toda a década de 70. Fiquei familiarizado com seu estilo, suas obsessões, tiradas, idiossincrasias, seus dilaceramentos, gozos, giros interpretativos e com os meandros de suas análises. Com os meneios de sua prosa e poesia, ensaio e ficção, cartas caudalosas e anotações miúdas de pesquisa. Posso dizer que conheço de perto essa persona intelectual. Ouvir a voz, no entanto – ou por isso mesmo –, foi como levar um soco. A voz de Mário, falando e cantando, revelada recentemente por um áudio que estava perdido numa universidade americana, surpreende quem conviveu com seus escritos como a aparição em sonho de um familiar morto. Diferentemente dos textos e das fotografias, a voz vem de dentro da pessoa, secreta sinais físicos, não verbais, de uma aura, de uma dicção, de uma classe social, de uma época, como se projetasse corpo e alma em holograma, direto do inconsciente pessoal e social. Por um instante, a voz revela mais do que uma obra completa. Ela deixa transparecer bruscamente certas verdades difusas,lamacentas, que estão estampadas e ao mesmo tempo ocultas nos textos.
O único registro conhecido da voz de Mário de Andrade foi feito em julho de1940, no Rio de Janeiro, por Lorenzo Dow Turner, um linguista norte-americano, negro, que veio perseguir sinais das línguas africanas no Brasil. Atendendo ao pesquisador, Mário, mais as amigas Rachel de Queiroz e Mary Pedrosa, cantaram umas poucas canções folclóricas e comentaram brevemente a natureza e a proveniência delas. Nosso escritor entoa a cantiga que ouviu de uma mulher pedindo esmola em Catolé do Rocha, na Paraíba, em tom altissonante e paulista, cheio de vibrato, como se subisse aos céus: “Deus proteja a santa esmola, Deus lhe envie no andor, acirculado de anjo, arrodeado de flor, assentado à mão direita, aos pés de Nosso Senhor.” Ou como se saísse do inferno dos espectros (para lembrar “Mário de Andrade desce aos infernos”, poema de Carlos Drummond de Andrade sobre sua morte), entoando o canto ritmado de escravos libertos: “Toca zumba zumba zumba, toca zumba zumba zumba, auê auá, os preto nunca mais apanhará de bacalhau, nosso rei é liberá, nosso rei é liberá.”
Durante décadas, o material de pesquisa ficou depositado incógnito na Universidade de Indiana, onde foi desencavado recentemente pelo musicólogo Xavier Vatin, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, que não imaginava encontrar ali o único registro conhecido da voz do autor de Macunaíma, agora disponibilizado no site do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Aprimeira coisa que chama a atenção na fala de Mário é a entoação afetada e a escansão escorreita da dicção, os rr muito bem pronunciados, o fonema que não se confunde com ou, as sílabas levemente alambicadas. A dicção cultivada ao extremo surpreende quem sabe o quanto ele trocou programaticamente o português escrito pelo brasileiro falado, o quanto escolhia, por exemplo, grafar milhor em vez de melhor e si em vez de se. O poeta que se propõe a escrever poesia “numa língua curumim”, saboreando palavras “num remeleixo melado melancólico”, na “fala impura” e coloquial “de nossa gente”, com a boca cheia da “gostosura quente” do amendoim, é o mesmo que pronuncia Catolé do Rocha com o som do fonema vibrando numa evidência perolada e castiça, quase catedralesca de tão empinada.
As palavras que esse paulista educado e professor de dicção no conservatório profere com esmero contracenam com as vozes da pedinte nordestina e do coro da escravaria batucando as promessas da abolição – que o canto dele busca introjetar visceralmente. Muito das contradições do grande projeto modernista no Brasil, a aliança totalizante e desigual do intelectual com o povo (que se estende de diferentes maneiras de Mário a Graciliano, a Guimarães Rosa, ao Cinema Novo e à canção popular) estão gritando na distância sintomática que habita essa fala e esse canto. Fique claro que não estou denunciando uma suposta inautenticidade. Ao contrário, a pronunciada distância entre a intenção e a fala indica o quanto, nele, tudo é um esforço de construção, tremendamente artificial, ao mesmo tempo que passional e autêntico, de sua matéria de vida. O esforço erudito para atingir e incorporar o popular, como maneira de redimir o abismo social pela cultura, no Brasil, fica evidenciado no que tem de decisão e aposta em meio a dolorosas polaridades sociais e culturais.
A propósito, Mário via na voz humana um instrumento dúplice, suporte da fala e do canto, comparável ao arco de Apolo, que o mito diz que era também lira, instrumento de combate e de música, portador de “dois destinos profundamente diversos, para não dizer opostos”. Mário tem, aliás, e não por acaso, uma queda irreprimível por dualidades inconciliáveis e agônicas. Ouvindo sua voz retesada entre a norma culta e a melopeia popular, entre o linguajar do paulista cultivado e a música entoada pelos Brasis da pobreza e da escravidão, a gente entende melhor o modo como sua escrita é movida pelo desejo tremendo de atravessar essa falha geológica, tendo-a como ponto cego em si mesmo.
Digamos que semelhante impulso alimenta também o grande ciclo cultural que vai da ferida exposta em Os Sertões ao arco do modernismo e à efervescência dos anos 60, que nos deu, além deMacunaímaVidas SecasGrande Sertão: VeredasDeus e o Diabo na Terra do Sol, a bossa nova e a MPB, ciclo interrompido pela ditadura e substituído pela televisão em rede nacional, pela publicidade massiva e pelo crivo onipresente do mercado. Tudo isso que comparece no arrojo coletivo e contraditório do ciclo modernista, dos anos 20 aos anos 60 (totalizar o país não letrado por suas expressões letradas, fazer do artista “erudito” o portador e o porta-voz do povo e do todo) está personalizado nele em corpo e voz, figura e biografia, projeto e problema. Mais do que ninguém, ele próprio é a máscara, a persona contraditória por meio da qual soa a voz de tudo isso.
Ouvindo essa voz, entendo Manuel Bandeira, seu correspondente mais assíduo e seu interlocutor mais próximo, que se espantava como Mário era informal, entregue ao outro, altamente pessoal nas cartas, e algo distanciado e formal em pessoa. Essa pessoa, que queria harmonizar o Brasil pela superação das distâncias sociais, que se oferecia em sacrifício, quase em imolação, por um projeto civilizatório inspirado nas artes eruditas e populares, que queria tanto carregar quanto tocar o piano da cultura nacional – como se pudesse ser, entre outras coisas, o Humboldt (o viajante pesquisador erudito) e o Goethe (o poeta pensador totalizante) –, tinha que conciliar em si mesmo dualidades enormes, íntimas e públicas.
