sábado, 20 de junho de 2015

ROBÉLI E OS 40 LADRÕES






Na falta da lei, experimente a fé


Depois de quarenta assaltos, o casal Tesch acha que só tem uma coisa a fazer: esperar o próximo. Quando abriram o supermercado em Mariópolis, há sete anos, e o batizaram de Robéli - união de Roberto e Eliana -, não podiam imaginar até que ponto acertavam na mosca. Mariópolis, um pequeno bairro à beira do Rio Pavuna, entre o Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense, não era lá uma Suíça, mas até que parecia calmo. Eliana havia aposentado a voz de cantora - chegara a gravar discos de mpb na Europa e no Japão - e Roberto, um ex-vendedor de biscoitos, decidira virar patrão de si mesmo. Os dois matutaram um pouco e chegaram à conclusão de que um supermercadinho era uma boa coisa.

Só faltou combinar com o poder público. Nos primeiros 39 assaltos, as forças da lei ou não apareceram ou chegaram tarde demais. Somente no quadragésimo roubo foi possível prender um bandido, se bem que boa parte do mérito não coube à valorosa polícia mariopolense, mas aos métodos de combate ao crime postos em prática por um desalentado Roberto. Métodos para lá de subjetivos, diga-se, consistindo, basicamente, num sujeito contratado para desconfiar de pessoas com cara de meliante em potencial. O espião fica andando de lá para cá, ajuda a ensacar a compra de um, pergunta as horas a outro, finge comparar preços de geléia de mocotó e, nesse ínterim, mantém o olho vigilante na clientela.

Foi assim que, pela primeira vez na história de Mariópolis, capturou-se um assaltante do Robéli. O olheiro avisou ao patrão que três jovens suspeitíssimos acabavam de sair de um carro. Roberto pegou o celular, foi para o outro lado da rua e ficou à espreita. Dito e feito: era assalto. Discreto, ligou para a esposa e pediu-lhe que chamasse a polícia. Eliana, por sorte, estava logo ali, no fim da Rua Itajobi, a escassos 500 metros do supermercado, justamente ao lado do trailer da Polícia Militar - trailer este que fora plantado no local dois anos antes e que até então conseguira ser tão eficiente quanto uma carrocinha de pipoca.

Desta vez seria diferente. Os policiais saíram com sanha de justiça, e em pouco tempo tiros de fuzil e pistola explodiram nas paredes e vidraças do Robéli, levando clientes e funcionários a se jogarem atrás de frutas e legumes. Dois bandidos conseguiram fugir - a pé. O terceiro, um pouco mais atrapalhado, foi preso. Raras vezes o povo gostou tanto de um tiroteio. Foi como se os repolhos e nabos varados de bala atestassem que o Estado finalmente dera as caras naquele pedaço de mundo. Até aquela data, os Tesch só haviam contado consigo mesmos, o que não era grande coisa, dada a obsessão dos fora-da-lei. Um ex-segurança deles, por exemplo, fora o primeiro a ser rendido durante um assalto. Tentaram um sistema de câmeras de vigilância, mas enjoaram de colecionar filmes de ação em que eram sempre os protagonistas.

Uma vez, um assaltante foi lá pegar carne para o churrasco do chefe do tráfico. Bom funcionário, apresentou-se com jeito: "Quero carne de primeira para o aniversário do patrão." Obteve-a - e partiu feliz da vida, esquecido de roubar também a fita de segurança. Um mês depois, deve ter acordado em sobressalto, pois foi quando voltou ao Robéli para ver se ainda dava tempo de apagar os traços de sua ação criminosa. Dava, sim. A fita continuava intacta, longe de quaisquer anseios dos agentes da lei. Como o bandido já estava ali mesmo, e não tinha nada melhor para fazer, aproveitou para assaltar a casa uma segunda vez. Fez até uma refém, ocorrência prontamente comunicada aos policiais, que reagiram com um bocejo metafórico. O desaforado levou as fitas, as câmeras, o dinheiro e, de lambuja, uma sacola cheia de camisinhas que um cliente acabara de comprar. A pm só chegou a tempo de ouvir a chacota dos cidadãos.

Em outra oportunidade, um cliente e amigo do casal, horas depois de presenciar um assalto, desconfiou que identificara o assaltante num bairro vizinho. O larápio, muito sossegado, gastava parte do butim num fliperama. O amigo voltou ao supermercado, conferiu a gravação e não teve dúvida: não haveria no mundo um segundo par de orelhas como aquele. A polícia, avisada, informou educadamente que não podia ir à favela "por falta de equipamentos". O próprio Roberto chamou então um amigo policial e saíram juntos à cata do suspeito, que acabou admitindo o crime. A mãe do rapaz suplicou que não levassem o filho preso, prometeu que o mandaria para outro estado, insistiu, implorou... O casal, pais de um garoto da mesma idade, deixou pra lá. Um bandido a mais, um bandido a menos, àquela altura já não fazia diferença.

Nos últimos tempos, Roberto e Eliane vêm experimentando uma nova tática: entregar a Deus. Eliana anda investi-gando algumas religiões para descobrir qual delas lhes oferece maior proteção. Dia desses, deu uma ótima pontuação a São Jorge. Ela chegava ao supermer-cado quando dois homens quiseram levar seu carro. Num rasgo de desespero, sem nunca ter sido devota, resolveu invocar o santo guerreiro:

- Não façam isso, eu sou de São Jorge!

- São Jorge que se foda! - responderam os bandidos.

Aí foi um erro. Dita a impiedade, eles pisaram fundo e partiram. Ouviu-se a arrancada, e então uma freada brusca, e então uma batida esplêndida. São Jorge cravara sua espada. O carro ficou empinado na beira do rio, e os assaltantes não se espatifaram por pura misericórdia divina. De lá para cá, vem se fortale-cendo a crença de que só São Jorge fala curto e grosso com a bandidagem do Robéli.


20 de junho de 2015
Felipe Sáles

MINHA JAULA, MINHA VIDA




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20 de junho de 2015
André Dahmer

ELETROCHOQUE




Na era dos antidepressivos, o mais controverso dos tratamentos psiquiátricos está de volta depois de décadas de ostracismo


Trancuilo Tezoto caminhou lentamente até uma fileira de cadeiras pretas. Acomodou-se em uma delas, dobrou o corpo, descalçou os sapatos e as meias, tirou um par de sandálias de borracha de uma sacola de plástico e as ajeitou nos pés. Endireitou o corpo, tirou a dentadura e a aliança e as entregou a sua mulher, Inês, para que as guardasse. Recostou a cabeça na parede e respirou fundo, como se aquela operação banal lhe tivesse custado um esforço sobre-humano. Há quase cinco meses, duas vezes por semana, o metalúrgico aposentado Trancuilo Tezoto repete o mesmo ritual. Aos 69 anos, ele tem os cabelos um pouco grisalhos e uma calva que começa a se pronunciar. Os seus olhos parecem estar sempre marejados. Aos sussurros, ele definiu a depressão que há três anos o corrói: "É uma dor sem fim, uma angústia e uma tristeza que não passam nunca, um mergulho permanente no horror." Esse estado de espírito é acompanhado por fortes dores na nuca, inapetência e um cansaço infindável, exacerbado por noites agitadas e insones. Desde que afundou na depressão, Tezoto tomou um sem-número de medicamentos. Nenhum deles fez efeito. "Ele simplesmente não melhora", disse Inês. "Vê-lo assim é morrer um pouco a cada dia."

