quinta-feira, 26 de junho de 2014

AVATAR: A PALAVRA QUE DESCEU DO CÉU À TELA

O caso de avatar é curioso: da cultura analógica para a digital, a palavra se revestiu de novos sentidos e ganhou uma circulação com a qual, até então, nem podia sonhar.

Avatar é termo antigo, de origem religiosa: nasceu no sânscrito avatara – literalmente, “descida do céu à terra” – para designar cada uma das formas humanas ou animais assumidas pelo deus hindu Vixnu ao visitar a humanidade. Avatar era a materialização de uma força espiritual, o modo como ela se deixava ver.

Foi com esse sentido que avatar se materializou tardiamente nas línguas ocidentais: seus primeiros registros são de 1784 em inglês, 1800 em francês e, por influência deste, 1871 em português. A expansão de sentido que sofreu inicialmente nesses novos idiomas foi, ao mesmo tempo, restrita e vaga: virou uma metáfora erudita para “metamorfose” ou “transfiguração”, sobretudo no vocabulário dos poetas.

Nada prenunciava a explosão de popularidade pela qual avatar passaria na virada do século XX para o XXI, e que teve como ponto culminante o longa-metragem de mesmo nome dirigido por James Cameron e lançado em 2009. Desde meados dos anos 1980, a palavra vinha sendo empregada na literatura de ficção científica conhecida como cyberpunk, nas experiências de realidade virtual, nos RPGs (eletrônicos ou não) e, por fim, em prosaicas salas de chat na internet. Seus sentidos se multiplicaram, mas com uma base comum: o avatar é a representação do jogador, do usuário, do internauta num novo ambiente. Como se ele fosse Vixnu a baixar na terra.

Ainda se discute quem foi o pioneiro desse uso contemporâneo de avatar. Há quem aposte num game de 1985 chamado Habitat e quem prefira dar crédito a escritores como William Gibson ou Neal Stephenson. Talvez seja mais razoável falar em criação coletiva.

26 de junho de 2014
Sérgio Rodrigues, Veja

BARBÁRIE COM FACE HUMANA




A Ucrânia segundo Lênin, Stálin e Putin

por SLAVOJ ŽIŽEK
 

Nas reportagens para a televisão sobre os protestos em Kiev contra o governo de Viktor Yanukovich, víamos, seguidamente, imagens de manifestantes derrubando estátuas de Lênin. Era um jeito fácil de demonstrar raiva: as estátuas funcionavam como símbolo da opressão soviética, e a impressão que se tem da Rússia de Vladimir Putin é que ela continua a política soviética de dominação russa dos vizinhos.

Tenha-se em mente que foi só em 1956 que as estátuas de Lênin começaram a proliferar em toda a União Soviética: até então, estátuas de Stálin eram bem mais comuns. Mas depois da denúncia “secreta” de Stálin por Kruchev no 20º Congresso do Partido Comunista, as estátuas de Stálin foram substituídas, em massa, pelas de Lênin: Lênin era, literalmente, um substituto de Stálin. Isso ficou igualmente claro com uma mudança, em 1962, no expediente do Pravda. Até então, no canto esquerdo superior da primeira página do jornal do Comitê Central do PC soviético havia um desenho de dois perfis, o de Lênin e o de Stálin, lado a lado. Logo depois que o 22º Congresso rejeitou publicamente Stálin, seu perfil não só foi removido, mas substituído por um segundo perfil de Lênin: agora havia dois Lênin idênticos impressos lado a lado. Em certo sentido, essa estranha repetição tornava Stálin mais presente do que nunca em sua ausência.

Havia, apesar disso, uma ironia histórica no espetáculo de ucranianos derrubando estátuas de Lênin como manifestação da vontade de romper com a dominação soviética e afirmar a soberania nacional. A era dourada da identidade nacional ucraniana não foi a Rússia czarista – quando a autoafirmação nacional ucraniana foi reprimida –, mas a primeira década da União Soviética, quando a política soviética numa Ucrânia cansada de guerra e de fome era a “indigenização”.[1] A cultura e a língua ucranianas foram restauradas, e direitos a serviços de saúde, educação e previdência social introduzidos. A indigenização seguia os princípios formulados por Lênin em termos inequívocos:
“O proletariado não pode deixar de lutar contra a permanência forçada das nações oprimidas dentro das fronteiras de determinado Estado, e é isso exatamente o que a luta pelo direito de autodeterminação significa. O proletariado deve exigir o direito de secessão política para as colônias e para as nações oprimidas por sua ‘própria’ nação. Se não agir assim, internacionalismo proletário será uma expressão sem sentido; a confiança mútua e a solidariedade de classe entre os trabalhadores das nações opressoras e oprimidas serão impossíveis.”

Lênin permaneceu fiel a essa posição até o fim: imediatamente depois da Revolução de Outubro, quando Rosa Luxemburgo afirmou que países pequenos só deveriam adquirir soberania plena se forças progressistas predominassem no novo Estado, Lênin foi a favor do direito incondicional de secessão.

Em sua última luta contra o projeto de Stálin de uma União Soviética centralizada, Lênin mais uma vez defendeu o direito incondicional de secessão das pequenas nações (nesse caso, a Geórgia estava em questão), insistindo na soberania plena das entidades nacionais que compunham o Estado soviético – não admira que, em 27 de setembro de 1922, em carta ao Politburo, Stálin acusasse Lênin de “nacional-liberalismo”. A direção que Stálin seguiria estava clara já na sua proposta de que o governo da Rússia soviética fosse também o governo das outras cinco repúblicas (Ucrânia, Bielorrússia, Azerbaijão, Armênia e Geórgia):
“Se a decisão atual for confirmada pelo Comitê Central do Partido Comunista Russo, ela não será tornada pública, mas comunicada aos comitês centrais das repúblicas para circulação entre os órgãos soviéticos, os comitês executivos centrais ou os congressos dos sovietes das ditas repúblicas antes da convocação do Congresso Panrusso de Sovietes, quando será declarada desejo dessas repúblicas.”

Dessa maneira, foi abolida a interação da mais alta autoridade, o Comitê Central, com sua base: a mais alta autoridade agora simplesmente impunha sua vontade. Para piorar, o Comitê Central decidiu o que a base pediria que a autoridade suprema pusesse em vigor, como se fosse a sua própria vontade. No caso mais evidente, em 1939, os três Estados bálticos pediram para ingressar na União Soviética, que acedeu ao seu desejo. Com isso, Stálin retornou à política czarista pré-revolucionária: a colonização da Sibéria no século XVII e da área muçulmana no século XIX pela Rússia não era mais condenada como expansão imperialista, mas comemorada por ter colocado essas sociedades tradicionais na rota da modernização progressista.
 
A política externa de Putin é uma clara continuação da linha czarista-stalinista. Depois da Revolução Russa, de acordo com Putin, os bolcheviques infligiram sérios danos aos interesses da Rússia: “Os bolcheviques, por motivos numerosos – que Deus os julgue –, acrescentaram grandes seções do sul histórico da Rússia à República da Ucrânia. Isso foi feito sem levar em conta a composição étnica da população, e hoje essas áreas formam o sudeste da Ucrânia.”

Não é de admirar que retratos de Stálin apareçam novamente em desfiles militares e comemorações públicas, enquanto Lênin foi apagado. Numa pesquisa de opinião realizada em 2008 pelo canal Rossiya ST, Stálin foi eleito o terceiro maior russo de todos os tempos, com meio milhão de votos. Lênin ficou num distante sexto lugar. Stálin é festejado não como comunista, mas como restaurador da grandeza russa depois do antipatriótico “desvio” de Lênin. Putin recentemente usou o termo Novorossiya (“Nova Rússia”) para designar os sete oblasts do sudeste da Ucrânia, ressuscitando uma expressão usada pela última vez em 1917.

Mas a tendência leninista subjacente, embora reprimida, persistiu na oposição comunista clandestina a Stálin. Muito antes de Alexander Soljenítsin, como escreveu Christopher Hitchens em 2011, “as perguntas cruciais sobre o Gulag eram feitas por oposicionistas de esquerda, de Boris Souvarine a Victor Serge e C. L. R. James,[2] em tempo real e envolvendo grande risco. Esses corajosos e prescientes hereges foram de alguma forma riscados da história (eles esperavam coisa muito pior, e frequentemente recebiam)”.
A dissidência interna era parte natural do movimento comunista, em nítido contraste com o fascismo. “Não havia dissidentes no Partido Nazista”, prosseguiu Hitchens, “que arriscassem a vida propondo que o Führer tinha traído a verdadeira essência do nacional-socialismo.”