Altamente polida na pronúncia, a entoação de sua fala mostra-se afetada nas subidas e descidas da voz, ao mesmo tempo afeminada e formal, em seu registro abaritonado, indicando uma sexualidade esquiva, feminina e ainda assim mais ambígua do que isso, contida e à flor da pele. Somada ao preciosismo datado dasua dicção de paulista bem-educado, ao tom sentencioso das frases, sem prejuízo da desenvoltura, a música da fala sugere o dândi encarnado no “mulato pernóstico”, contido na fórmula explosiva de um homem sério e estudioso que não deixa um segundo de ser o insofrido (palavra recorrente nele), no sentido de arrebatado, fogoso, inquieto e, como ele mesmo disse certa vez, dotado de “uma [pan] sensualidade monstruosa”.

Todo esse complexo pessoal está ligado certamente a uma família de origem muito peculiar e anômala, mas paradoxalmente sintomática e representativa de certos segredos típicos da sociabilidade brasileira. Ocorre que Mário de Andrade era neto de uma figura de prol do final do Segundo Reinado, o jurisconsulto Joaquim de Almeida Leite Moraes, que em 1881 fora presidente de Goiás (investidura de Estado correspondente à que entendemos atualmente como a de governador) com a missão de implantar uma reforma eleitoral na região, e autor de Apontamentos de Viagem. De São Paulo à Capital de Goiás, desta à do Pará, pelos Rios Araguaia e Tocantins, e do Pará à Corte. Considerações Administrativas e Políticas. O título caudaloso do livro remete a um homem de certa envergadura política e intelectual, filho de fazendeiro, professor de direito, deputado liberal e jornalista, com acesso a círculos do poder monárquico e prestigiado além de tudo pela aura aventureira de sua viagem pelos Brasis interiores, cujo roteiro desatrelado não deixa de sugerir proezas macunaímicas. Pois bem, esse avô presidente era casado com Ana Francisca, filha de uma lavadeira, e mulata.
A crítica não tem dado atenção a esse detalhe gritante pelo que tem de incomum e pelo que esconde de comum. Na cena social originária da família de Mário de Andrade dá-se o casamento inusitado do patrão com a empregada, da elite com o povo – isso no longínquo ano de 1857. Esse fato corresponde na verdade ao desfecho inusual de uma situação usual: o estudante de direito engravida a moça pobre, a filha da lavadeira que vai entregar a roupa limpa na moradia do patrão. Ao contrário do costume senhorial, que manda abandonar a mulher de condição social inferior, e grávida, a sua própria sorte, ou então acomodá-la num silêncio remunerado e incógnito, Leite Moraes, num gesto de integridade que teve certamente seu custo, e onde entram parcelas insondáveis de honradez e amor, casa-se com Ana Francisca Gomes da Silva.
Tal “anormalidade”, digamos assim, é duplicada quando, mais tarde, Leite Moraes faz casar sua segunda filha, Maria Luísa, com seu secretário particular, o guarda-livros Carlos Augusto de Andrade, que já o acompanhara fielmente como um escudeiro na viagem pelos interiores do Brasil, e a quem ele se refere, no livro, como “quase filho, único pedaço da família” que traz junto de si. Este, que veio a ser o pai de Mário, era de origem social modesta, não reconhecido pelo pai biológico e, para complicar, sua mãe solteira, Manuela Augusta, era prima em algum grau da mulher de Leite Moraes, o que envolve Carlos Augusto num laço parental sanguíneo com sua sogra e sua esposa – a mãe de Mário. Mais improvável ainda, dado o paralelismo cruzado entre o ramo paterno e o ramo materno, o pai de Mário era filho de um certo Pedro Veloso – estudante de direito e colega de Joaquim de Almeida Leite Moraes –, que também emprenhou uma moça pobre, a prima de Ana Francisca, com quem, no entanto, não se casou, e cujos filhos não assumiu (no caso, eram dois).
Em outras palavras, Mário de Andrade é um produto paradoxal da exceção e da regra, no país escravista mestiço (com ênfase na conjunção aditiva), resultante de um gesto do avô presidente, que não só oficializa por meio do próprio casamento, em pleno Segundo Reinado, o impulso sexual extraclasse, como corrige a posteriori, digamos assim, a inconsequência do colega de escola e de posição social, através do casamento da filha. A estrutura familiar guarda com isso um desusado cruzamento de classe, raça e parentesco, esquisito perante os padrões de elite com os quais convive, como se adiantado para seu tempo, ou estranho a ele, mas profundamente sintomático da experiência social brasileira, à qual está preso, e em que todos os elementos, entrelaçados e tensionados, permanecem numa zona velada, cercada de tabu.
Introjeção das relações de favor na ordem familiar formal, em que o avô presidente casa a filha com o agregado, que figura como filho simbólico dele e que é primo dela, numa espécie de incesto social com mestiçagem aparentada das duas partes (mulatice “da maior mulataria” que, como de hábito no meio tradicional brasileiro, não se admite propriamente como tal): tudo isso constitui o inusitado esquema familiar que tem em Mário o seu vértice mais problemático e secreto. Pode-se dizer, em língua marioandradina, que há em tudo isso uma taxa altíssima de desvio e sequestro – termo recorrente em Mário para traduzir o conceito freudiano de Verdrängung (recalque), no sentido de um conteúdo de verdade que se mantém inconsciente, por ser intolerável para a consciência.

Ofato é que sobra para ele, desde cedo, na família, o papel incômodo do mal-amado – o feio, o complicado, o obscuro –, aquele que traz à tona, por sua simples existência, os conteúdos ousados e desusados que a família silencia. Na verdade, esse complexo forma um segredo maior do que a famigerada homossexualidade, pois se encontra numa zona muito menos formulável, mesmo para a crítica. Mário é o segundo entre os três irmãos homens (a caçula da família é uma menina). O mais velho, Carlos, advogado e político, trilhará o caminho do avô ilustre, a sua imagem e semelhança, e virá a ser uma figura importante do Partido Democrático, que se propõe como renovação política da burguesia paulista. O mais novo, Renato, descrito na memória familiar como belo e loiro, desponta como promessa fulgurante de pianista virtuose, mas morre muito cedo de uma doença tão fulminante quanto misteriosa. Destituído do horizonte da realização e do horizonte da promessa, espelhado sozinho num pai sem pai, que não reconhecia seus esforços poéticos e com quem trava uma espécie de reconhecimento atravessado e insustentável para ambos, o jovem Mário, sendo a própria encarnação ambulante de um segredo tácito, está “encurralado entre duas maravilhas”, o irmão mais velho e o irmão mais novo.