Eram oito e meia da manhã de uma quarta-feira. O ex-metalúrgico fora um dos primeiros pacientes a chegar ao ambulatório psiquiátrico do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde seria submetido a mais uma sessão de eletroconvulsoterapia, ou ECT, o novo nome para um dos mais atacados tratamentos psiquiátricos, o eletrochoque. Tezoto passara por 35 aplicações, o triplo das sessões consideradas suficientes para ultrapassar uma crise depressiva. Os efeitos não se fizeram sentir, embora ele admita que, nos dias em que toma choque, se sinta um pouco mais aliviado. Uma enfermeira sorridente logo o chamou. "Eu durmo e não sinto nada", explicou Tezoto, sem ansiedade, antes de desaparecer por uma porta entreaberta.

A sala de espera do ambulatório foi se enchendo aos poucos e, às 9 horas, já havia quinze pacientes aguardando a vez. As portas coloridas do ambulatório e a televisão de plasma, ligada permanentemente, disfarçavam a desalentadora atmosfera hospitalar. Ansiosa, uma senhora que passaria pelo seu primeiro choque perguntou à vizinha sobre os resultados do tratamento. A resposta pareceu encorajá-la. Sua interlocutora acompanhava a irmã, que, segundo ela, depois de poucas sessões melhorara bastante. Com todas as cadeiras ocupadas, a sala estava em silêncio, como se um fundo cansaço tomasse conta de todos: quem chega ali passou por todos os tratamentos possíveis para os sofrimentos da alma, e vê no choque um recurso extremo e final.

Criado há setenta anos, e praticamente banido da psiquiatria por quase quatro décadas, o eletrochoque voltou com força. Instituições de prestígio, como o hospital da Universidade Harvard, atendem pacientes voluntários para a eletroconvulsoterapia. Nos Estados Unidos, mais de 100 mil pacientes se submetem ao tratamento a cada ano. O Hospital das Clínicas é um dos poucos que nunca deixaram de usá-lo, desde que ele foi introduzido ali, nos anos 40. No final da década de 90, porém, o número de pacientes não chegava a dez por semana - hoje são oitenta. "Essa é agora a ala mais movimentada do hospital psiquiátrico", contou Sérgio Rigonatti, psiquiatra-chefe do ambulatório de ECT. "O preconceito que estigmatizou o eletrochoque vai aos poucos desaparecendo."

O tratamento amigável e respeitoso que Rigonatti recebe dos pares nos corredores do Hospital das Clínicas é indício do atenuamento do estigma. Nos anos 80, colegas lhe pespegaram um apelido depreciativo, "Tigre", sinônimo de mau profissional. Ele credita a má fama à sua defesa do eletrochoque e insistência em manter o serviço em funcionamento, no período em que a maioria dos departamentos psiquiátricos havia abandonado a técnica. "A sociedade e os médicos viam o eletrochoque como coisa de carniceiro, de torturador", disse Rigonatti. "Ideologizar o tratamento foi um dos maiores erros que a classe médica poderia ter cometido, pois condenou milhares de pessoas a sofrimentos desnecessários."

A ECT é agora prescrita para a depressão intensa e continuada, desordem bipolar (que alterna estados de euforia e depressão), alguns casos de mal de Parkinson, de catatonia (colapso emocional que paralisa o paciente) e de esquizofrenia (doença que, entre outros sintomas, provoca alucinações, reações violentas ou completa apatia). "Em algumas situações, o eletrochoque é o único recurso que pode tirar os pacientes de crises depressivas e afastar o risco de suicídio", disse, no Rio, o psiquiatra Marco Antonio Brasil, ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria e atual conselheiro da entidade. Ele considera que os excessos cometidos por clínicas e hospitais provocaram "uma reação negativa à própria terapia, e não apenas à sua má utilização".

Até os anos 30, os tratamentos psiquiátricos se restringiam basicamente à psicoterapia. Pouco se podia fazer com os internados a não ser sedá-los com barbitúricos e mantê-los sob vigilância permanente, para que não fizessem mal a si mesmos ou a outros. Assim, pacientes podiam passar o resto da vida em manicômios. Com a observação hospitalar, descobriu-se que esquizofrênicos, quando sofriam também de epilepsia, tinham melhora expressiva logo após os ataques epiléticos. Em 1917, o neuropsiquiatra austríaco Julius Wagner-Jauregg criou a malarioterapia, para induzir os ataques. O tratamento consistia em inocular a malária no paciente, para que a febre alta resultante provocasse convulsões e, em decorrência, atenuasse os sintomas. Dez anos depois, a pesquisa lhe rendeu o Prêmio Nobel de medicina. Em 1934, o médico húngaro Ladislas von Meduna testou o uso do óleo de cânfora, para causar as convulsões. Dois dias após a quinta aplicação, o seu paciente esquizofrênico levantou-se da cama e começou a falar, pela primeira vez em quatro anos. Apesar do sucesso, as dores e aflições lancinantes, que a cânfora provocava antes das convulsões, fizeram com que o tratamento fosse abandonado.

O eletrochoque se baseia também na indução de ataques. Ele foi aplicado pela primeira vez pelo médico italiano Ugo Cerletti, que colocou dois eletrodos sobre a cabeça do paciente e provocou a convulsão por meio da corrente elétrica. O paciente inicial foi um homem de 39 anos, encontrado em estado delirante, numa estação de trem, em Roma. Diagnosticado como esquizofrênico, em 14 de abril de 1938 ele foi submetido à primeira sessão de eletrochoque. Quando acordou, Cerletti perguntou-lhe: "O que aconteceu com você?" A sua resposta, segundo o relato do médico, foi: "Não sei, talvez eu tenha dormido."

O grande inconveniente dos eletrochoques, no início, era serem feitos sem relaxamento muscular e anestesia. Os doentes se debatiam e fraturavam os ossos. Também vomitavam, engoliam as secreções, contraíam doenças respiratórias e, às vezes, morriam sufocados. Os equipamentos, sobretudo em hospitais públicos, eram mal regulados, o que fazia com que os choques fossem excessivos ou ineficazes. Nesse quadro, o tratamento ficou associado à violência e ao medo. "Os pacientes eram colocados em fila indiana e seguravam-se uns aos outros, quando iam tomar o choque", contou Mário Eduardo da Costa Pereira, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp. A maioria deles era forçada a se submeter à terapia, bastando que um médico a prescrevesse. Entre os anos 40 e 50, estima-se que 1 milhão de americanos tenham recebido choques compulsoriamente. Para piorar, o eletrochoque veio a ser usado como punição. "Era comum, em hospitais de todo o mundo, os pacientes mais rebeldes serem submetidos ao eletrochoque à vista dos outros, para que o suplício servisse de exemplo", disse Pereira.