Precisamente por causa dessa tensão no âmago do movimento comunista, o lugar mais perigoso na época dos expurgos dos anos 30 era o topo da nomenclatura: num período de dois anos, 80% dos líderes do Comitê Central e do Exército Vermelho foram fuzilados. Outro sinal de dissidência poderia ser detectado nos últimos dias do “socialismo realmente existente”, quando multidões protestavam cantando canções oficiais, incluindo hinos nacionais, para lembrar aos poderes constituídos as promessas que não cumpriram.

O ressurgimento do nacionalismo russo fez certos acontecimentos históricos serem reescritos. Um recente filme biográfico, Admiral, de Andrei Kravchuk, aplaude publicamente a vida de Aleksandr Kolchak, o comandante do Exército Branco que governou a Sibéria de 1918 a 1920. Mas vale lembrar o potencial totalitário, assim como a absoluta brutalidade, das forças contrarrevolucionárias brancas durante aquele período.

Tivessem os brancos vencido a guerra civil, escreve Hitchens, “a palavra para fascismo seria russa, e não italiana... O general William Graves, que comandou a Força Expedicionária Americana durante a invasão da Sibéria em 1918 (episódio totalmente removido dos livros didáticos americanos), escreveu em suas memórias sobre o antissemitismo, amplamente difundido e letal, que dominava a direita russa e acrescentou:
‘Não sei se a história mostrará qualquer país no mundo, nos últimos cinquenta anos, onde fosse tão seguro cometer assassinatos, e com menos perigo de punição, como na Sibéria durante o reinado do almirante Kolchak.’”
 
Toda a direita neofascista europeia (na Hungria, França, Itália, Sérvia) apoiou firmemente a Rússia na atual crise ucraniana, o que contradiz a descrição oficial russa do referendo da Crimeia[3] como uma escolha entre a democracia russa e o fascismo ucraniano.
Os acontecimentos na Ucrânia – os protestos em larga escala que derrubaram Yanukovich e sua gangue – devem ser entendidos como defesa contra a sombria herança ressuscitada por Putin.

Os protestos foram deflagrados pela decisão do governo ucraniano de priorizar boas relações com a Rússia, em detrimento da integração da Ucrânia à União Europeia. Previsivelmente, muitos esquerdistas anti-imperialistas reagiram às notícias tratando os ucranianos de forma paternalista: que ilusão ainda idealizarem a Europa, serem incapazes de ver que ingressar na ue serviria apenas para transformar a Ucrânia em colônia econômica da Europa Ocidental, condenada, cedo ou tarde, a seguir os passos da Grécia.

Na realidade, os ucranianos estão longe de ignorar as realidades da ue. Têm plena consciência dos problemas e disparidades do bloco: a mensagem deles é apenas a de que sua própria situação é muito pior. A Europa pode ter seus problemas, mas são problemas de rico.

Quer dizer que deveríamos simplesmente apoiar o lado ucraniano no conflito? Há uma razão “leninista” para fazê-lo. Nos últimos escritos de Lênin, produzidos bem depois de ter abandonado a utopia de O Estado e a Revolução, ele explorou a ideia de um projeto modesto, “realista”, para o bolchevismo. Devido ao subdesenvolvimento econômico e ao atraso cultural das massas russas, argumenta ele, não há como a Rússia “passar diretamente para o socialismo”: tudo que o poder soviético pode fazer é combinar a política moderada do “capitalismo de Estado” com a intensa educação cultural das massas camponesas – não a lavagem cerebral da propaganda, mas uma imposição paciente e gradual de padrões civilizados. Os fatos e os números revelavam “que ainda precisamos fazer uma vasta quantidade de planejamento difícil e urgente para alcançar o padrão de um país civilizado comum da Europa Ocidental... Devemos ter em mente a ignorância semiasiática da qual ainda não nos livramos”.

Podemos então interpretar a referência dos manifestantes ucranianos à Europa como um sinal de que seu objetivo, também, é “alcançar o padrão de um país civilizado comum da Europa Ocidental”?

Mas aqui tudo começa a ficar complicado. O que, exatamente, significa a “Europa” a que os manifestantes ucranianos se referem? Ela não pode ser reduzida a uma única ideia: abrange elementos nacionalistas, e até fascistas, mas inclui também a ideia daquilo que o filósofo francês Étienne Balibar chama de égaliberté, liberdade na igualdade, contribuição única da Europa ao imaginário político global, ainda que na prática hoje ela seja em grande parte traída pelas instituições e pelos próprios cidadãos europeus. Entre esses dois polos, há também uma confiança ingênua no valor do capitalismo liberal-democrático europeu.
A Europa pode ver nos protestos ucranianos tanto o seu lado melhor como o seu lado pior, o seu universalismo emancipador assim como sua sinistra xenofobia.
 
Comecemos pela sinistra xenofobia. A direita nacionalista ucraniana é um exemplo do que acontece hoje dos Bálcãs à Escandinávia, dos Estados Unidos a Israel, da África Central à Índia: paixões étnicas e religiosas explodem, e os valores do Iluminismo batem em retirada. Essas paixões sempre estiveram presentes, à espreita; o que há de novo é o descarado cinismo de suas manifestações.

Imagine-se uma sociedade plenamente integrada aos grandes axiomas modernos de liberdade, igualdade, direito à educação e aos serviços de saúde para todos, e na qual o racismo e o sexismo se tornaram inaceitáveis e ridículos. Imagine-se, porém, que, gradualmente, embora a sociedade continue a adotá-los da boca para fora, esses axiomas sejam, na prática, destituídos de qualquer substância.

Eis aqui um exemplo tirado da história europeia mais recente: no verão de 2012, Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro de direita, declarou que um novo sistema econômico era necessário na Europa Central. “Esperemos que Deus nos ajude”, disse ele, “e que não tenhamos de inventar um novo tipo de sistema político, no lugar da democracia, que teria que ser introduzido em nome da sobrevivência econômica... Cooperação é uma questão de força, não de intenção. Talvez haja países onde as coisas não funcionem assim, por exemplo nos países escandinavos, mas uma ralé meio asiática como nós só pode se unir se houver força.”

A ironia dessas palavras não deixou de ser percebida por alguns velhos dissidentes húngaros: quando o Exército soviético entrou em Budapeste para esmagar a revolta de 1956, o recado reiteradamente enviado pelos acuados líderes húngaros ao Ocidente foi que estavam defendendo a Europa contra os comunistas asiáticos.
Agora, depois do colapso do comunismo, o governo cristão conservador pinta como seu principal inimigo a democracia liberal consumista multicultural que a Europa Ocidental hoje representa. Orbán já manifestou sua simpatia pelo “capitalismo com valores asiáticos”; se a pressão europeia sobre Orbán continuar, podemos facilmente imaginá-lo mandando um recado para o Leste: “Estamos defendendo a Ásia aqui!”

O populismo anti-imigrantes de hoje substituiu a barbárie pura e simples por uma barbárie com rosto humano. Ele constitui uma regressão da ética cristã do “ama ao teu próximo” ao favorecimento pagão da tribo, em detrimento do bárbaro Outro. Mesmo quando diz defender os valores cristãos, esse populismo é a rigor a maior ameaça ao legado cristão.

“Homens que começam a combater a Igreja em nome da liberdade e da humanidade”, escreveu G. K. Chesterton[4] 100 anos atrás, “acabam deixando de lado a liberdade e a humanidade, se com isso puderem combater a Igreja... Os secularistas não arruinaram as coisas divinas; mas os secularistas arruinaram as coisas seculares, se isso lhes serve de consolo.” O mesmo não se aplicaria aos defensores da religião também? Defensores fanáticos da religião começam atacando a cultura secular contemporânea; não chega a ser uma surpresa quando acabam abandonando qualquer experiência religiosa significativa.

Da mesma forma, muitos guerreiros liberais, de tão ansiosos para combater o fundamentalismo antidemocrático, acabam deixando de lado a liberdade e a democracia, se com isso puderem combater o terror. Os “terroristas” podem estar prontos para arruinar este mundo por amor a outro, mas os combatentes contra o terror estão igualmente dispostos a arruinar seu próprio mundo democrático por puro ódio contra o muçulmano “outro”. Alguns amam de tal maneira a dignidade humana que estão dispostos a legalizar a tortura para defendê-la.