A expressão “encurralado entre duas maravilhas”, aplicada a um irmão intermediário que é desqualificado, da perspectiva da família, perante dois outros que prometem realizar seus mais altos anseios, é de Jean-Paul Sartre falando de Gustave Flaubert, em seu monumental O Idiota da Família, ensaio inacabado em que tenta, ao longo de mais de 2 mil páginas, responder à pergunta: “O que se pode saber de um homem?” Gilda de Mello e Souza, excepcional ensaísta, que lia esse livro de Sartre pensando certamente em Mário, seu primo um quarto de século mais velho, em cuja casa ela viveu na juventude, costumava apontar um episódio crucial para ele ter se tornado quem foi. Em torno dos 18 ou 19 anos, Mário estudava desenfreadamente piano, tentando superar aos trancos e barrancos as falhas da sua formação como instrumentista, pretendendo tornar-se um virtuose. Esse afã musical envolvia, quisesse ele ou não, uma competição velada com o talentoso irmão mais novo. A repentina morte deste o lançou no abismo da culpa, numa “neurastenia negra” que ele curtiu num período expiatório na fazenda do tio Pio, em Araraquara, de onde voltou morto para o virtuosismo musical e renascido – qual novo Renato –para a literatura, como autor de seu primeiro poema adulto.
A relação de Mário de Andrade com a literatura será sempre inseparável desse desejo de música que ela encobre e realiza (não só glosando e citando gêneros musicais como o oratório, a rapsódia, os improvisos, cocos, modas e emboladas, como sendo atraída por glossolalias, línguas inventadas e palavras sem nexo, ritmadas, que encontrava nos cantos populares e na música de feitiçaria). Mas o seu horizonte de sucesso estará sempre arruinado ou problematizado, na interpretação de Gilda de Mello e Souza, por um mandato de fracasso: reconhecido, ou mesmo consagrado, em tempo relativamente precoce, a vida será para Mário uma transformação permanente de todos os fracassos em realizações (por um esforço continuado no limite das próprias forças, com sacrifício das inclinações mais livres e gratuitas), e uma reversão constante das realizações ao mandato do fracasso (já que submetidas a uma autocobrança implacável).
Inadaptado ao modelo familiar de identificação masculina, Mário encontrou respaldo, aconchego e mesmo salvação, pode-se dizer, no nicho feminino, nas mulheres de quem nunca se separou até o fim da vida: mãe, tia, irmã, secundadas pela fiel empregada negra. Quando saíram do Largo do Paissandu, depois da morte do pai, a mãe tinha comprado um conjunto de três casas geminadas na rua Lopes Chaves – uma destinada a ela mesma, outra ao filho mais velho, e a terceira reservada a Mário, quando este se casasse. A casa designada para o lar conjugal ficou à espera do poeta solteirão que jamais deixou a casa da mãe. No 2º andar do sobrado, os encontros efervescentes com os amigos modernistas se alternavam com a introspecção da escrita e da pesquisa, convivendo com o mundo tradicional, praticamente provinciano e oitocentista, das mulheres na cozinha e na costura, que se desenvolvia no andar de baixo, onde se davam também as aulas do professor de piano. Fora da casa vigorava a boemia e a vida amorosa e sexual secreta, irredutível não só à ordem familiar, às convenções e às hipocrisias do tempo, como aos clichês atuais que gostariam de enquadrá-la no modelo gay estrito.

Aidentificação com o mundo feminino e maternal, forte o suficiente para resistir durante a vida inteira, com raízes na infância mais profunda, deixa suas marcas indiretas num poemeto inventado e exibido pelo piá aos 10 anos de idade, “para grande hilaridade da família”. Num patoá todo próprio, uma verdadeira glossolalia cantada, com a melodia trombeteando um salto ascensional do qual resultava um acorde perfeito maior, a cançoneta anunciava:
Fiorí de-la-pá!
Jení – transféli guidi nus – pigórdi,
Jení – trans...féli – guinórdi,
Jení!
Essa invencionice poético-musical, feita de palavrinhas não só melodizadas mas puramente sonoras, com seus significados apenas sugeridos ou entremostrados, permaneceu reverberando nele como uma nota pedal (como se diz em música) que continuasse soando afetivamente da infância ao fim da vida. O impacto emocional era tão mais intrigante e enigmático, segundo diz ele, “pela coincidência das sílabas” contida nessa palavra Jení, por três vezes repetida, sendo “absolutamente certo que jamais houve em minha vida nenhuma Genny”.
O comentário cheira a denegação, como se diz em psicanálise, quando uma negativa, em suposta resposta a uma afirmação que ninguém fez, equivale na prática a uma afirmação: no caso, ninguém está dizendo, senão ele mesmo, que a palavra que se repete como um bordão, no poemeto, está associada à figura de uma mulher misteriosa e inapreensível. Não é preciso ir muito longe, além disso, para ver que há sim uma Genny na vida de todo mundo – a Genitrix, a mãe-genitora. O primeiro versinho, por sua vez, pode ser lido como uma variante polilinguística de flor do pai, onde se confundem os gêneros masculino e feminino (“fiorí de-la-pá”).
Sem querer cair num freudismo requentado, ouço na cantilena um motivo triangular, edípico, encenado no conluio entre palavra e música, em que a linguagem verbal (que costumamos chamar de língua materna, mas que traz efetivamente o timbre simbólico do pai) parece estar chamando pela voz da mãe – o canto sem palavras onde o sentido apenas aflora. Por tudo isso, ela soa como uma pequena partitura inconsciente na qual se pode ler uma invocação ao enigma da sexualidade, tendo a entidade-mãe como estribilho, oscilante sem resolução entre o masculino e o feminino, na fronteira da palavra-música.
Voltando à constelação familiar como um todo, essas relações sociais e parentais em que os conflitos se colocam e se disfarçam, encarnados num mulato que não diz seu nome, fazem da psicologia de Mário de Andrade um caso singular e interessantíssimo de interiorização cabal das ambivalências brasileiras, em planos sociológicos, antropológicos e psicanalíticos. A distância estrutural infranqueável entre brancos e negros, proprietários e escravos, com as violências que a conformam, confirmada e dissolvida difusamente na sexualidade mestiçante, é recoberta pelos dispositivos aliciantes e acomodatícios do favor. Ali a distância social e cultural, de classes e de raças, se suspende por um momento e volta a vigorar, guardando literalmente em seu DNA a promessa de uma fusionalidade recalcada por baixo da cisão social.