No final dos anos 40, no Hospital Bellevue, em Nova York, crianças de menos de 4 anos, diagnosticadas como esquizofrênicas, receberam choques diários para ficarem, como diz um relato da época, "menos excitadas e ansiosas". Pesquisas posteriores constataram que menos de 30% delas eram de fato esquizofrênicas; a maior parte tinha apenas desordens de comportamento que hoje seriam catalogadas como hiperatividade. Durante a Guerra Fria, em busca do aperfeiçoamento de técnicas de lavagem cerebral, a CIA financiou as pesquisas de um psiquiatra chamado Donald Ewen Cameron, que submeteu seus pacientes a sessões de eletrochoque. Nos anos 60 e 70, o uso de choques como instrumento de tortura foi registrado na Hungria, na União Soviética e na Argentina.

Num final de tarde, Austregésilo Carrano fumou quinze cigarros durante uma hora de conversa numa mesa de bar, em uma transversal da avenida Paulista. Quando tinha 17 anos, seu pai achou um cigarro de maconha no seu quarto e encaminhou-o para tratamento médico. "Fui diagnosticado como esquizofrênico e recomendaram eletrochoques", contou Carrano. Durante um ano e meio, foi submetido a 21 sessões de eletrochoque. Às seis horas da manhã ele era trancafiado num quarto. "Eram quatro horas de imensa agonia até a chegada do psiquiatra." Quando o médico aparecia, ele era imobilizado na cama por dois enfermeiros que forçavam seus joelhos contra o tórax. Enfiavam-lhe então um tubo de plástico na boca para que não mordesse a língua. Dois eletrodos eram colocados nas têmporas, e a máquina disparava os choques por 25 segundos, provocando convulsões de quase dois minutos. "A sensação era de morte", contou Carrano. "A convulsão era tão violenta que eu desmaiava", além de vomitar, urinar e defecar nas roupas. No tratamento, quebrou dentes e fraturou uma clavícula e o maxilar.

Carrano contou o seu drama no livro Canto dos Malditos, transformado depois no filme Bicho de Sete Cabeças, dirigido por Laís Bodanzky. Hoje ele integra o Movimento Antimanicomial, que defende o fim das internações em manicômios e dos tratamentos com eletrochoque. "Não posso acreditar que essa terapia do terror traga qualquer efeito positivo", disse. "A mim, só causou dor, desespero, revolta. Durante anos, vivi escondido, fugindo das pessoas, completamente traumatizado."

A enfermaria de eletroconvulsoterapia do Hospital das Clínicas de São Paulo tem cinco camas, separadas por biombos. Numa manhã de quinta-feira, todas elas estavam ocupadas. Alguns pacientes dormiam, sob o efeito da anestesia. Outros começavam a despertar. Uma enfermeira mediu a pressão arterial de um homem de 41 anos, auscultou o seu coração e o interrogou sobre dores ou mal-estar. Ela analisou o seu hemograma, o exame de urina e as taxas de glicose, uréia e potássio. Um psiquiatra entrou e avisou que estava tudo pronto. O homem foi levado a um pequeno centro cirúrgico, onde um clínico e um anestesista lhe fizeram um eletrocardiograma. Aplicaram-lhe anestesia geral (de quinze minutos de duração) e um relaxante muscular. Dois eletrodos foram fixados na sua cabeça, e através deles o psiquiatra fez circular uma corrente elétrica por seis segundos. O paciente mexeu levemente um dedo do pé. Desacordado, voltou vinte minutos depois à enfermaria, acompanhado por um enfermeiro. Ao despertar, com biscoitos quebrou seu jejum iniciado às 22 horas do dia anterior e foi liberado para voltar para casa.

No final dos anos 80, era raro acontecer de pacientes irem espontaneamente a um hospital para receber eletrochoques. A mudança ocorreu aos poucos. Os Estados Unidos, onde o procedimento chegou a ser proibido em 32 Estados, foram o primeiro país a reabilitá-lo. No Brasil, em junho de 2002, o Conselho Federal de Medicina baixou uma resolução normatizando seu uso. A resolução aponta a técnica como "um tratamento eficaz e seguro, mas que só deve ser aplicado em ambiente hospitalar". O documento enumera uma série de exigências, tais como "obter o consentimento por escrito do paciente, e, em caso de seu impedimento, a responsabilidade recai sobre os seus familiares". Também determina que é "obrigatória a avaliação das condições cardiovasculares, respiratórias, neurológicas e odontológicas do paciente" e que "o eletrochoque só poderá ser aplicado sob anestesia".

Apesar das exigências, o Ministério da Saúde ainda vê o tratamento com reservas. A Lei Antimanicomial, aprovada em 2001 para reduzir as internações em hospitais públicos, autorizou o eletrochoque apenas aos pacientes internados. No eixo Rio-São Paulo, ele só é realizado no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro e no Hospital das Clínicas, que pertence ao governo paulista. Como o Sistema Único de Saúde, o SUS, não cobre o tratamento ambulatorial, quem sustenta o serviço paulista é a rede estadual. Essa situação gera um mal-estar entre as esferas federal e estadual de saúde.

O psiquiatra Elias Monteiro Lino é um homem expansivo cujo bom humor se desfaz quando discute o pagamento da eletroconvulsoterapia. Coordenador do Departamento de Saúde Mental durante o governo de Mario Covas, Lino defende os eletrochoques. "Se ele é o único tratamento que surte efeito, por que o Ministério da Saúde não garante o seu acesso às pessoas mais pobres?", perguntou. No Hospital das Clínicas, a maior parte dos pacientes de eletrochoque é composta de particulares. Eles desembolsam 500 reais por sessão. Enquanto isso, os pacientes do SUS precisam se candidatar a uma vaga. "A fila de espera é enorme", disse Selma Lopes Pacheco, enquanto aguardava o retorno da filha de 21 anos, que se submetia à eletroconvulsoterapia para tratamento de um transtorno bipolar. "Ainda bem que eu consegui que ela fosse atendida pelo SUS, porque não teria a menor condição de pagar o tratamento."

Para o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, coordenador nacional do Serviço de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, "o eletrochoque serve para casos muito específicos; não podemos banalizar o seu uso. Nossa preocupação é dar um tratamento mais humano aos doentes mentais e, na maioria dos casos, os medicamentos fornecidos pelo Ministério atendem a essas necessidades". Ele é irmão do ex-deputado Paulo Delgado, do PT de Minas Gerais, autor da Lei Antimanicomial. Sua prioridade são os Centros de Atendimento Psicossocial, os Caps, postos de saúde psiquiátricos onde o paciente passa o dia, voltando para casa à noite. Para Pedro Delgado, o eletrochoque não deve ser adotado como política pública.