Os que defendem a Europa contra a ameaça dos imigrantes fazem mais ou menos a mesma coisa. Em seu afã de proteger o legado judaico-cristão, estão dispostos a deixar de lado o que há de mais importante nesse legado. Os defensores da Europa contra os imigrantes, e não as supostas multidões de imigrantes que aguardam o momento de invadi-la, são a verdadeira ameaça à Europa.
 
Um dos sinais dessa regressão é a demanda frequentemente ouvida na nova direita europeia por uma visão mais “equilibrada” dos dois “extremismos”, de direita e de esquerda. Dizem-nos reiteradamente que é preciso tratar a extrema-esquerda (o comunismo) da mesma maneira que a Europa depois da Segunda Guerra Mundial tratou a extrema-direita (os fascistas derrotados). Mas, na realidade, não existe equilíbrio neste caso: a equiparação do fascismo ao comunismo favorece secretamente o fascismo. Dessa maneira, ouve-se a direita argumentar que o fascismo copiou o comunismo: antes de se tornar fascista, Mussolini foi socialista; Hitler também foi nacional-socialista; os campos de concentração e a violência genocida eram características da União Soviética dez anos antes de os nazistas recorrerem a elas; o extermínio dos judeus tem um claro precedente no extermínio dos inimigos de classe etc.

O objetivo desses argumentos é mostrar que um fascismo moderado era uma resposta justificada à ameaça comunista (argumento usado muito tempo atrás pelo historiador alemão Ernst Nolte em sua defesa do envolvimento do filósofo Martin Heidegger com o nazismo). Na Eslovênia, a direita defende a reabilitação da Guarda Nacional anticomunista que combateu os resistentes durante a Segunda Guerra Mundial: seus membros fizeram a difícil opção de colaborar com os nazistas para impedir o mal muito maior do comunismo.

Os liberais convencionais nos dizem que, quando valores democráticos básicos estão sob a ameaça de fundamentalistas étnicos ou religiosos, devemos nos unir em apoio à agenda liberal-democrática, salvar o que puder ser salvo e deixar de lado os sonhos de transformação social mais radical. Mas há uma falha fatal nessa conclamação à solidariedade: ela ignora que o liberalismo e o fundamentalismo estão presos ao mesmo círculo vicioso. É o agressivo esforço para exportar a permissividade liberal que leva o fundamentalismo a reagir e se afirmar com veemência.

Quando ouvimos os políticos de hoje nos oferecerem uma escolha entre a liberdade numa sociedade liberal e a opressão fundamentalista, e fazerem, triunfantemente, a pergunta retórica, “Vocês querem que as mulheres sejam excluídas da vida pública e privadas de seus direitos? Vocês querem que todos os críticos da religião sejam condenados à morte?”, o que deve nos deixar desconfiados é a própria obviedade da resposta: quem iria querer isso?
O problema é que o universalismo liberal perdeu sua inocência há muito tempo. O que Max Horkheimer disse sobre capitalismo e fascismo nos anos 30 ainda se aplica hoje, num contexto diferente: quem não quiser criticar a democracia liberal deveria se calar também sobre o fundamentalismo religioso.
 
E que dizer do destino do sonho capitalista liberal-democrático europeu na Ucrânia? Não há clareza sobre o que espera a Ucrânia dentro da União Europeia. Cito sempre uma conhecida piada da última década da União Soviética, mas ela não poderia ser mais pertinente.

Rabinovitch, um judeu, quer emigrar. O burocrata da Seção de Emigração pergunta por quê, e Rabinovitch responde: “Dois motivos. O primeiro é que tenho medo que os comunistas percam o poder na União Soviética, e que o novo poder nos culpe, nós judeus, por todos os crimes dos comunistas.” “Mas isso é bobagem”, interrompe o burocrata, “nada vai mudar na União Soviética, o poder dos comunistas durará para sempre!” “Bem”, retruca Rabinovitch, “esse é o meu segundo motivo.”

Imagine-se um diálogo parecido entre um ucraniano e um funcionário da União Europeia. O ucraniano reclama: “Há dois motivos para estarmos em pânico aqui na Ucrânia. Primeiro, temos medo de que, sob pressão russa, a ue nos abandone e deixe nossa economia desmoronar.” O administrador da ue interrompe: “Mas o senhor pode confiar em nós. Não os abandonaremos. Na realidade, vamos fazer tudo para tomar conta do seu país, e dizer como devem fazer!” “Bem”, retruca o ucraniano, “esse é o meu segundo motivo.”

Não se trata de saber se a Ucrânia merece a Europa, e se é boa o suficiente para entrar na ue; trata-se de saber se a Europa de hoje corresponderia às aspirações dos ucranianos. Se a Ucrânia acabar numa mistura de fundamentalismo étnico e capitalismo liberal, com oligarcas dando as cartas, será tão europeia quanto a Rússia (ou a Hungria) de hoje. (Dá-se muito pouca atenção ao papel desempenhado pelos vários grupos de oligarcas – os “pró-russos” e os “pró-ocidentais” – nos acontecimentos na Ucrânia.)

Alguns comentaristas políticos alegam que a ue não deu à Ucrânia apoio suficiente no conflito com a Rússia, que a resposta da ue à ocupação e à anexação russa da Crimeia foi tíbia. Mas outro tipo de apoio esteve ausente de forma ainda mais conspícua: a proposta de qualquer estratégia viável para romper o impasse.

A Europa não estará em condição de oferecer essa estratégia enquanto não renovar seu compromisso com o núcleo emancipador de sua própria história. Só deixando para trás o cadáver em decomposição da velha Europa podemos manter vivo o legado europeu de égaliberté.
Não são os ucranianos que devem aprender com a Europa: a Europa é que precisa aprender a corresponder às expectativas do sonho que motivou os manifestantes na praça Maidan. A lição que liberais amedrontados devem aprender é que só uma esquerda mais radical pode salvar o que vale a pena ser salvo no legado liberal de hoje.
 
Os manifestantes da Maidan foram heróis, mas a verdadeira luta – a luta pelo que será a nova Ucrânia – começa agora, e será muito mais dura do que a luta contra a intervenção de Putin. Um novo e mais arriscado heroísmo será necessário. Já foi exibido pelos russos que se opõem à paixão nacionalista de seu próprio país e a denunciaram como ferramenta de poder. É hora de ratificar a solidariedade básica de ucranianos e russos, e de rejeitar os próprios termos do conflito.
O próximo passo é uma demonstração pública de fraternidade, estabelecendo-se redes organizacionais entre os ativistas políticos ucranianos e a oposição russa ao regime de Putin. Pode parecer utópico, mas só esse jeito de pensar é capaz de conferir aos protestos uma dimensão verdadeiramente emancipadora.
Do contrário, o que nos restará é um conflito de paixões nacionalistas manipuladas por oligarcas. Esses jogos geopolíticos não têm interesse algum para uma política de emancipação autêntica.

26 de junho de 2014

[1]A política de dar maior autonomia às regiões não russas da URSS foi chamada de korenizatsiya, que significa, literalmente, volta às raízes.
[2]O militante comunista e jornalista francês Boris Souvarine (1895–1984) rompeu com Stálin nos anos 20; o escritor e revolucionário russo Victor Serge (1890–1947) foi preso por ser contra Stálin e morreu no exílio; o historiador e teórico do pós-colonialismo Cyril Lionel Robert James (1901–89), nascido na então colônia britânica de Trinidad, foi crítico do stalinismo e depois rompeu também com os trotskistas.
[3]A votação, no dia 17 de março, aprovou a independência da região e sua anexação à Rússia; o território havia sido cedido à Ucrânia por Kruchev em 1954.
[4]O britânico Gilbert Keith Chesterton (1874–1936) foi um escritor, teólogo autodidata e defensor do cristianismo.

É OSSO



Questões paleontológicas

Agruras de um pesquisador dos répteis extintos

por BERNARDO ESTEVES
 

No ano passado, o site de leilões eBay pôs à venda o esqueleto de um fóssil brasileiro. Era um pterossauro, um réptil voador que viveu há 120 milhões de anos no território hoje ocupado pela chapada do Araripe, na região que abrange o sul do Ceará e parte de Pernambuco e Piauí. O esqueleto, com 1 metro de altura e 3 de envergadura, parecia em notável estado de conservação. Apenas um terço dele era composto por fósseis de verdade – os outros ossos eram réplicas de material sintético.