Não surpreende que o desejo pessoal se divida em Mário entre o amor platônico pelas filhas da elite (um pouco por Tarsila do Amaral, muito por Carolina da Silva Telles, a filha de dona Olívia Guedes Penteado que inspirou os poemas de “Tempo da Maria”) e um amor sexualizado por homens e mulheres do povo, sugerido em muitos pontos da poesia, no “Carnaval carioca”, nos “Poemas da negra”, nas fugas noturnas do “Canto do mal de amor”. Semse esgotar, em absoluto, na motivação biográfica, a libido contracanta em segredo com o projeto de um Brasil onde se suspenda a oposição entre elite letrada e povo musical criador, que anima quase toda a obra, embora marcado por aquela divisão sintomática entre a dicção culta e a dicção popular que identificamos na voz.
Por tudo isso, Macunaíma baixou em Mário como uma entidade em seu cavalo de santo, num repentismo em transe, mesmo considerando tudo o que tem de consciente e construído, depois de alguns anos de pesquisa intensiva da cultura popular. No livro as defesas se derretem, deixando ver o fundo fusional, real e imaginário, de que é feito o país, em sua crueza feérica. Não à toa sua primeira versão foi escrita em seis dias e seis noites. Talvez ele tenha mirado numa coisa e acertado em outra, a julgar pelo quanto de dificuldade teve em avaliar o próprio livro, que considerava uma espécie de “obra-prima malograda”.
O esperável, diz Bandeira em carta, seria “uma bruta caceteação em cima da gente”, com esse negócio de “lendas do Amazonas”. Em vez disso, o poeta pernambucano recebe com regozijo a surpresa das “sacanagens” inusitadas e as “histórias de bichos” que vão revelando aos poucos, e inclusive para seu autor (como atestam os prefácios nunca publicados), outras imensas consequências interpretativas. Convenhamos que semelhante eclosão não poderia acontecer a um poeta pesquisador a frio, muito menos a um folclorista convencional ou a um nacionalizador da cultura que não tivesse um imaginário de fundo encharcado pelas estranhas peculiaridades do país patriarcal, escravista e mestiço, medusado pelo hibridismo em que está imersa uma população não letrada à margem do Ocidente, e movido pelo pulo do gato.
Macunaíma fundiu o motorzinho silábico da fala marioandradina, dando lugar à música latente de uma psique coletiva complexa, cuja melhor definição talvez tenha sido dada por ele mesmo, quando, num momento de distração de suas obsessões folclóricas, se deu conta da genialidade deAmélia, o samba de Ataulfo Alves e Mário Lago: “Você já viu coisa mais humana e misturadamente humana? Tem despeito, tem esperteza, tem desabafo, tristeza, ironia, safadeza de malandro, tem ingenuidade, tem pureza lamacenta: é genial. Acho das manifestações mais complexas que há como psicologia coletiva.”

Esse mesmo espectro de disposições de espírito, embora em tom e alcance muito diferentes, também pode ser reconhecido em Machado de Assis, que modula analiticamente, com suprema ironia, o tanto que há de despeito, esperteza, desabafo, tristeza, safadeza, ingenuidade e pureza lamacenta na intimidade da vida brasileira. Não os estou comparando como escritores (não só porque Machado é incomparável, mas porque parecia aos modernistas, e especialmente a Mário, um escritor alheio ao Brasil, e seu oposto). Mas Machado e Mário, os escritores que mais foram investidos, talvez, da posição de representantes da frágil instituição literária no Brasil, no período já extinto em que a literatura teve um papel central na cultura, são mulatos através dos quais o Brasil se totaliza, vindo cada um de direções sociais opostas. Pois, no Brasil tradicional, o mulato timbra por ser esse nem rejeitado nem admitido que guarda o segredo inconfessável do todo.
Machado é o não rejeitado que morre consagrado como presidente eterno da Academia Brasileira de Letras, mas é também o não admitido cuja obra não contém uma única referência explícita à figura de um mulato adulto e livre, como ele mesmo. Seu itinerário social, se despido da excepcionalidade literária, lembra um pouco o do pai de Mário de Andrade: ambos mulatos pobres e autodidatas que trabalharam como tipógrafos, beneficiaram-se do favor como alavanca da ascensão, chegando à posição de jornalistas e consolidando a partir daí um lugar de reconhecimento na classe média.
Em sua trajetória, Machado radiografou sibilinamente como ninguém o funcionamento do todo, visto de baixo, do alto, e do “ponto de vista de Sirius”. Já Mário, com seu fascínio pelo mundo mestiço e pobre do qual vem, em sua porção mais íntima, e do qual está afastado socialmente, mergulhou de volta no mundo popular pelas vias sublimadas da cultura e pelas vias diretamente libidinais da sexualidade. Conteúdos de verdade complexos, que são do país, sequestrados na pessoalidade dos dois, cantam surdamente ou estridentemente nas respectivas obras. Se um flagra as ideias fora de lugar, mas não só, o outro escancara o lugar fora das ideias.
Por isso mesmo, os grandes saltos literários na vida de Mário de Andrade se dão em forma de explosões. Macunaíma é uma explosão. Pauliceia Desvairada foi definido por ele mesmo como uma “bomba” que, se não explodisse, explodiria com ele. Pauliceia faz parte do primeiro grande projeto, partilhado com o grupo modernista da vanguarda, flagrando São Paulo – em ritmo de desrecalque desvairista – como a cidade arlequinal das multidões, “risco de aeroplano entre Mogi e Paris”, levada nas asas da “Minha Loucura”, e conduzindo no final a um Vale do Anhangabaú conflagrado pelos embates ideológicos e existenciais entre modernistas e passadistas.