A Clínica da Gávea é um hospital psiquiátrico privado no Rio que fica no meio de um parque. Ali, num casarão amarelo, a psiquiatra Julieta Guevara instalou um serviço de eletroconvulsoterapia. Numa sala de apenas dois leitos, a psiquiatra faz cinco atendimentos por dia, acompanhada de um anestesista e de um enfermeiro. Os procedimentos começam às seis horas da manhã e terminam por volta do meio-dia. A procura é grande porque psiquiatras de todo o Brasil encaminham pacientes para a clínica. Cada sessão custa 700 reais. "O eletrochoque virou um tratamento de elite", lamentou a psiquiatra Julieta Guevara. O pesquisador Harold Sackeim também confirma isso ao dizer que, nos Estados Unidos, "a ECT é muito mais empregada em clínicas particulares e em hospitais universitários. Os pacientes que recebem o tratamento são justamente aqueles de maior poder aquisitivo e que têm acesso a profissionais mais conceituados e experientes".

Até a metade dos anos 50, o eletrochoque era o tratamento mais usado para doenças mentais severas. A psicoterapia era eficiente nos casos de neuroses - o que hoje se chamaria de ansiedade -, mas era incapaz de tirar um paciente de uma crise catatônica ou de um estado psicótico (quando o paciente sofre alucinações). A situa-ção mudou com o incremento da psicofarmacologia. Em 1954, o laboratório Smith-Kline (hoje Glaxo Smith-Kline) lançou o Thorazine, que atenua os sintomas de psicóticos. Em seguida, vieram o Tofranil e o Elavil para tratar quadros depressivos, o Lithium para a mania e o Haldol, também para as psicoses. Só com o Thorazine, em 1970 os lucros do Smith-Kline chegaram a 116 milhões de dólares. "Para os médicos, era muito mais fácil e menos controverso indicar medicamentos do que o eletrochoque", explicou o psiquiatra Marco Antonio Brasil.

Nos anos 80, uma nova geração de medicamentos, os inibidores de recaptação de serotonina, como o Prozac e o Zoloft, pareciam ser a solução final para todos os sofrimentos mentais. Mas, já ao final da década, médicos, pesquisadores e pacientes começaram a perceber que essas drogas não funcionavam para todo mundo e, para alguns, os efeitos colaterais podiam ser devastadores.

Em 1985, o Instituto Psiquiátrico do Estado de Illinois fez uma revisão dos estudos sobre a eletroconvulsoterapia. Ela revelou que pacientes submetidos ao eletrochoque tinham 20% a mais de chance de melhorar do que aqueles tratados com antidepressivos tricíclicos, e 45% se comparados aos submetidos a outros tipos de medicação. E um estudo feito na Alemanha, em 1997, concluiu que a ECT era "claramente superior e substancialmente mais rápida" do que o tratamento com Paxil, um dos antidepressivos considerados mais eficazes.

Sentada numa cadeira de rodas, para evitar riscos de queda depois da sedação, Aurora Lopes, de 74 anos, saiu sorridente do ambulatório psiquiátrico. Sua filha Eliane a acompanha a cada três meses ao Hospital das Clínicas. Com a morte de dois filhos e do marido, Aurora passou sete anos numa depressão arrasadora: não comia, não dormia e não falava. Chegou a pesar 35 quilos e passou a ser alimentada por meio de sonda. Veio a tomar onze comprimidos por dia, mas vivia o tempo todo agitada, dizendo que queria morrer. A angústia era tão grande que ela se atirava no chão e batia com a cabeça na parede. "Tínhamos que amarrá-la para que não se ferisse", contou a filha. "Era muita aflição que eu sentia", explicou Aurora. Finalmente a filha apelou para o eletrochoque. "Na quarta sessão ela já começou a apresentar melhoras. Na 12ª voltou a conversar, a se interessar por tudo. Agora ela sai, viaja e leva uma vida normal."

Os cientistas não têm uma explicação conclusiva sobre o mecanismo do eletrochoque. Ainda não se sabe, por exemplo, por que a terapia é mais eficiente nas depressões graves e nos transtornos bipolares. As diversas células do cérebro comunicam-se através de pulsos energéticos, a neurotransmissão. Vários neurotransmissores - substâncias químicas que intervêm no processo - já foram identificados. Um é a dopamina, associada à sensação de prazer. Outro é a serotonina, envolvida no controle do sono, do apetite e do humor. Um terceiro é a adrenalina, que é ativada nas situações de perigo, preparando o organismo para o combate ou a fuga. Em casos de transtornos mentais, esses neurotransmissores entram em pane. Na depressão, imagina-se que as informações de bem-estar cheguem truncadas. O resultado é a apatia, a tristeza, a angústia, a insônia. "É como a brincadeira do telefone sem fio", comparou Julieta Guevara, durante uma conversa em seu consultório na Barra da Tijuca. "A informação passada através de um cochicho nunca chega correta até o último da fila." Da mesma forma, quando algo na neurotransmissão começa a sair errado, parte da informação se perde, e, como os neurônios no final da linha não sabem o que se espera deles, dá-se a confusão, da qual resultariam os transtornos mentais.

Julieta Guevara acredita na hipótese de que os estímulos provocados pelo eletrochoque limpem as conexões entre os neurônios, de modo que a neurotransmissão passe a se realizar de forma clara, resultando na volta do equilíbrio da mente. O psiquiatra Sérgio Rigonatti utiliza uma velha imagem para tentar ilustrar o efeito da terapia: "É como o tapa que dávamos nos antigos televisores, para que a imagem defeituosa voltasse ao normal." O "tapa" elétrico no cérebro provocaria uma desconexão momentânea dos neurônios, que seriam religados de maneira diferente.

A convulsão pode ser provocada por diferentes formas de ondas elétricas. Até o começo dos anos 90, a onda empregada era semelhante à corrente elétrica que se obtém numa tomada de parede, gerada por uma voltagem média de 120 volts. Nos aparelhos mais recentes, a corrente elétrica aumenta e diminui rapidamente, de maneira que os impulsos elétricos sejam breves. Por serem mais parecidos com os sinais produzidos pelo próprio cérebro, tais pulsos são mais rápidos e eficazes na indução das convulsões e reduzem os efeitos colaterais como o enjôo e a dor de cabeça. Com isso, a duração da descarga elétrica ficou reduzida para, no máximo, oito segundos, enquanto nos aparelhos mais antigos podia chegar a quase meio minuto.

O psiquiatra Rafael Bernardon Ribeiro, do Hospital das Clínicas de São Paulo, passou a defender o eletrochoque quando fez residência, há três anos. "Mas não se deve transformá-lo numa panacéia para todos os males da mente, como ocorreu com os antidepressivos", ele explica. Ribeiro sustenta também que o tratamento é seguro inclusive para grávidas, "porque as drogas podem afetar o feto". Ainda assim, acredita que é preciso tentar os medicamentos. "O eletrochoque é quase um procedimento cirúrgico, em função da anestesia", diz. "Exige jejum de oito horas, é proibido usar unhas pintadas, spray de cabelo, lentes de contato, próteses dentárias, jóias ou qualquer outro objeto que possa causar curto-circuito entre os eletrodos, provocando queimaduras no paciente. E também há efeitos colaterais, como a perda temporária da memória."