Anunciado por uma loja chamada Geofossiles, sediada no interior da França, o pterossauro pertencia a um colecionador particular que o deixou em consignação para que fosse vendido – pedia 250 mil dólares. O responsável pelo estabelecimento, David Guery, disse ter recebido ofertas sérias de dois museus, um da Europa e outro do Rio de Janeiro. Como os valores eram bem inferiores ao lance inicial, o negócio não foi fechado.

O esqueleto havia saído do Brasil ilegalmente: fósseis encontrados em território nacional são propriedade da União e não podem ser comercializados. Por sua riqueza e abundância, as peças do Araripe despertam a cobiça não só de colecionadores e curadores de museus do mundo todo, como também dos paleontólogos, os estudiosos de animais e plantas extintos preservados na forma de fósseis.

Por determinação da polícia francesa, avisada pela Interpol após uma denúncia das autoridades brasileiras, no começo do ano Guery retirou a oferta do ar. Depois que o Correio Braziliense noticiou o caso em fevereiro, o Ministério Público Federal do Ceará decidiu solicitar a devolução do fóssil. É improvável, porém, que ele seja repatriado. Se confrontados com a acusação de tráfico, pesquisadores e comerciantes costumam alegar que o material foi coletado antes de 1942, ano em que se publicou o decreto-lei que regulamenta o acesso aos fósseis no país. Mas muitos dos depósitos fossilíferos brasileiros ainda não haviam sido explorados naquele momento.

Numa tarde de fevereiro, Alexander Kellner, especialista em pterossauros e pesquisador do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, visitou a representação do Ministério Público Federal em Juazeiro do Norte, no Ceará, ao lado do colega Alamo Saraiva, da Universidade Regional do Cariri. O procurador responsável pelo caso pediu a Saraiva um parecer técnico sobre a procedência do material. Kellner disse que provavelmente o esqueleto foi encontrado depois dos anos 70, quando começou a exploração comercial dos depósitos de calcário laminado da região. “Mas não dá para afirmar com certeza a origem do material.”
 
A fossilização é um acidente de percurso. A sina dos organismos que passam pelo planeta é ter sua matéria orgânica decomposta. No entanto, pode acontecer que a carcaça seja isolada de bactérias e outros agentes de decomposição – se ela for coberta por sedimentos no fundo de um rio ou lago, por exemplo. Tem início então um processo em que a matéria orgânica dos ossos é substituída por matéria mineral, e aqueles restos se tornam um fóssil.

No final do século XVIII, nos depósitos de calcário laminado de Solnhofen, na Baviera, foi encontrado um espécime curioso. Gravado na pedra estava o esqueleto de um animal com focinho comprido e braço desproporcional, em cuja ponta havia três dedos e também um osso comprido articulado que mais parecia um prolongamento do membro. O naturalista italiano Cosimo Collini, o primeiro a tentar interpretá-lo, em 1784, julgou que o osso misterioso deveria sustentar uma nadadeira para a locomoção na água. Tratava-se, pois, de um anfíbio.

A criatura mudou de natureza quando Georges Cuvier, um nobre francês que trabalhava como naturalista no Museu Nacional de História Natural, em Paris, propôs nova interpretação. Ao analisar o fóssil em 1801, o pesquisador teve o estalo: o osso comprido era na verdade um longuíssimo quarto dedo, destinado à sustentação de uma grande membrana que servia de asa. Aquele era um réptil alado, que ele chamou de pterodátilo, juntando as palavras gregas que designam “asa” e “dedo”.

A existência do pterodátilo tinha outra implicação assombrosa: pelo jeito, tinha havido, na história da vida, animais de aparência fantástica, que desapareceram sem deixar vestígio. Meio século depois, Charles Darwin e Alfred Wallace iriam propor que as formas de vida se transformavam ao sabor da seleção natural, explicando o desaparecimento de espécies menos adaptadas aos percalços da vida no planeta.

Nas décadas seguintes foram descobertas outras espécies de répteis voadores, primos do pterodátilo, que receberam o nome de pterossauros (“lagartos alados” em grego). Até prova em contrário, foram os primeiros vertebrados a desenvolver a capacidade do voo ativo. Foram secundados pelas aves e os morcegos, que no entanto trilharam caminhos evolutivos distintos. Os mais antigos répteis voadores conhecidos viveram há cerca de 228 milhões de anos. Contemporâneos dos dinossauros, com quem não têm relação direta de parentesco, a despeito dos nomes parecidos, foram extintos 66 milhões de anos atrás, no fim do período Cretáceo. Morreram num cataclismo que dizimou a maior parte dos organismos então existentes, motivado provavelmente pelo impacto de um grande asteroide e pelas mudanças ambientais por ele desencadeadas.

Nessa janela de 160 milhões de anos, existiram desde pterossauros diminutos – que de asas abertas mediam cerca de um palmo – até gigantes com a altura de girafas e mais de 10 metros de envergadura. Muitos deles traziam no topo do crânio cristas vistosas. A diversidade dos dentes sugere que alguns se alimentavam de peixes e pequenos animais terrestres, outros de frutas ou insetos.

As aves, que colonizaram os céus após a extinção dos pterossauros, não têm ligação com esses répteis. Como elas, porém, estes apresentavam ossos ocos, com paredes extremamente finas e cavidades cheias de ar – adaptação evolutiva que, se lhes facilitava o voo, dificultou a vida dos paleontólogos, pois seus restos eram frágeis e de difícil preservação. A maioria dos fósseis de répteis voadores é proveniente de cinco regiões: a província de Liaoning, no nordeste da China; a formação Niobrara, no Meio-Oeste norte-americano; os depósitos de Cambridge Greensand, no Reino Unido; o calcário de Solnhofen, no sul da Alemanha; e a bacia sedimentar do Araripe, no Nordeste brasileiro.
Os depósitos de fósseis do Araripe se originaram após a fragmentação de Gondwana, o supercontinente que no passado reunia todas as terras hoje ao sul do Equador, além da Índia. África e América do Sul ainda eram relativamente próximas quando, por volta de 115 milhões de anos atrás, formou-se uma grande laguna na região que atualmente abrange a chapada do Araripe. Restos de conchas, peixes e outros organismos são a prova inequívoca de que a chapada, que chega a 900 metros de altitude, já esteve no fundo de um corpo d’água.

Como o oxigênio era escasso nas águas mais profundas dessa laguna, os agentes decompositores não conseguiam sobreviver. Por isso, restos de animais mortos conduzidos até ali por chuvas ou enxurradas tinham mais condições de virar fósseis. Vêm dali alguns dos animais extintos mais finamente preservados em todo o mundo – incluindo esqueletos tridimensionais quase completos, que revelaram detalhes sobre tecidos como couro, músculos e vasos sanguíneos.
 
Quem visita a chapada do Araripe não sente que está em pleno sertão. Como uma ilha úmida no semiárido, a paisagem é marcada por trechos de floresta densa e viçosa, em contraste com as árvores mais esparsas da caatinga que cerca a área (reservatórios de águasubterrâneos explicam a discrepância). Às vésperas do Carnaval fazia um calor suportável, surpreendente a quem espera um verão escaldante no coração do Nordeste.

Nas imediações das cidades de Nova Olinda e Santana do Cariri, no Ceará, contam-se às dezenas as minas que exploram comercialmente os depósitos de calcário laminado. O material é usado para produzir as pedras cariri, aproveitadas para o revestimento de bordas de piscina e áreas externas – cortadas nas próprias pedreiras, as lâminas já saem dali direto para a construção civil.

Como as pedras cariri são extraídas dos mesmos depósitos que abrigam a maior riqueza fóssil da região, o observador atento não tardará a achar, incrustados nas pedras, fósseis de plantas, insetos e peixes miúdos. Enquanto visitava uma pedreira do Araripe alguns meses atrás, em poucos minutos Alexander Kellner já havia identificado um punhado deles.