O segundo grande projeto, sustentado sobretudo por ele, é o da aliança entre a arte erudita e a cultura popular, aliança de classes includente e desigual, de fundo algo paternalista e romântico retardatário, embora modernista: se o espírito da nação está nas criações anônimas e coletivas do povo, trata-se de integrar estas à arte erudita, para infundir caráter civilizatório a uma cultura cindida e sem caráter próprio (incapaz de, em sua história pregressa, incluir um povo escravo em seu projeto de nação). Investido da posição de diretor de ideias e organizador da cultura, Mário concita os artistas, e em especial os músicos eruditos, com doses de autoridade e de autoritarismo, a encontrar nas formas da cultura popular folclórica, rural, anônima e coletiva, elementos decisivos para sua criação nacionalizante. Voltado por princípio para a autenticidade do folclore rural, livre da “influência deletéria do urbanismo”, Mário, embora atento a Pixinguinha, não deu maior peso à música popular sua contemporânea, aos poetas da canção como Noel Rosa, Ismael Silva, Wilson Batista, Dorival Caymmi. Não entreviu ali, a não ser em relances, como naqueleinsight sobre a genialidade de Amélia, uma trilha original e de enormes consequências para a cultura do país, que só a bossa nova permitiria ver, a posteriori.
O terceiro projeto, gestado sob as pressões políticas que apontam para a Segunda Guerra Mundial e que exigem o alinhamento ideológico dos intelectuais, além de influenciado pelos jovens intelectuais comunistas com quem convive no Rio de Janeiro nos anos de 1938 a 1941, envolve o engajamento do artista na luta de classes. Em vez de explodir como uma bomba, como os outros, o projeto instila-se nele como um ácido que o corrói por dentro: reconhece-se pequeno burguês de origem, aristocratizado pela cultura e proletário por identificação ideológica. Esse drama de classe em gente não tem como participar de filiação partidária, o que não o exime de sentir-se culpado. Embora sucessivos, os três projetos não se eliminam mas se superpõem como um arpejo dissonante, cada um pressionando o outro. É o que explica a avaliação crítica e autocrítica do movimento modernista que Mário de Andrade faz numa polêmica conferência em 1942, por ocasião dos vinte anos da Semana de Arte Moderna.

Mário e Oswald de Andrade são como duas paralelas que se desencontram no infinito para se reencontrarem no enigma irresolvido do Brasil.
Oswald fez fama como dilapidador de fortuna – “fortuna mal adquirida”, como ele sabia e autodenunciava no Serafim Ponte Grande. Seu pai havia enriquecido com a especulação imobiliária estrutural e congênita pela qual a metrópole paulista se formou, loteando a parte da região de Pinheiros, então Cerqueira César, que vai da avenida Doutor Arnaldo ao Largo da Batata, previamente valorizada pela linha de bonde que descia a Teodoro Sampaio. Boêmio artista e cosmopolita nos anos 20, desfrutando em vaivéns entre Brasil e Europa os privilégios da condição social e o convívio dos salões de vanguarda lá e cá, Oswald dá uma guinada de 180 graus com a crise de 1929, que o leva a aderir ao Partido Comunista para, mais tarde, dele se afastar e retomar um pensamento utópico de base antropofágica. Sua trajetória é acidentada e povoada por suas espetaculares traições de classe. Sequestro para ele não significa o íntimo remoer dos recalques, como em Mário, mas, num sentido bem mais literal e ativo, os raptos sensacionais das moçoilas por quem se apaixonava em seus arroubos juvenis, e o rasgo amoroso e intelectual com que aliava mulheres, de casamento em casamento, a seus mais caros projetos artísticos, como Tarsila para o modernismo pau-brasil e a antropofagia, Pagu para a militância.
Enquanto isso, Mário de Andrade é o professor de classe média, posto entre a família feminina e a vida secreta, boêmia e maldita nos meandros da Pauliceia ou de seus períodos no Rio, sem nunca ter ido à Europa (“para não esculhambar a inteireza do nosso caráter”, diria Macunaíma). Se Oswald é o homem que corta os nós com canivete, sem pejo de romper consigo mesmo, como se não tivesse interioridade nem reputação a zelar, Mário é o dilacerado internalizador de suas próprias contradições, o agônico e fiel traidor de si mesmo (no sentido de que volta a culpa sobre ele próprio).
As opções artísticas e ideológicas de cada um dos dois escritores ao longo dos anos 20, somadas e multiplicadas pelas diferenças de personalidade e de temperamento, além das piadas ferinas que Oswald se permitia fazer sobre todo mundo, levaram ao rompimento irreversível de Mário com Oswald, que se dá no ano convulsionado de 1929. Manuel Bandeira, cujas cartas são cristalinas como sua poesia, dizia a Mário, já em 1924, sobre as intrigas que rondavam os dois: “Tenho ouvido coisas tremendas sobre o caráter de Oswald. É possível, inclino-me a crer que sejam verdade. Mas Oswald tem uma perigosa e deliciosa ingenuidade nos olhos. Dá-me a impressão de uma criança pervertida. Acredito mais na amizade dele para contigo do que na dos outros.” Dois anos depois, Bandeira continua apostando no prazer perverso polimorfo que enxerga naqueles olhos infantis, com a veia cruel e anárquica que está contida neles: “Do Oswald só há dois meios de se defender: ou fazer mais blague e mais intriga do que ele ou então afastar-se. Ambas as coisas muito difíceis, porque: Que sujeito engraçado! Que sujeito cínico! Que filho da puta gostoso! Eu confesso que acho uma graça enorme nas raivas e nos sofreres que Oswald te dá. Oswald não se toma a sério. Oswald goza-se.”
Nessa altura, o entendimento ventilado por Bandeira das piadas ferinas de Oswald poderia ser traduzido, em termos oswaldianos, como uma modalidade antropofágica em que os conteúdos recalcados da fofoca literária, trazidos à tona, transformam tabus em totens, exercendo uma agressividade chistosa que não abandona seu gozo lúdico, sem se importar com os estragos que produz. Por isso mesmo, Oswald esquecia suas maldades como se confessasse candidamente: “Eu menti!” Sabe-se, a propósito, que o episódio em que Macunaíma diz essa frase é baseado numa situação verídica em que Oswald a disse, com a mesma encantadora cara de pau do “herói da nossa gente”. Oswald funcionava, então, como uma espécie de Macunaíma de carne e osso que se voltasse anarquicamente contra seu autor.
O fermento dessa atmosfera chistosa vai azedar definitivamente com a crise econômica e política, que radicaliza as posições e as põe em confronto agudo. O gosto pela piada numa época de divisão ideológica perde o tom irresponsável que poderia ter tido em outro momento, e que Bandeira buscava salvaguardar. A Revista de Antropofagia promove uma radicalização anarcoutópica da herança modernista, à qual se seguirá a ruptura comunista de Oswald, enquanto a posição política de Mário, associada familiarmente ao Partido Democrata, é a de uma dramatizada conciliação pela cultura. Mário é valorizado pelos antropófagos como autor de Macunaíma, ao mesmo tempo que, criticado por sua política cultural vista como conciliatória e traidora do modernismo, é objeto de uma saraivada de chistes obscenos e agressivos, que oscilam entre serem carnavalescos e para lá de incorretos, entre os quais se incluem “Miss Macunaíma”, “boneca de piche” e algo assim como “sósia de Oscar Wilde pelas costas” – além de outros piores, que Oswald semeava sem publicar. Mário rompeu com Oswald, sem nunca mais aceitar as tentativas de reaproximação por parte deste.