Mathilda Kóvak é o pseudônimo de Ignez Imbassay, escritora e compositora carioca. Ela é uma mulher extrovertida cujo telefone em seu apartamento toca com freqüência. São amigos ou colegas, combinando algum programa ou um novo projeto. Mathilda acabou de lançar um livro infantil, A Caixa de Pandura, e se prepara para iniciar um programa de rádio. Durante mais de trinta anos, ela sofreu de depressão. Aos 15 anos, soube que tinha câncer no fêmur. A cada cirurgia aumentava a sua tristeza. O quadro piorou quando seu pai se suicidou. "Eu fui afundando numa dor sem fim", contou ela. "As pessoas diziam que eu tinha que me animar. Eu até me esforçava, mas pedir a um deprimido que seja feliz é a mesma coisa que pedir a um paraplégico que ande." Mathilda passou incólume por todos os tipos de drogas antidepressivas. Há dois anos, recorreu ao eletrochoque. "Na quarta sessão eu já era outra pessoa", contou ela. "De repente eu saí da escuridão em que vivia. Não sei por que não me receitaram antes."

Segundo o psiquiatra Marco Antonio Brasil, em uns poucos casos o eletrochoque deveria ser encarado como a primeira recomendação, e não o último recurso. Um deles é quando o paciente apresenta tendências suicidas. "Nessa situação, não há o que pensar: não dá para esperar que os medicamentos e as psicoterapias façam efeito." O que ocorre, admitiu, é que muitos psiquiatras relutam em receitar o choque. "Não é confortável sugerir esse tratamento, pois as pessoas ainda se espantam e associam a técnica à loucura", disse ele.

O Instituto Madison de medicina, em Wisconsin, nos Estados Unidos, lançou recentemente um guia sobre eletroconvulsoterapia, para tranqüilizar médicos e pacientes. O guia atribui ao cinema e à literatura boa parte da má fama do eletrochoque. Hollywood nunca gostou dele. Entre 1948 e a virada do século, foram realizados 22 filmes em que o tratamento aparece como vilão. O mais incisivo foi Um Estranho no Ninho, de Milos Forman, protagonizado por Jack Nicholson. O filme, de 1975, baseou-se num romance de Ken Kesey, um dos expoentes da contracultura nos Estados Unidos. No livro, Randal McMurphy, o personagem interpretado por Nicholson, é transferido de uma colônia penal rural para um hospital psiquiátrico. McMurphy não está doente e espera encontrar no manicômio uma vida mais fácil. A sua rebeldia o transforma em cobaia de uma enfermeira tirânica. O filme mostra o eletrochoque como um instrumento de tortura. No fim, McMurphy é submetido a uma lobotomia e reduzido a um estado vegetativo.

Um Estranho no Ninho, publicado em 1962, reflete uma época. Nos anos 60 e 70, as instituições psiquiátricas foram consideradas baluartes da violência do sistema contra o indivíduo. Ken Kesey defendia as idéias do psiquiatra italiano Franco Basaglia, um crítico da cultura médica que via o indivíduo como mero objeto de uma intervenção clínica. E o eletrochoque representaria o que há de mais violento e desumano nessa intervenção. O filme de Forman propagou essa visão por todo o mundo. Uma pesquisa feita na Irlanda, em 1983, mostrou que 60% das pessoas que assistiram ao filme passaram a defender o fim da terapia.

"A imagem do filme Um Estranho no Ninho não sai da minha mente. Eu lembro dos enfermeiros pulando sobre Jack Nicholson, amarrando-o à cama, onde seu corpo é atormentado por tremores e espasmos violentos. Lembro quão louco ele ficava depois disso. Ele certamente não melhorava muito com as violentas dores de cabeça e todos os tipos de efeitos colaterais. Sou um ser social e estou consciente do que as pessoas pensarão de mim. Estar em tratamento por ECT transforma você em um membro da família dos doentes mentais."

O relato é de Kitty Dukakis, mulher do ex-governador de Massachusetts, Michael Dukakis, candidato democrata à presidência dos Estados Unidos em 1988. Durante vinte anos, ela padeceu de depressão e alcoolismo. Kitty tentou todos os medicamentos, e nenhum funcionou. Em 2001, ela decidiu, para espanto de alguns familiares, tratar-se com eletrochoque. Na primeira das doze sessões de sua terapia - feita com o pseudônimo de Jane Dee, para não constranger o marido - ela só conseguiu pensar nas cenas do filme. Ao término do tratamento, Kitty saiu da crise.

Em 2006, publicou o livro Choque, o Poder Curativo da Eletroconvulsoterapia (ainda não lançado no Brasil). Primeiro, lançou-o na Califórnia, até hoje um dos estados americanos mais refratários ao tratamento. Um capítulo inteiro descreve a maneira como a literatura e o cinema tratam o eletrochoque. Ela sustenta que a ficção fez com que médicos e doentes, aterrorizados, trocassem o eletrochoque pelos medicamentos. Com abordagens preconceituosas, diz Kitty Dukakis, o cinema e a literatura beneficiaram indiretamente os laboratórios farmacêuticos.

Os antidepressivos continuam a ser vendidos em larga escala. Mas são cada vez mais contestados. Na Inglaterra, estima-se que 3,5 milhões de pessoas tomem inibidores de serotonina. Em um só ano, foram 29 milhões de prescrições dessas drogas, sendo o Prozac, do laboratório Eli Lilly, a mais vendida entre todas. Pesquisas feitas nos Estados Unidos com seis antidepressivos (entre eles o Prozac e o Seroxat) revelaram que eles surtiram efeito em menos da metade dos indivíduos que os tomaram.

Em A Perda da Tristeza: Como a Psiquiatria Transformou Tristezas Normais em Desordens Depressivas, os americanos Allan Horwitz e Jerome Wakefield, calculam que os grandes laboratórios americanos gastam cerca de 25 bilhões de dólares ao ano com marketing e lobistas. Também contam a história do jogador de futebol americano Ricky Williams. Em 2002, no programa de televisão de Oprah Winfrey, o jogador disse sofrer de uma "timidez dolorosa e crônica". Descobriu-se depois que Williams fora pago pelo laboratório Glaxo Smith-Kline para falar que sua timidez era doentia. Em 2003, uma propaganda do Zoloft, publicada no American Journal of Psychiatry, mostrava uma jovem cabisbaixa, com um chapéu lhe encobrindo os olhos, e aparecia gravada uma pergunta: "Ela é apenas tímida? Ou isto é uma desordem de ansiedade social?" Logo abaixo, se lia: "Zoloft, agora indicado para desordens de ansiedade social."