Segundo o paleontólogo, a idade daquelas formações rochosas foi determinada por um método indireto de datação, com base na presença de um tipo específico de fósseis minúsculos. Uma vez que alguns tipos de organismos (conchas ou grãos de pólen, por exemplo) só existiram num intervalo muito restrito na história da Terra, a presença deles costuma indicar, com relativa segurança, a idade de uma camada de sedimentos.

Kellner descreveu, trabalhando sozinho ou em parceria com colegas brasileiros e estrangeiros, oito pterossauros da bacia do Araripe, mais do que qualquer outro cientista (ele também apresentou aos colegas outras dezessete espécies desse grupo que viveram noutras localidades). Vem de lá o Tapejara imperator, animal que se destacava por uma imensa crista, “como se tivesse um mastro com uma vela aberta na cabeça”, nas palavras do pesquisador. Embora nas representações artísticas da espécie a crista seja figurada em tons vivos, Kellner e seus colegas não têm certeza da cor dessas estruturas – e muito menos de como a criatura voava com o desengonçado apêndice.
 
Filho de pai alemão e mãe austríaca,Alexander Wilhelm Armin Kellner nasceu em setembro de 1961 em Vaduz, capital de Liechtenstein, onde seus pais estavam de passagem – moravam na Áustria e se mudaram para o Brasil quando o menino tinha 4 anos. O pai se estabeleceu no Rio de Janeiro como comerciante de pedras e joias.

Alto e longilíneo, Kellner tem 52 anos, olhos claros, covinha no queixo e traços inequivocamente germânicos. Com um chapéu de couro redondo e óculos escuros, poderia passar por um turista paramentado para um safári, se bem que poucos minutos de conversa bastem para revelar o sotaque e a alma carioca. Austríaco naturalizado brasileiro, Kellner fala alemão com a mãe e português com a mulher e os dois filhos, torcedores do Fluminense como ele.

Fascinado por animais voadores como o dragão Zok – que acompanhava os Herculoides no desenho norte-americano de ficção científica do fim dos anos 60 – e influenciado por um colega mais velho, decidiu estudar geologia. Contrariou o pai, que preferia que ele estudasse administração para tocar os negócios. Estudante de 1º ano, caiu-lhe nas mãos o fóssil de um animal que ele não soube identificar.

Por recomendação de um professor, procurou Diogenes de Almeida Campos, especialista em répteis extintos que trabalhava na seção de paleontologia do DNPM – o Departamento Nacional de Produção Mineral, órgão responsável pela gestão do patrimônio fossilífero do país. Ao ver a espessura do osso, Campos não teve dúvidas: “Isso é pterossauro.”

Entusiasmado, Kellner, que ainda não completara 19 anos, pediu um estágio a Campos e acabou conseguindo uma mesa e uma cadeira para estudar uma tar-de por semana. O pesquisador do DNPM propôs que o estudante o ajudasse a descrever aquele fóssil e virou seu orientador. No mestrado, Kellner fez uma revisão dos pterossauros descobertos no Brasil e apresentou duas novas espécies.
A pesquisa durou cinco anos e rendeu uma dissertação de 543 páginas distribuídas em três volumes.

Diogenes de Almeida Campos, hoje com 70 anos, nasceu em Irará, na Bahia. Fez carreira como paleontólogo no DNPM e é o atual diretor do Museu de Ciências da Terra, no Rio de Janeiro. A parceria com Kellner, com quem publicou 34 artigos científicos, estreou em 1985 com a descrição do Anhanguera blittersdorffi, um pterossauro de uma família até então desconhecida. Campos escolheu batizar a espécie com um nome da mitologia tupi, numa tentativa de “abrasileirar a paleontologia”.

Em janeiro, junto com outro colega eles apresentaram um crocodilo que viveu no interior do Rio de Janeiro há quase 60 milhões de anos – foi a 21ª espécie de réptil extinto descrita pela dupla. Campos não esconde o orgulho do discípulo: “Minha maior descoberta foi Alexander Kellner.”

Primeiro paleontólogo na América do Sul a se especializar no estudo dos pterossauros, o aluno de Campos tem formado estudantes que vêm dando continuidade a sua linha de pesquisa. No ano passado, uma ex-aluna, hoje professora da Universidade Federal de Pernambuco, começou a orientar um doutorado sobre pterossauros. Será o primeiro neto acadêmico de Kellner.

 
Prestes a completar 200 anos, o Museu Nacional foi criado por dom João VI quando a sede da Coroa portuguesa se transferiu ao Brasil. Estabelecido no prédio histórico na Quinta da Boa Vista em que viveu a família imperial, abriga coleções de história natural, arqueologia e antropologia, além de atuar como um centro de ensino e pesquisa, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Alexander Kellner se tornou pesquisador da instituição em 1997, um ano após voltar de Nova York, onde fez doutorado na Universidade Columbia. Trabalha num gabinete decorado por dezenas de cartazes de exposição, capas de revistas e ilustrações de répteis extintos. À direita de sua escrivaninha vê-se o esqueleto de um animal bípede de pescoço comprido e pouco mais de 1 metro de altura.
“É uma ave recente, um emu”, esclareceu. Kellner disse que aquele primo do avestruz lhe foi útil mais de uma vez para o estudo de répteis extintos. “É um dinossauro contemporâneo.”

A afirmação pode soar ousada, mas reflete um consenso há muito estabelecido entre os paleontólogos. Aves e dinossauros fazem parte do mesmo galho da árvore evolutiva – emus, curiós, falcões, pinguins e demais aves atuais descendem de pequenos dinossauros poupados da grande extinção do fim do Cretáceo. Essa convicção se fortaleceu em 1861, depois da descrição do Archaeopteryx, animal que viveu há 150 milhões de anos e devia ter a aparência de um réptil com asas e penas. Um esqueleto desse bicho encontrado nos depósitos de Solnhofen foi o elo que sacramentou o parentesco entre as aves modernas e os répteis extintos.

Os estudiosos de pterossauros não tiveram a mesma sorte, ao menos até agora. Na ausência de um fóssil de transição que permita entender os caminhos evolutivos que levaram ao surgimento dos répteis alados, não se podem determinar as adaptações pelas quais o grupo passou até que fosse capaz de voar. Os paleontólogos dispõem de pouco para afirmar quem eram e como viviam esses animais, já que a maior parte dos fósseis consiste em fragmentos de ossos, com sorte algumas peças inteiras (o Nyctosaurus lamegoi, encontrado na Paraíba, foi descrito a partir de um úmero incompleto). Se a paleontologia fosse uma loteria, achar um crânio inteiro seria como acertar a quina; um esqueleto completo seria a Mega-Sena acumulada.

A observação das espécies atuais, aliada a boa dose de imaginação, permite que os cientistas deduzam traços do comportamento desses répteis voadores. Questionado sobre como copulavam os pterossauros, Kellner disse que seu ato sexual deveria ser bem semelhante ao das aves. Mas lembrou que os únicos registros do comportamento reprodutivo desses animais consistem nos raros ovos fossilizados encontrados. “Do ato em si eu não poderia afirmar nada.”
 
Os estudiosos da geração de Alexander Kellner foram influenciadospelos trabalhos de Peter Wellnhofer, paleontólogo alemão nascido em 1936 que a partir dos anos 70 deu novo gás à pesquisa dos pterossauros. Ainda no mestrado, Kellner foi conhecer os fósseis brasileiros que o alemão estava estudando. Quando evocou o encontro, ele imitou os gestos do colega ao abrir as gavetas: “Vruuup! E lá estava um crânio completo com mandíbula. Ele abriu uma segunda gaveta – vruuup! – e mostrou uma asa completa.” O estudante ficou de queixo caído – o material era muito melhor que os fósseis do Araripe de que dispunha. “E eu trabalhando com aqueles cacos velhos”, lamentou. “Estava tudo fora do Brasil.”

O animal da primeira gaveta era um Anhanguera santanae – a espécie à qual pertencia o esqueleto posto à venda no eBay. Nos anos 80, Wellnhofer descreveu essa e outras três espécies de pterossauros do Araripe. Não foi o único. O trabalho de paleontólogos estrangeiros com fósseis brasileiros – quase sempre contrabandeados – tem sido mais norma que exceção. Das 22 espécies de pterossauros listadas no Guia para Trabalhos de Campo em Paleontologia na Bacia do Araripe, catorze haviam sido descritas por pesquisadores do exterior.