Macunaíma é uma obra que estamos longe de aceitar em sua complexidade, inclusive pelo fato de que o protagonista, tendo se transformado em folclore urbano, vestiu o estereótipo chapado dos tipos. Mário encontrou a personagem Macunaíma (que significa “o grande Mau”) nos mitos Arecuná e Taulipang, do extremo norte do Brasil,tal como registrados pelo etnógrafo Theodor Koch-Grünberg. As ambivalências do herói lhe saltaram à vista como uma condensação de traços brasileiros, encontrada como se miraculosamente pronta no fundo da mata virgem amazônica.
A famosa “falta de caráter” do herói tem no mínimo duplo sentido: o da irresponsabilidade de quem, literalmente, não responde pelo que faz, e o da marca de um povo novo formado por sucessivas deculturações e aculturações, que não se reconhece como uma identidade, embora constitua uma entidade que não sabe de si. O proto-brasileiro não é nem o europeu das decantações milenares, nem o inglês transplantado para a Nova Inglaterra norte-americana, tampouco o nativo derrotado pelo colonizador que testemunha com altivez uma civilização pré-colombiana, como nos Andes ou no México. Ele é o mestiço sem passado nem futuro, à mercê de algo que o nomeie, oscilante entre, por um lado, a gatunagem sem esperteza, o desapreço à cultura autêntica, o improviso, a fuga do real pelo imaginário, e, por outro, a esperteza versátil, o senso da festa e uma disposição original para adaptações inesperadas – tudo banhado em violência e magia.
Num primeiro momento Mário dedicou o livro a José de Alencar, mas depois rasurou a homenagem, substituindo Alencar por Paulo Prado, autor do pessimista Retrato do Brasil. A oscilação da dedicatória já é índice de um dilema, próprio dos intérpretes da ambivalência brasileira, dilema que pode ser resumido na frase do historiador Fernando Novais sobre Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda: “Se o Brasil se moderniza deixa de ser Brasil; se permanece Brasil, não se moderniza.”
O Brasil é essa droga, com poderes salvíficos e letais, como os remédios que são venenos, como a gangorra só aparentemente simples de onde o herói empurra seu antagonista, o gigante Venceslau Pietro Pietra, para dentro da panela de macarronada. Em Mário de Andrade o sentimento do Brasil se alterna entre o compromisso público do organizador da cultura, empenhado em mudarmodernizar civilizar o país, e o dionisista que quer abandonar-se ao Brasil, entregue à música letárgica que emana da experiência dos ritos populares, como quem se abandona ao canto que dança na boca do catimbozeiro.
Nessa gangorra, Macunaíma vence seu primeiro grande antagonista, Pietro Pietra, depois de várias escaramuças, mas é derrotado por uma força cósmica e feminina muito mais insidiosa: Vei, a Sol. Como é sabido, Venceslau Pietro Pietra está de posse, numa mansão na rua Maranhão, em Higienópolis, em São Paulo, de um amuleto tribal que pertenceu ao herói por direito simbólico: a pedra muiraquitã, que lhe foi dada por Ci, a rainha das Icamiabas amazônicas. Em poder do gigante,que é também um imigrante comerciante novo-rico, a muiraquitã perde o valor de uso mágico e se torna a mais preciosa das pedras da coleção de Pietro Pietra, em sua casa-museu, como mercadoria sem preço, com seu valor suspenso e como que convertido na aura das obras de arte. Depois de várias refregas e artimanhas, Macunaíma resgata a pedra, como se fosse ela mesma o talismã da cultura popular, salvando-a do mercado e do museu. Mas não tem para onde ir, pois parece não haver lugar nem para a pedra nem para ele, que não é mais selvagem nem citadino, nem moderno nem pré-moderno.
Entretido no canto de nostálgicos e melancólicos mantras indígenas, verdadeiras muiraquitãs sonoras, o herói topa com Vei, a Sol, que, chicoteando-lhe o corpo com lambadas de calor, obriga-o a mergulhar numa lagoa onde o aguardam piranhas mortíferas e a Uiara. Sai da água estraçalhado, para sempre sem a muiraquitã, e desistido do mundo.
A motivação de Vei se deve a um antigo sentimento de vingança: punir o herói por não ter pedido em casamento uma de suas três filhas, tal como ela lhe oferecera e tal como ele se comprometera a fazer. Em vez de escolher uma das três cunhãs – cujas carícias prévias ele já tivera o privilégio de gozar, enquanto entoava malemolente o “Mandu Sarará” no embalo de uma jangada –, Macunaíma, mal chegado à terra firme, se esquece do combinado e vai transar irresponsável e alegremente com uma portuguesinha.
O episódio merece um comentário a mais, para ilustrar brevemente as camadas de significação complexas do livro. Num pequeno texto intitulado “O tema dos três escrínios”, Freud fala da recorrência, em diversas tradições mitológicas e literárias, da situação em que um herói se vê obrigado a escolher entre três mulheres, com a particularidade enigmática de que, nessas tradições, ele sempre fica com a terceira, sob pena de consequências trágicas. As duas primeiras tendem a ser belas e brilhantes, enquanto a última, silenciosa e cinzenta, é a borralheira, a obscura. De acordo com Freud, entre as três “mulheres” na vida de um homem, a mãe é a primeira, a desde sempre já dada; a amada é a segunda, a elegível; e a morte é a terceira, a sem escolha. O tema recorrente da escolha da terceira constitui-se numa manobra de “astúcia simbólica” graças à qual o herói, ao escolher aquela que não tem escolha, torna seu, e elegível, o que é inelutável e fatal. Como nos sonhos, que costumam falar pelo avesso, a inversão permite negociar com o inegociável – o limite absoluto. A renúncia heroica ao que aparece como mais gratificante, contida na escolha da terceira, revela-se a condição necessária para a realização do amor, quando a “cinzenta” se transforma na bela amada. Em termos mais simples e diretos: só ama, ou só vive, quem aceitou a morte.