Em Timidez: Como um Comportamento Normal Se Tornou uma Doença, Christopher Lane acusa os laboratórios de ocultarem os efeitos colaterais da maioria dos antidepressivos. Só nas versões mais recentes do Prozac foram incluídas na bula advertências sobre a possibilidade de tremores incontroláveis, diminuição da capacidade sexual, idéias de suicídio e autodestruição. Em Deixe-os Comer Prozac, David Healy, ex-secretário da Associação Britânica de Psicofarmacologia, censura as companhias farmacêuticas, por terem vendido a idéia de que a depressão seria o resultado direto de uma carência de serotonina no cérebro. Assim, muita gente que poderia estar precisando apenas de aconselhamento foi exposta a riscos desconhecidos.

Dados da Organização Mundial de Saúde indicam que, no ano 2000, a depressão era a quinta causa de incapacitação. Em 2020, poderá ser a segunda. Porém, são dados que devem ser vistos com cautela. "Até que ponto a tristeza provocada por perdas e frustrações não está sendo confundida com depressão?", questiona Marco Antônio Brasil. "Sofrimento faz parte da vida. Nem todas as nossas dores podem ser sanadas com remédio."

O psiquiatra paulista Jonas Melman, da Secretaria Municipal de Saúde, acha que, apesar dos exageros, os medicamentos são a forma mais adequada de tratar os transtornos da mente. Ele acha lamentável que uma técnica invasiva como o eletrochoque tenha voltado com força ao receituário psiquiátrico. "Como os medicamentos estão cada vez mais eficientes, a necessidade de se recorrer ao eletrochoque deveria ser cada vez menor", ele afirma. "Em vez disso, cada vez mais pacientes são submetidos a essa terapia."

Para Marco Antonio Brasil, a psiquiatria tem deixado em segundo plano a origem psicossocial dos transtornos psicológicos. Muitos deles, como a bulimia, a anorexia, o estresse e a síndrome do pânico, ele diz, são provocados por pressões da vida contemporânea. O psiquiatra Renato Del Sant, do Hospital das Clínicas de São Paulo, defensor dos eletrochoques, vai na mesma linha: "Os remédios estão substituindo totalmente as conversas com os pacientes. Corremos o risco de tratar a doença mental meramente como distúrbio físico, e não como um comportamento humano."

Se o paciente está triste, toma Prozac; se está impotente, toma Viagra. A visão biológica é tão preponderante que as escolas de medicina, segundo ele, estão reduzindo a carga horária dos estudos de psicopatologia e aumentando a dos métodos neurocientíficos. "Dessa forma, a psiquiatria tende a desaparecer", radicaliza Del Sant. "Nos tornaremos neurocientistas, ou neurologistas, deixando a psicopatologia para os psicanalistas."

Menos de um mês depois do tratamento com eletrochoque, Trancuilo Tezoto tentou se suicidar. Subiu na laje de sua casa e se jogou de uma altura de quase 5 metros. Dias antes, sua mulher insistira com os médicos da psiquiatria do Hospital das Clínicas para que o internassem. "Os médicos me disseram para tomar conta dele até que surgisse uma vaga no hospital", ela contou. "Mas ele estava muito triste, esperou um descuido meu e se jogou. Nem os remédios, nem o eletrochoque foram capazes de pôr fim a sua angústia."


20 de junho de 2015
Consuelo Dieguez

O QUE APRENDEMOS, SE É QUE APRENDEMOS ALGUMA COISA?




De que serve o culto moralista da memória? Para que repetir "nunca mais" se a tortura de Estado voltou e é defendida por políticos e intelectuais?



O século XX mal acabou e suas disputas e realizações, ideais e medos já se perderam nas sombras do esquecimento. 
No Ocidente, sempre que possível tivemos grande pressa em desconsiderar a bagagem econômica, intelectual e institucional do século passado, e encorajamos os outros a fazer o mesmo. 
A partir de 1989, com uma confiança ilimitada e uma reflexão insuficiente, deixamos o século XX para trás. Enveredamos sem medo no seu sucessor, imersos em meias verdades a serviço do que desejamos crer: o triunfo do Ocidente, o fim da História, o momento unipolar americano, a marcha inelutável da globalização e da liberdade de mercado.

A crença de que aquele tempo ficou para trás e agora tudo é diferente nos afeta bem mais do que os finados dogmas e instituições comunistas dos tempos da Guerra Fria. 
Durante os anos 90, e novamente em seguida ao 11 de Setembro de 2001, mais de uma vez me choquei com a perversa insistência contemporânea em não compreender o contexto dos dilemas de hoje; em não dar ouvidos a algumas das cabeças mais sensatas das últimas décadas. 
Com a insistência em procurar ativamente esquecer, em vez de lembrar; em negar a continuidade e proclamar o ineditismo em todas as ocasiões possíveis. Adquirimos uma estridente insistência em reafirmar que o passado pouco tem de interessante a ensinar. 
O nosso mundo, asseguramos, é novo; seus riscos e oportunidades não têm precedentes.

Depois de 1918, enquanto todos concordavam que as coisas nunca voltariam a ser como antes, a forma que o mundo do pós-guerra deveria assumir foi idealizada e contestada em toda parte, sob a longa sombra da experiência e do pensamento do século XIX. 
A economia neoclássica, o liberalismo, o marxismo (e seu enteado, o comunismo), a "revolução", a burguesia e o proletariado, o imperialismo e o "industrialismo" - os blocos usados na constituição do mundo político do século XX - eram todos artefatos do século XIX. Mesmo aqueles que, a exemplo de Virginia Woolf, acreditavam que "por volta de dezembro de 1910 o caráter humano mudou" - que as profundas mudanças culturais do fin de siècle europeu tinham transformado completamente os termos da troca intelectual - ainda assim dedicavam uma quantidade surpreendente de energia travando uma luta inglória com a sombra dos seus predecessores. O peso do passado se fazia sentir no presente.

Hoje, em contraste, tratamos o século passado com grande ligeireza. Claro que lhe erguemos memoriais em toda parte: santuários, placas, locais de visitação. Até mesmo parques temáticos de fundo histórico são monumentos públicos ao "passado". 
Mas o século XX que celebramos é apresentado curiosamente fora de foco. 
A esmagadora maioria dos sítios oficialmente dedicados à conservação da memória do século XX é ou confessadamente nostálgico-triunfalista (louvando homens famosos e celebrando grandes vitórias) ou então, e cada vez mais, oportunidade para a rememoração de um sofrimento seletivo.

O século XX, assim, está a caminho de ser transformado num palácio de memória moral: uma câmara de horrores históricos, com usos pedagógicos, cujas várias estações atendem pelos rótulos de "Munique", "Pearl Harbor", "Auschwitz", "Gulag", "Armênia", "Bósnia" ou "Ruanda". Com o 11 de Setembro figurando como uma espécie de coda suplementar, um sangrento pós-escrito é dirigido àqueles que quiseram esquecer as lições do século, ou deixaram de aprendê-las. 
O problema dessa representação lapidar do século passado como uma era singularmente horrenda, da qual hoje, felizmente, já emergimos, é que não é uma boa descrição. De muitas maneiras, foi de fato uma época terrível, um tempo de brutalidade e sofrimento em massa talvez sem igual em toda a história conhecida. 
O problema é a mensagem: que deixamos tudo isso para trás, que o significado do passado é claro e que agora podemos avançar - desembaraçados dos erros anteriores - rumo a tempos melhores e diferentes.