Cada país tem suas normas para lidar com os fósseis de seu território. Nos Estados Unidos, como o subsolo é considerado parte da propriedade do cidadão, se ele encontrar petróleo ou um fóssil valioso em seu terreno, pode vendê-lo a quem bem entender. Outros países têm regras bem mais restritivas.
A Argentina proíbe até o transporte de material de uma província a outra do país. Na China, a exploração ilegal de fósseis chegou a ser passível de punição com pena de morte no passado.

No Brasil, segue valendo o decreto-lei editado por Getúlio Vargas em 1942. O texto é sucinto e define os depósitos fossilíferos como propriedade da nação. Museus e instituições de pesquisa federais e estaduais podem coletar e guardar fósseis. O comércio não está expressamente proibido, mas é uma decorrência natural: se nenhum indivíduo ou empresa pode possuir fósseis extraídos no país, tampouco é permitido comprá-los ou vendê-los. A Constituição de 1988 foi além e considerou os sítios paleontológicos como patrimônio da União. “Extrações de fósseis não autorizadas constituem crime de usurpação”, afirmou o geólogo Felipe Barbi Chaves, chefe da Divisão de Proteção de Depósitos Fossilíferos do DNPM, responsável pela fiscalização da coleta.

Na avaliação de Max Langer, pesquisador da Universidade de São Paulo e presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, a legislação brasileira é ambígua, pouco detalhada e sujeita a interpretações. Ela não discute, por exemplo, qual deveria ser a pena para o contrabando de fósseis. “A ausência de penalidades deixa tudo muito frouxo”, disse Langer. “Esperamos que pontos como esse sejam regulamentados por uma legislação mais ampla.” A questão está há anos na pauta do Congresso, sem que avanços substantivos tenham sido feitos.
 
Apesar da lei, por muito tempo se tolerou o comércio de fósseis, vendidos como suvenires em banquinhas de rua nas grandes cidades. Na região da bacia do Araripe, turistas eram assediados despudoradamente por vendedores de “pedras de peixe”, oriundas de escavações clandestinas feitas por moradores cooptados por atravessadores.

Num documentário de 2011 dirigido por Jackson Bantim, o lavrador Bonifácio Malaquias contou que foi abordado por um senhor que queria saber se ele não costumava topar na roça com “umas pedrinhas rodeadas, parecidas com jatobá”. O lavrador tinha, sim, encontrado pedras daquele tipo, e deu algumas ao estranho. Na semana seguinte o homem voltou para buscar mais e Malaquias entendeu que as tais pedrinhas tinham valor. “Rapaz, aquilo vende”, concluiu. “Agora vou nesse caminho, que dá certo”, completou com uma risada saborosa.

Fósseis coletados clandestinamente terminam por abastecer um mercado milionário no exterior, em feiras e sites especializados. Os restos do Anhanguera santanae à venda no eBay haviam sido adquiridos num salão especializado na Europa. David Guery, que anunciou o item, disse não saber que era proibido vender fósseis do Brasil. “Ninguém imaginaria que o comércio fosse ilegal, dada a quantidade de fósseis brasileiros em circulação”, disse.

Nos últimos anos, a população do Cariri tem se conscientizado de que a reserva fóssil pode estimular o turismo e desenvolver a região. Malaquias e outros lavradores dizem que estão fora do circuito, e os turistas já não são abordados de forma tão franca. A inauguração em 1988 de um museu em Santana do Cariri, com esqueletos e reconstituições de répteis extintos, contribuiu para essa mudança de atitude. “Conseguimos deter um pouco a sangria desatada”, afirmou o sociólogo Plácido Cidade Nuvens, que fundou a instituição. Ele reconhece, porém, que o problema não foi erradicado. “Mas já não se vê gente carregando fósseis grandes no ombro e mandando para São Paulo.”

A criação de um núcleo de pesquisa local aumentou o contingente de interessados em manter os fósseis na região do Araripe. Alamo Feitosa Saraiva, coordenador do Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri, acredita que a venda diminuiu à medida que aumentou a renda das famílias nos últimos anos. Acrescentou que o comércio ainda existe, só que agora está voltado a pesquisadores. “O tráfico hoje é científico, não é para o colecionadorzinho de parede.”
 
O acesso aos fósseis da bacia do Araripe é regulado pelo escritório do DNPM no Crato, que funciona num sobrado pintado em tom salmão e é chefiado por José Artur Ferreira Gomes de Andrade. O geólogo, que usa óculos e cavanhaque e tem a cabeça raspada, trabalha no DNPM há 33 anos. Numa entrevista em seu gabinete, disse que a fiscalização é dificultada pela dimensão da bacia – 10 mil quilômetros quadrados –, pela conivência da população e pela própria natureza do contrabando. “É o tipo de atividade em que ninguém dá recibo nem nota fiscal.”

Em 2005, Andrade assinou, junto com mais três cientistas, um artigo na revista Palaeontology. O autor principal do estudo, o britânico David Martill, da Universidade de Portsmouth, já descreveu dois dinossauros, dois pterossauros e um crocodilo extinto coletados na região. No tal artigo, foram descritos restos de plantas do Cretáceo preservados num âmbar fóssil da bacia do Araripe.

Perguntei a Andrade o que o DNPM vinha fazendo para evitar que os fósseis saíssem do país e acabassem descritos por pesquisadores estrangeiros como Martill. O fiscal reconheceu ter acompanhado o britânico no Brasil e disse que o material estudado por ele já se encontrava fora do país. “Não há como coibir o cidadão de descrever um fóssil que já esteja no exterior.” Martill continua examinando fósseis do Araripe, tanto que no ano passado descreveu uma vespa do Cretáceo que habitou aquelas bandas. Mas há tempos não é visto no Cariri. “Ele tentou fazer a coisa dentro da legalidade, mas infelizmente não conseguiu projetos para trabalhar no Brasil”, explicou Andrade.

Uma reportagem de 2006 doEstado de S. Paulo afirmou ter encontrado Martill em Nova Olinda, no Cariri, procurando comprar fósseis de vendedores de rua. O britânico se queixou da abordagem num relatório que apresentou com um colega à Sociedade Geológica de Londres: “Agora, nos vemos seguidos pela polícia secreta e interceptados por jornalistas (hostis) quando em viagem de campo.” Os autores lamentaram a crescente dificuldade de acesso ao material brasileiro e afirmaram que a exclusão de pesquisadores estrangeiros inibiria a ciência na região.

O relatório foi rebatido numa carta assinada por Max Langer e outros seis colegas. Os autores afirmaram que os paleontólogos estrangeiros eram bem-vindos no país, desde que seguissem a legislação: o trabalho de campo deveria ser feito em colaboração com equipes locais, e os fósseis que saíssem do país para estudo no exterior deveriam ser catalogados e devolvidos. “Esperamos que colegas e instituições estrangeiras nos apoiem recusando-se a comprar fósseis brasileiros exportados ilegalmente.”
 
Em fevereiro, quando Alexander Kellner visitou a mina de pedra cariri, um operário veio lhe trazer duas lâminas de calcário, uma com um pequeno peixe preservado e outra com um mosquito. Não eram grandes novidades científicas, mas o paleontólogo quis levar para o Museu Nacional – ele é um dos responsáveis por abastecer o acervo da instituição. Em seguida, perguntou se algo diferente tinha aparecido por ali. Não, não tinha. Mais tarde, Kellner fez uma pergunta retórica: “E como seria se ele aparecesse com um achado raro e me pedisse um trocado? O que eu faço? Mando prendê-lo como traficante?”

O pesquisador contou que, quando isso acontece, ele explica que estuda os fósseis mas não os compra, e que doações são bem-vindas. A situação não é incomum, e alguns podem se sentir tentados. À boca pequena, há quem sugira que muitos mestrados e doutorados defendidos no Brasil surgiram de material obtido por meios tortuosos. Mas toque nesse assunto com um paleontólogo e a conversa provavelmente esfriará.

Kellner já foi ele próprio acusado de comprar fósseis que descreveu na literatura especializada. A alegação partiu de Urânia Gusmão Corradini, uma comerciante que por 25 anos manteve uma banca na Praça da República, no Centro de São Paulo. Investigada por tráfico, com processos na Justiça Federal por apropriação de bens da União, ela declarou em 2005 à Folha de S.Paulo já ter vendido peças a Kellner e a Diogenes de Almeida Campos – acusação que ambos refutaram. Campos afirmou que o crânio usado para a descrição do Tapejara imperator havia sido doado por Corradini – ele pode ser visto no Museu de Ciências da Terra. A comerciante não respondeu aos pedidos de entrevista para esta reportagem.