Em Macunaíma a fábula analisada por Freud tem um destino desviante, que não deixa de ser cruelmente original: o herói não escolhe nenhuma das três filhas da Sol, que aliás não se apresentam em ordem numérica reconhecível; escapole para uma quarta que não tinha entrado na história, e fica exposto à vingança da Vei, que o empurra sem defesa para a lagoa fatídica que lhe reserva o dilaceramento e a morte (para este mundo). A não escolhida retorna sem escolha. Se em todas as culturas conhecidas, a acreditar no pai da psicanálise, o herói escolhe a terceira, por que, perguntaríamos nós, só ele – o espertinho– não escolhe? Justamente ele – o enfant gâté da velha Sol, que teve o privilégio de gozar simultaneamente os jogos preliminares eróticos com as três cunhãs – foge à decisão e busca uma quarta, como se ainda pudesse, num movimento demasiado astucioso, driblar a fatalidade do jogo, isto é, a da escolha, e a fatalidade da morte, que não tem escolha.
Como se vê, Macunaíma não se resume ao estereótipo do herói preguiçoso e festeiro. Mais do que uma pretensa descrição genérica do país, de seu caráter ou falta dele, o livro é uma rapsódia vivaz e agônica sobre o enigma desse destino suspenso, escrito por alguém que riu sozinho, que gargalhou e chorou pela humanidade brasileira, enquanto o escrevia, naqueles dias e noites frenéticos.

Apoesia de Mário é sabidamente inquieta e irregular – nem límpida como a de Bandeira, nem nítida como a de Oswald, nem clara e cortante como a de Cabral, nem densa e reflexiva como a de Drummond. Juntamente com os contos sobre as primícias e as vicissitudes sexuais infantis, nela se encontra a dimensão mais confessional, que o crítico João Luiz Lafetá estudou em Figuração da Intimidade. Um tema recorrente nessa lírica, em particular no livro A Costela do Grão Cão, é o da atormentada deriva pela cidade à noite, cuja obscuridade imagética não esconde a obsessão da caça pansexual solitária.
Lafetá interpretou esse dilaceramento íntimo como expressão das pressões sombrias do momento político, no início dos anos 30, sem entrar no mérito das ambivalências sexuais aí contidas. Como mostra o crítico, as tensões se aplacam no Livro Azul, que contém o “Rito do irmão pequeno” e o “Girassol da madrugada”, poema que se refere a diferentes amores ao longo da vida (“Tive quatro amores eternos.../O primeiro era a moça donzela,/O segundo... eclipse, boi que fala, cataclisma,/O terceiro era a rica senhora,/O quarto és tu... E eu afinal me repousei dos meus cuidados”). O segundo da lista se referia explicitamente a um amante masculino, que Bandeira aconselhou Mário a converter em linguagem enigmática. O repouso plácido e narcísico atingido com o quarto amor, o tu do poema, cuja referência ao gênero fica suspensa, não deixa dúvida sobre o seu caráter homoerótico (“Carne que é flor de girassol! Sombra de anil!/Eu encontro em mim mesmo uma espécie de abril/Em que se espalha o teu sinal, suave, perpetuamente”).
A verdade é que o drama sexual íntimo é cercado da miséria reinante no período anterior aos anos 60 e 70, no que diz respeito ao homoerotismo: este é posto naquela ordem do inconcebível que cabe fingir não existir, ao mesmo tempo que é alvo do rumorejo de todas as bocas vadias. Somada àqueles segredos já nossos conhecidos que a família abafa e esconde de si mesma, a vida sexual de Mário ocupa essa zona de sombra cercada de interdição, especulação e curiosidade mal resolvida. O mais recente elo dessa cadeia é a litigiosa e recente abertura ao público de um trecho de carta de Mário a Bandeira, sequestrado postumamente da correspondência dos dois escritores por pruridos e pudores ligados a tudo isso, depois de uma ação movida por um jornalista para que a Fundação Casa de Rui Barbosa revelasse o conteúdo da carta na íntegra, em nome do direito à informação.
Havia a expectativa de que a carta contivesse revelações guardadas a sete chaves sobre parceiros amorosos – a confirmação da homossexualidade acompanhada finalmente de uma espécie defulanização da vida erótica secreta do escritor. Uma vez aberto, no entanto, o trecho soa mais como a famosa carta roubada de Edgar Allan Poe, onde o que está em questão não são os fatos escondidos, mas o próprio lugar, invisível de tão óbvio, em que a carta se oculta. Mário abre com o amigo o assunto das fofocas que o cercam (“o que se fala de mim e não desminto”), mas se pergunta sobre “em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria para nós ambos [...] comentarmos e eu elucidar você sobre minha tão falada (pelos outros) homossexualidade”. Considera que de nada vale mostrar “um muito de exagero que há nessas contínuas conversas sociais” – nem para Bandeira, que não é alguém que se ocupasse de “intrigas”, e que precisasse defender o amigo, nem para si mesmo, já que “em toda a vida tem duas vidas, a social e a particular”, e a exposição desta está condenada à “socialização absolutamente desprezível de uma verdade inicial”.
Em suma, a mentalidade reinante, fechada à admissão natural da diversidade erótica, não é ambiente para abrir a vida pessoal. Mais que isso, pode-se dizer que ninguém sabe a vida sexual de ninguém: o que temos são construções, com muito de ficcional, que trazem o enigma da sexualidade – impenetrável, porque opaco e resistente às reduções sociais de sentido – às bordas codificadas e imprecisas da vida pública, que busca reduzi-lo à legibilidade imediata da fofoca.
Mário confessa ao amigo que “um indivíduo estudioso e observador” como ele próprio há de ter “catalogado e especificado” um assunto “tão decisivo” para si mesmo, trabalhando interiormente suas implicações, buscando “normalizá-lo” (o mesmo termo que usava para a sistematização das manifestações culturais). Diz que se porta “com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua [...] e se saio com alguém é porque esse alguém me convida”. Comenta o tanto de cálculo que tem que investir nessa área da vida (“veja como tenho minha vida mais regulada que máquina de precisão”), mas garante que não sequestra sua sexualidade: “Os sequestros num caso como este, onde o físico que é burro e nunca se esconde entra em linha de conta como argumento decisivo, os sequestros são impossíveis.” Em outras palavras, se o comportamento disfarça estrategicamente suas relações pessoais, o corpo, que é real e irrecalcável, grita por si mesmo a verdade do sujeito.
O que se tem aqui, em suma, no avesso de um manifesto comportamental, é um testemunho íntimo sobre as agruras da autenticidade em condições adversas.