Essa rememoração oficial não contribui para a nossa avaliação ou consciência do passado. Funciona como um substituto, um sucedâneo. Em vez de ensinarmos história, levamos as crianças a percorrer museus e memoriais e, o que é pior, as estimulamos a ver o passado - e as suas lições - através do vetor do sofrimento dos seus antecessores. 
Hoje, a interpretação "comum" do passado recente compõe-se, assim, de fragmentos múltiplos de vários passados, cada um deles (judeu, polonês, sérvio, armênio, alemão, asiático-americano, palestino, irlandês, homossexual) marcado pela condição ostensiva de vitimado.

O mosaico resultante, em vez de nos ligar a um passado comum, separa-nos dele. Por maiores que fossem os defeitos das narrativas nacionais que nos eram ensinadas, por mais que o seu foco fosse seletivo e a sua mensagem instrumental, pelo menos elas tinham a vantagem de fornecer à nação referências passadas para a experiência do presente. 
A história tradicional, da maneira como foi ensinada a gerações de escolares e universitários, dava um sentido ao presente por meio da referência ao passado: nomes, lugares, inscrições, idéias e alusões podiam ser organizados numa narrativa memorizada do dia de ontem. Atualmente, esse processo se inverteu. 
O passado só adquire sentido através da referência às nossas múltiplas, e muitas vezes contrastantes, atribulações atuais.

Esse caráter estrangeiro e desconcertante do passado deve-se, em parte, à mera velocidade das mudanças contemporâneas. 
A "globalização" realmente revirou a vida das pessoas de tal forma que seus pais ou avós teriam grande dificuldade em imaginar. 
Muito do que, por décadas e mesmo por séculos, nos parecia familiar e permanente vem caindo cada vez mais rápido no esquecimento. 
O passado, ao que tudo indica, é realmente um outro país: nele, as coisas eram feitas de outra maneira.

A expansão das comunicações é um caso exemplar. Até as últimas décadas do século XX, a maioria das pessoas tinha um acesso limitado à informação. 
Graças à educação nacional, à rádio e televisão controladas pelo Estado e a uma cultura impressa comum, todos passaram a ter a mesma probabilidade de saber praticamente as mesmas coisas dentro de um Estado, nação ou comunidade. 
Hoje, ocorre o contrário. A maioria das pessoas fora da África subsaariana tem acesso a uma quantidade quase infinita de dados. Na falta, porém, de uma cultura comum, as informações e idéias fragmentadas que as pessoas escolhem ou encontram são determinadas por uma multiplicidade de preferências, afinidades e interesses. 
Com o passar dos anos, cada um de nós tem menos pontos em comum com os mundos em rápida multiplicação dos nossos próprios contemporâneos, sem falar do mundo dos que vieram antes de nós.

Qual é a conseqüência mais funesta da nossa pressa em deixar para trás o século XX? Nos Estados Unidos, pelo menos, é termos esquecido do que a guerra significa. E por um motivo particular. Em boa parte do continente europeu, da Ásia e da África, o século XX foi vivido como uma sucessão de guerras. 
A guerra representou invasão, ocupação, deslocamento, privação, destruição e assassinatos em massa. Os países que perdiam as guerras muitas vezes também perderam habitantes, território, recursos naturais, segurança e independência. 
Mesmo os países que emergiam formalmente vitoriosos tinham experiências comparáveis, e rememoravam a guerra com uma feição semelhante à dos derrotados.

A Itália depois da I Guerra Mundial, a China depois da II Guerra e a França depois de ambas podem ser mencionadas nesse caso: todas saíram "vencedoras", mas devastadas. E houve ainda as nações que venceram uma guerra, mas "perderam a paz", desperdiçando as oportunidades proporcionadas pela vitória. 
Os aliados ocidentais em Versalhes, assim como Israel, nas décadas que se seguiram à sua vitória de junho de 1967, são os exemplos mais flagrantes.

Além disso, no século XX, guerra quase sempre significou guerra civil: muitas vezes encoberta pelo rótulo de ocupação ou "libertação". 
A guerra civil desempenhou um papel significativo na "limpeza étnica", e provocou alguns dos grandes deslocamentos forçados de populações no século XX, tanto na Índia e na Turquia como na Espanha e na Iugoslávia. Da mesma forma que a ocupação estrangeira, a guerra civil é uma das terríveis memórias "comuns" dos últimos 100 anos. Em vários países, a "superação do passado" - isto é, um acordo para ultrapassar ou esquecer (ou negar) a memória recente de conflitos entre comunidades - transformou-se em objetivo primário de governos do pós-guerra, às vezes alcançado, às vezes causador de excessos.

A guerra não era apenas uma calamidade em si mesma. Ela trazia outros horrores em seu rastro. A I Guerra Mundial levou à militarização sem precedentes da sociedade, à adoração da violência e a um culto de morte que durou muito mais que a guerra propriamente dita e preparou o terreno para as catástrofes políticas que se seguiram. 
Os Estados e as sociedades tomados durante e depois da II Guerra Mundial, por Hitler ou Stálin (ou pelos dois, em seqüência), viveram não só a ocupação e a exploração, como também a degradação e a corrosão das leis e das normas da sociedade civil. 
As próprias estruturas da vida civilizada - as regras, as leis, os professores, os policiais, os juízes - desapareceram ou assumiram um significado sinistro: longe de garantir a segurança, o próprio Estado transformou-se na maior fonte de insegurança.

A reciprocidade e a confiança, seja entre vizinhos, colegas, dirigentes ou comunidade, entraram em colapso. Comportamentos que seriam aberrantes em circunstâncias habituais - roubo, desonestidade, dissimulação, indiferença para com o infortúnio alheio e exploração oportunista do seu sofrimento - tornaram-se não apenas normais como, às vezes, os únicos meios de alguém salvar a família e se salvar. A divergência ou a oposição eram sufocadas pelo medo universal.

A guerra, em suma, desencadeava um comportamento que seria inconcebível, além de aberrante, em tempos de paz. É a guerra, e não o racismo, o antagonismo étnico ou o fervor religioso, que leva à atrocidade. A guerra - a guerra total - sempre foi a condição prévia crucial para a criminalidade em massa na era moderna. 
Os primeiros campos de concentração foram criados pelos britânicos durante a Guerra dos Bôeres, entre 1899 e 1902. Sem a I Guerra Mundial, não haveria o genocídio dos armênios e seria altamente improvável que tanto o comunismo quanto o fascismo se apoderassem de Estados modernos. 
Sem a II Guerra Mundial não haveria o Holocausto. Não houvesse o envolvimento forçado do Camboja na Guerra do Vietnã, jamais teríamos ouvido falar de Pol Pot. 
Quanto ao efeito brutalizante da guerra sobre os próprios soldados comuns, ele foi copiosamente documentado.