O paleontólogo bebia cerveja num começo de noite no Crato quando mencionei as acusações. “Urânia Gusmão Corradini”, disse pausadamente. “Não me incomodo de falar dela.” Contou que ficou sabendo da comerciante de fósseis quando, ainda estudante, participou de um congresso em Fortaleza. Decidiu visitar sua banca em São Paulo, mas não comprou nada. O pesquisador destacou a generosidade de Corradini: “Urânia queria dar materiais bons para a ciência. Pelo que entendo, fez isso com insetos e plantas para dois colegas, e doou fósseis importantes para o próprio DNPM.”
 
O britânico David Unwin é um paleontólogo de 55 anos que trabalha como professor da Universidade de Leicester. Ao lado de nomes como Alexander Kellner e o americano Chris Bennett, está na linha de frente de uma geração que mudou o entendimento dos pterossauros. Numa conversa telefônica, perguntei a Unwin quão bom é o conhecimento atual desses répteis alados. O britânico disse que nas últimas duas décadas os especialistas chegaram a uma compreensão básica de como eram esses animais – algo que os estudiosos de dinossauros já haviam conquistado desde os anos 70.

Mas ainda há muitas questões em aberto. “Todos os cientistas que conheço concordariam que os pterossauros podiam voar e bater as asas”, ele explicou. “Mas será que voavam como abutres? Como gaivotas? Águias? Cisnes? Se eu perguntar a meus colegas, ouvirei todo tipo de resposta.”

Na paleontologia, o caráter provisório do conhecimento científico talvez fique mais evidente do que em outras disciplinas. Os pterossauros hoje concebidos são muito diferentes dos animais figurados por Cuvier no século XIX. À medida que progridem os estudos de animais extintos, a classificação das espécies e as relações de parentesco vão sendo reavaliadas – e calorosamente discutidas pela comunidade. Espécies e gêneros inteiros podem ser renomeados ou sumariamente eliminados.
O Tapejara de crista improvável que Campos e Kellner descreveram precisou ser rebatizado: agora se chama Tupandactylus imperator.

Kellner costuma dizer que os especialistas em pterossauros só concordam em relação a dois pontos: eram répteis e voavam. Todo o resto é motivo de contendas mais ou menos ferrenhas nas revistas especializadas e nos corredores dos congressos. Discute-se o que comiam, como caminhavam, para que serviam as cristas ou por quanto tempo eram capazes de voar.

O brasileiro está no foco de uma disputa científica que envolve a classificação dos répteis alados. Ele e o britânico Unwin defendem propostas antagônicas para explicar as relações de parentesco entre os diferentes grupos, e os demais colegas geralmente se alinham com um ou com outro. No arranjo proposto pelo britânico, muitos dos animais descobertos na bacia do Araripe pertenceriam a grupos que foram descritos no século XIX a partir de fósseis encontrados nos depósitos de Cambridge Greensand, na Inglaterra. Por uma questão de precedência, espécies como o Anhanguera descrito por Campos e Kellner nos anos 80 teriam que mudar de nome para se enquadrar na nova classificação.

Kellner vê a questão pelo prisma geo-político, como o embate entre paleontólogos criados num ambiente de ampla tradição científica e colegas de um país mais periférico no mapa da ciência mundial. Ele aponta um problema no argumento de Unwin: os pterossauros dos depósitos britânicos foram descritos a partir de milhares de fragmentos desconexos em estado de conservação precário.

“Devíamos restringir as formas do Cambridge Greensand para material inglês, já que, por ser muito incompleto, não temos uma noção precisa de como aqueles pterossauros se apresentavam”, escreveu ele no livro Pterossauros: Os Senhores do Céu do Brasil, de 2006.

O britânico minimizou as divergências quando pedi que comentasse o caso. Disse que era uma controvérsia sobre detalhes ínfimos, típica de acadêmicos, e ressaltou que os pontos de discórdia se limitavam a grupos pequenos de pterossauros. “Muita gente esquece que Alex Kellner e eu concordamos num monte de coisas.” Quando lhe perguntei quais contribuições do brasileiro ele considerava mais importantes, Unwin parou para pensar, como se fosse escrever um obituário.

“Nosso entendimento dos pterossauros mudou muito por causa das muitas novas espécies do Brasil que ele descreveu nos últimos vinte anos”, afirmou. Além de tudo, completou, “ele deu nomes ótimos para animais como Tapejara ou Tupuxuara”.
 
Kellner estima passar cerca de 100 dias por ano fora de casa, entre pesquisas de campo, congressos e visitas a museus e laboratórios. Está de malas prontas para uma viagem ao Irã, em junho. Neste ano, já esteve em Nova York – foi assistir à estreia de uma exposição sobre pterossauros no Museu Americano de História Natural, da qual foi um dos curadores. Foi também à China, que ele visita todo ano desde 2004. Trabalhou dezessete dias no laboratório de seu principal colaborador no país, Xiaolin Wang, da Academia Chinesa de Ciências. O primeiro artigo produzido na temporada sai no começo de junho e relata a descoberta de dezenas de indivíduos de uma nova espécie de pterossauro, incluindo quatro ovos preservados em três dimensões.

Seu destino mais frequente é a região do Cariri – Kellner já perdeu a conta de quantas vezes esteve lá. Seu parceiro e interlocutor mais próximo na região é Alamo Saraiva, um especialista em botânica e oceanografia de 53 anos nascido no Crato. O biólogo acabou convertido para a paleontologia depois de uma viagem de campo. “Kellner me convenceu da necessidade de alguém daqui estudar os fósseis para combater o tráfico.” No ano passado, a equipe do cearense descreveu um camarão extinto e batizou-o de Kellnerius jamacaruensis, em homenagem ao colega.

Em 2010, Saraiva conseguiu financiamento para pesquisar, em parceria com Kellner e outros colegas, as condições ambientais da bacia do Araripe no Cretáceo. O projeto previa uma colaboração com o francês Romain Amiot, especialista em geoquímica do CNRS, o Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França. O trabalho de Amiot consiste em levantar informações sobre o meio em que viviam os animais extintos. “Analisamos os elementos químicos presentes nos fósseis e interpretamos os resultados para dizer se aquele era um meio marinho, se era água doce, qual era a temperatura”, contou.
 
Em abril de 2012, Amiot veio ao Brasil coletar amostras de rochas e fósseis no Araripe. Após alguns dias no Rio, o francês embarcou com Kellner e duasalunas dele para Juazeiro do Norte, cidade vizinha ao Crato. No Ceará, juntaram-se a Alamo Saraiva e seus alunos, e passaram uma semana coletando material. As amostras de solo colhidas por Amiot eram acondicionadas em pequenos sacos devidamente catalogados – eram farelo de rochas de diferentes localidades que ele analisaria em seu laboratório em Lyon. Ao final da viagem, embalaram o material para despachá-lo com as malas.Levavam também fósseis que o grupo havia recolhido em campo. Não portavam répteis, mamíferos ou espécimes raros que fariam a felicidade de um paleontólogo.

Os pesquisadores despacharam as bagagens e aguardavam o voo na sala de embarque do aeroporto de Juazeiro do Norte, quando Kellner foi abordado por um agente da Polícia Federal. “O senhor tem fósseis na bagagem?”, quis saber. Diante da resposta afirmativa, pediu queele e o resto do grupo o acompanhassem.

Os cientistas tinham sido objeto de uma denúncia anônima, que os acusava de transporte ilegal de fósseis para comércio no exterior. Kellner alegou que, na condição de pesquisador do Museu Nacional, estava autorizado a portar o material. Pediu que o agente ligasse para o DNPM para confirmar. O policial fez a chamada de seu celular e passou-o a Kellner, com o viva-voz ligado.
Do outro lado da linha, José Artur de Andrade, o funcionário de cabeça raspada que chefia o escritório do DNPM no Crato, disse que eles não podiam transportar fósseis sem a autorização do órgão.

Os quatro foram para a delegacia da Polícia Federal em Juazeiro do Norte. Além da questão dos fósseis, o cientista francês também foi incriminado por estar em situação irregular, sem visto de trabalho. Os dois pesquisadores foram ouvidos – Amiot foi interrogado em inglês, com a tradução improvisada de um técnico de informática que “visivelmente não dominava muito bem” o idioma de Shakespeare, segundo o relato do francês. Kellner e Amiot foram detidos.