Pode-se dizer que Mário de Andrade abraçou os extremos polares da intimidade e do compromisso público. Sua poesia é a ferida exposta de uma subjetividade dilacerada, em que o desejo sexual torturante se exibe seja com ostentação, seja com disfarce, sempre recuando a revelação de seu enigma a um plano inapreensível, onde permanece como tal. As máscaras do cabotinismo, inerentes à constituição imaginária do sujeito, com seus demônios e vaidades, são também objeto de introspeção e análise, como se pode ver no artigo “Do cabotinismo”, contido emO Empalhador de Passarinho. Por outro lado, assumiu um compromisso público com o Brasil, a ponto de confundir seu destino pessoal com o do país, numa época em que essa ficção intelectual, sustentada pela ambição totalizante do campo literário, tinha poder de convencimento. É como se ele fosse guiado intimamente pelo sentimento de ser o portador do segredo mais íntimo, e por isso mesmo do destino mais público, do Brasil.
Pauliceia Desvairada e o movimento modernista foram para ele a primeira expressão dessa aposta ao mesmo tempo íntima e pública, logo convertida no mergulho na cultura popular e no reconhecimento do país, que desembocaram no Macunaíma. Mas, nos anos 30, foi a política que lhe bateu à porta e lhe abriu a perspectiva de uma ação institucional enquanto organizador da cultura. Durante a administração do prefeito Fábio Prado, Mário de Andrade ocupou o cargo de chefe do primeiro Departamento de Cultura criado no país, uma gestão que começou em 1935 e terminou traumaticamente em 1938. Nesses três curtos anos, expandiu a música de concerto diversificando os gêneros corais e de câmara, tirando-a do âmbito restrito da “pianolatria” que ele tanto criticara no primeiro período modernista; criou a Discoteca Pública para formação de ouvintes e ampliação de repertório, promoveu a biblioteca ambulante, a criação de parques infantis, o Congresso de Língua Nacional Cantada e a ambiciosa Missão de Pesquisas Folclóricas, enviada ao Nordeste – num gesto, pode-se dizer, de “bandeirantismo” cultural paulista – para recolher, grafar, gravar e filmar manifestações folclóricas (num sinal de que o departamento municipal, por meio do seu chefe-poeta, não economizava sua embocadura nacional).
O compromisso modernizante e civilizatório com a vida cultural da cidade o tomou completamente no período, enfrentado com o ânimo sacrificial de quem empenhava seu tempo criativo privado em nome de um benefício público. A substituição de Fábio Prado, já na vigência do Estado Novo, pelo prefeito-engenheiro Prestes Maia, avesso ao projeto do Departamento, resultou na demissão de Mário. Para ele, foi uma derrota profunda e sem paralelo. Além de representar a ruptura de um projeto de política cultural no qual jogou todas as suas forças, a experiência resultou em ressentimentos, ameaças verbais e físicas, acusações e insultos. Pediu emprestada a um parente mais velho uma bengala para se defender de eventuais agressões em lugares públicos, antes de partir para o Rio de Janeiro, onde amargou um exílio de quatro anos, e onde morava em 1940, quando se deu a gravação de sua voz pelo linguista Turner. As fotos posteriores revelam em seu rosto um envelhecimento desproporcional a esses poucos anos. Foi uma volta àquela espécie de “neurastenia negra”.
De certo modo, Mário teve a experiência inaugural, e nesse sentido cruelmente reveladora, da gestão de cultura, ou da gestão em geral no Brasil, marcada pela descontinuidade, pela inconsequência e pelo sentimento insuportável da fatalidade do desperdício. O diretor do Departamento de Cultura representava aquele lado de Mário de Andrade voltado contra a inconsequência macunaímica, empenhado em mudar, civilizar e democratizar o Brasil, que no entanto acusou contra si o golpe de um desfecho macunaímico, trágico e sem a face alegre do frescor irresponsável e lúdico do herói da nossa gente.
O fracasso político vem acompanhado de um estreitamento angustiante no horizonte de suas apostas: o projeto de uma cultura baseada na aliança entre intelectual e povo anônimo e rural sofre a pressão previsível da industrialização, da cultura urbana, da vanguarda internacional e cosmopolita representada, de um lado, pela chegada ao Brasil do atonalismo musical trazido por Koellreutter, e, de outro, pela canção popular de massas, permeável às influências estrangeiras que ele buscava evitar, e que guardava, no entanto, um mundo de riquezas e promessas não suspeitadas por ele.
Pode-se dizer que Mário de Andrade morreu de tudo isso. De volta a São Paulo, publicava semanalmente o rodapé “O banquete”, na Folha da Manhã, em que discutia, justamente, as contradições agônicas do papel social da arte, quando sofreu um enfarte fulminante, num domingo à noite, aos 51 anos. O último capítulo da série inacabada d’ “O banquete” chamou-se “A salada”, e falava da pasteurização nauseante da cultura de massas.

Algumas vozes da crítica literária consideram Mário de Andrade uma espécie de embuste intelectual promovido pela USP. Pautas jornalísticas guiadas pelos quatro princípios dominantes que norteiam atualmente a concepção mercadológica da cultura – vendagem, moda, comportamento e polêmica de superfície – se interessam exclusivamente pelo tema da sexualidade escandalosa e escondida, e pela afirmação óbvia, mas deslocada e insuficiente, de que ele não é tão bom poeta como os grandes do seu tempo. Sua figura consagrada, por sua vez, algo embalsamada e mantida em estado de santidade, ganha em ser tirada desse lugar, evaporando-se definitivamente nos céus para voltar a ser amada por nós de corpo inteiro.
Talvez não seja à toa que ele tenha reaparecido por esses tempos na forma de um espectro – o absolutamente ausente que se mostra presente a contrapelo, pelo acaso da voz descoberta e pela carta desvelada. A grandeza de seu fracasso, a atualidade de seu malogro, é o verso e o reverso do Brasil de hoje. Refiro-me ao vigor de uma vida literária testemunhada pela generosa franqueza da sua correspondência com Bandeira, com Drummond, e por essa grande história de amor enviesado que é sua relação com Oswald. E refiro-me a um projeto de vida que, com tudo que possa ter de datado, está dizendo no essencial, com o mesmo “brilho inútil” e potente das constelações e das obras de arte, que educação e cultura é o luxo para todos capaz de nos levar a proezas civilizacionais inauditas, em vez de se querer jogar de maneira mal disfarçada, com uma sanha também inaudita, a juventude pobre, negra e mestiça no esgoto das prisões. 
20 de outubro de 2015
JOSÉ MIGUEL WISNIK