As estudantes foram liberadas e seguiram para um hotel. Ao evocar o caso, Elaine Batista Machado, aluna de doutorado de Kellner, disse que não entendeu o ocorrido – ela estava cansada de cruzar o país de ônibus, carregando fósseis. Além de preocupada com a prisão de seu orientador, ela temeu que os agentes misturassem as amostras de Amiot, o que poria toda a pesquisa a perder. “A polícia não tinha a menor ideia do que eram as amostras”, disse. “Um perguntava para o outro: mas isso aqui é fóssil?”

Presos, Kellner e Amiot passaram a noite numa sala da delegacia. O brasileiro abriu seu laptop e pôs-se a escrever e-mails e um relato do que acontecera (ele faz um diário de suas viagens, que pretende publicar). O francês, assustado com a perspectiva de sair direto para uma cela, temia por sua integridade física. No dia seguinte, teve um acesso de choro pensando no pior. “Não aguentei”, ele me contou pelo Skype.

A segunda noite de detenção se aproximava quando o valor da fiança foi fixado em 6 220 reais para cada um. Alamo Saraiva organizou uma vaquinha entre professores e funcionários da sua universidade e reuniu a soma necessária. Os pesquisadores foram soltos à noitinha. Seguiram para um hotel e embarcaram no dia seguinte. Amiot adiou seu retorno e ainda ficou quinze dias na casa de Kellner, até conseguir um salvo-conduto para sair do país.
 
Na manhã em que me relatou as desventuras daquele dia, Kellner se inflamou ao dizer que não fizera nada de errado e que fora tratado como contrabandista. “Transportei fósseis por toda a minha vida, toda vez que vou a campo tento trazer material”, alegou, exaltado. “Não há empecilho na lei para transportá-los, não tenho que pedir ao DNPM.”

No dia da prisão, dois funcionários do DNPM – José Artur de Andrade e José Betimar Filgueira – foram à Polícia Federal e prestaram informações ao delegado. Kellner considera que os dois agiram de má-fé, pois poderiam ter desfeito o mal entendido e os poupado da detenção. Em sua visão, a denúncia anônima e a atitude dos funcionários são parte de uma ação concertada para prejudicar seu trabalho e o projeto de Alamo Saraiva. O professor cearense disse que, naquela noite, ficou evidente que não havia muito que os pesquisadores pudessem fazer para se livrar da prisão. “A cadeira elétrica já estava decretada, eles só estavam ajustando a voltagem.”

A direção do DNPM não vai se pronunciar sobre o caso enquanto ele estiver na esfera judicial – Kellner está processando o órgão. Mas José Artur de Andrade não se furtou a comentar o episódio quando estive com ele no escritório regional do Crato. O funcionário disse desconhecer o autor da denúncia e negou que houvesse qualquer armação contra os cientistas. “Não ficamos de atalaia para apanhá-los, como imaginam”, afirmou. “Não temos essa índole e de maneira alguma queremos truncar as pesquisas na região.” Perguntei se ele via irregularidade na situação dos professores no dia em que foram interceptados. “Na nossa concepção, a presença do Amiot era ilegal”, ele disse.

“Desconheço qualquer autorização para que o francês pudesse sair com o material.” Andrade lembrou que quem deu voz de prisão havia sido a Polícia Federal, e não o DNPM. “Não temos poder para tanto.”

A delegacia da PF em Juazeiro do Norte funciona num prédio de estilo neoclássico, pintado de amarelo. O caminho que conduz o visitante à entrada é pavimentado com pedras cariri – algumas preservam plantas, insetos e peixes pré-históricos fossilizados. Em fevereiro, fui recebido pela delegada Rejane Maciel. Lotada havia um mês, ela não se sentia à vontade para comentar o caso (o delegado à época da prisão havia sido transferido). Perguntei-lhe se o policial que deteve Kellner e Amiot poderia ter agido com base nas alegações dos funcionários do DNPM. “O DNPM é o órgão fiscalizador e determina o que pode e o que não pode”, explicou a delegada. “Temos que agir conforme o que ele diz.”

O juiz federal que apreciou o caso decidiu, seis meses depois do ocorrido, que os pesquisadores não tinham cometido irregularidade e podiam transportar os fósseis. “Tenho por evidente”, ele escreveu na decisão, “que não havia qualquer espaço para que o DNPM exigisse dos pesquisadores prévio licenciamento ou autorização.” O juiz ainda estranhou a atitude do chefe do escritório no Crato, e afirmou que era “inconcebível” que um funcionário que ocupava seu cargo desconhecesse “os limites de sua competência”. Acrescentou que não era da alçada do DNPM fiscalizar se Amiot estava ou não em situação regular no país, e considerou que a atuação do órgão tinha sido decisiva para a prisão dos pesquisadores.
 
Baixada a poeira, Kellner disse ter solicitado uma audiência com a direção do DNPM para cobrar a abertura de um inquérito administrativo que investigasse a conduta dos funcionários do Crato. A falta de resposta reforçou sua convicção de que deveria buscar um acerto de contas na Justiça. Não foi fácil processar a instituição em que começou a carreira, pela qual disse ter carinho. “Foi ali que aprendi o que é um fóssil.”

Em junho de 2013, Kellner entrou com uma ação de indenização por danos morais e materiais contra o DNPM e contra a União. O pedido argumenta que a prisão “ilegal, infundada e descabida” manchou a reputação do paleontólogo, que passou a ter o nome associado ao tráfico de fósseis.

A ação menciona os resultados de buscas pelo nome de Kellner no Google e cita comentários postados nas reportagens que noticiaram sua prisão. “Com essa cara de chapado na foto tô achando que esse cara aí fuma os fósseis”, escreveu um leitor. “Posso ser ignorante e burro, mas não o bastante para saber que esses caras estavam roubando os fósseis na maior cara de pau”, acrescentou outro.

A indenização pedida por danos morais é de 1 milhão de reais, mais quase 5 mil reais de danos materiais por passagens canceladas e remarcadas. A advogada do pesquisador me disse que, com uma indenização desse valor, eles pretendem evitar que se repitam ocorrências do tipo, prejudiciais para a pesquisa no Brasil. Kellner explicou que não foi movido pelo aspecto financeiro. “Se quisesse dinheiro não seria paleontólogo”, brincou.

É possível que a decisão de primeira instância saia no segundo semestre, mas talvez leve anos até que o caso transite em julgado. Kellner está convencido de que vai ganhar a ação. Pretende usar o dinheiro para investir na paleontologia da bacia do Araripe e oferecer aos estudantes locais as oportunidades que teve no passado. “Quero criar um fundo que ofereça bolsas de estudo e possibilite a ida dos alunos para a SVP”, disse ele, referindo-se ao tradicional congresso da Sociedade de Paleontologia de Vertebrados, nos Estados Unidos. “Foi decisivo para minha vida.”

Romain Amiot decidiu seguir os passos de Kellner e entrou com um pedido de indenização na Justiça brasileira – está pleiteando 500 mil reais por danos morais. Disse ter aguardado em vão uma carta ou telefonema do DNPM sobre o caso. “Se esse é o melhor meio para sermos ouvidos, vamos cobrar um pedido de desculpas e uns trocados.” Amiot contou ainda que pretende voltar ao Brasil e que a prisão não afetou seu ânimo para dar continuidade à colaboração iniciada em 2012. Para isso, porém, ele precisa ter acesso às amostras que colheu no Araripe. Kellner já levou o material para o Museu Nacional, mas ainda não sabe como mandá-lo para Lyon. O brasileiro disse ter solicitado mais de uma vez ao órgão fiscalizador instruções sobre o envio do material. “O DNPM tem a obrigação de nos orientar e se omite mais uma vez”, protestou.

Alexander Kellner não perde uma oportunidade de evocar as palavras que gostaria de ver inscritas em sua lápide. Durante a preparação desta reportagem, ele as citou em três ocasiões (ouvi-as também de alunos seus). O paleontólogo já havia empregado a frase na abertura de seu livro de 2006, e provavelmente está mais convencido dela hoje. Seu epitáfio dirá o seguinte: “... e eu só queria estudar os pterossauros...”

26 de junho de 2014