Os Estados Unidos conseguiram passar ao largo de quase tudo isso. Os americanos talvez sejam o único povo que viveu o século XX sob uma luz muito mais benfazeja. 
Os Estados Unidos nunca foram invadidos. Não perderam vastas quantidades de cidadãos, nem grandes parcelas de território. 
Embora humilhados em distantes guerras neocoloniais (no Vietnã e, agora, no Iraque), jamais sofreram as plenas conseqüências de uma derrota. 
A despeito da sua ambivalência em relação às iniciativas mais recentes, a maioria dos americanos ainda acha que as guerras travadas pelo seu país foram, em sua maioria, "guerras boas".

Os Estados Unidos aumentaram bastante seu papel entre as nações após as duas guerras mundiais - uma situação bem diferente do que aconteceu com a Grã-Bretanha, também indiscutivelmente vitoriosa nesses conflitos, mas ao preço da quase-bancarrota e da perda de um império. 
Além disso, em comparação com os outros principais poderes litigantes do século XX, os Estados Unidos perderam relativamente poucos soldados nos campos de batalha, e praticamente não tiveram baixas civis.

Esse contraste merece uma ênfase estatística. 
Na I Guerra Mundial, os Estados Unidos sofreram pouco menos de 120 mil mortes em combate. Para o Reino Unido, a França e a Alemanha, as cifras são, respectivamente, de 885 mil, 1,4 milhão e mais de 2 milhões. 
Na II Guerra Mundial, quando os Estados Unidos perderam cerca de 420 mil homens em combate, as perdas do Japão foram de 2,1 milhões, as da China de 3,8 milhões, as da Alemanha de 5,5 milhões e as da União Soviética estimadas em 10,7 milhões. 
O Memorial dos Veteranos do Vietnã, em Washington, registra a morte de 58 195 americanos ao longo de uma guerra que se estendeu por quinze anos. Já o exército francês perdeu o dobro disso em apenas seis semanas de combates, entre maio e junho de 1940.

Na batalha mais custosa travada pelo exército americano em todo o século - a Ofensiva das Ardenas, entre dezembro de 1944 e janeiro de 1945 -, morreram 19 300 soldados. 
Nas 24 horas iniciais da Batalha do Somme (1º de julho de 1916), o exército britânico teve mais de 20 mil baixas fatais. Na Batalha de Stalingrado, o Exército Vermelho perdeu 750 mil homens e a Wehrmacht um número quase igual de combatentes.

Com isso, à exceção da geração que lutou na II Guerra Mundial, os Estados Unidos não têm memória de combate ou perda nem de longe comparável à das forças armadas de outros países. Mas são as baixas civis que deixam a marca mais duradoura na memória nacional, e aqui o contraste é ainda mais chocante. 
Apenas na II Guerra Mundial, os britânicos sofreram 67 mil mortes de civis. Na Europa continental, a França perdeu 270 mil civis. A Iugoslávia registrou a morte de mais de meio milhão de civis. A Alemanha, de 1,8 milhão. A Polônia, de 5,5 milhões. 
E se estima que a União Soviética tenha tido 11,4 milhões de mortes de civis. 
Essas cifras agregadas incluem cerca de 5,8 milhões de judeus mortos. Mais longe, na China, a contagem de mortos excedeu os 16 milhões. 
As perdas de civis americanos (excluindo a Marinha Mercante), nas duas guerras mundiais, somam menos de 2 mil mortos.

Conseqüentemente, os Estados Unidos são hoje a única democracia avançada em que figuras públicas glorificam e exaltam os militares, um sentimento comum na Europa antes de 1945, mas praticamente desconhecido nos dias de hoje. 
Os políticos americanos cercam-se dos símbolos e adornos da competência armada. 
Ainda em 2008, analistas americanos fustigam os aliados que hesitam em se envolver em conflitos armados. 
Acredito que seja essa disparidade nas lembranças da guerra e do seu impacto, mais que qualquer diferença estrutural entre os Estados Unidos e os países que lhe são comparáveis em outros aspectos, a responsável pelas suas distintas reações às crises internacionais de hoje.

A afirmação complacente dos neoconservadores, de que a guerra e o conflito são coisas que os americanos compreendem - em contraste com os europeus ingênuos, às voltas com suas fantasias pacifistas -, me parece totalmente equivocada: são os europeus (juntamente com os asiáticos e os africanos) que melhor entendem o que é a guerra. 
A maioria dos americanos tem a sorte de viver numa bem-aventurada ignorância do que ela realmente significa.

Esse mesmo contraste pode explicar a qualidade que caracteriza boa parte do que se escreve nos Estados Unidos sobre a Guerra Fria e as suas conseqüências. Nos relatos europeus sobre o fim do comunismo, dos dois lados da dita Cortina de Ferro, o sentimento predominante é de alívio diante do final de um capítulo longo e infeliz. 
Nos Estados Unidos, porém, essa história é normalmente registrada de forma triunfalista. E - por que não? - para muitos comentaristas e analistas políticos americanos, a mensagem do século XX é de que a guerra funciona. Daí o entusiasmo amplamente difundido pela guerra contra o Iraque. 
Para Washington, a guerra continua a ser uma opção - e, naquela ocasião, foi a primeira delas. Para o resto do mundo desenvolvido, ela é pensada como o último recurso.

A ignorância da história do século XX não contribui apenas para um deplorável entusiasmo pelo conflito armado. Também leva à identificação errônea do inimigo. 
Temos bons motivos para nos preocuparmos com o terrorismo e o desafio que ele representa. 
Mas antes de nos lançarmos a uma guerra de 100 anos para erradicar os terroristas da face da terra, é preciso considerar o seguinte: os terroristas nada têm de novo. 
Mesmo que sejam excluídos os assassinatos ou as tentativas de assassinato de presidentes e monarcas, e nos limitemos aos homens e mulheres que matam civis desarmados em busca de um objetivo político, os terroristas estão em atividade há bem mais de um século.

Já vimos terroristas inspirados pelo anarquismo, terroristas russos, terroristas indianos, terroristas árabes, terroristas bascos, terroristas malaios, terroristas tâmiles e dúzias de outros. 
Existiram, e ainda existem, terroristas cristãos, terroristas judeus e terroristas muçulmanos. Houve terroristas iugoslavos (os partisans) acertando contas na II Guerra Mundial; terroristas sionistas explodindo mercados árabes na Palestina antes de 1948; terroristas irlandeses financiados por americanos na Londres de Margaret Thatcher; terroristas mujahedin armados pelos Estados Unidos no Afeganistão dos anos 80; e assim por diante.

Ninguém que tenha vivido na Espanha, Itália, Alemanha, Turquia, Japão, Reino Unido ou França, para não falar de países usualmente mais violentos, pode ter deixado de perceber a onipresença de terroristas ao longo do século XX - usando armas de fogo, bombas, armas químicas, carros, trens, aviões e muitas outras coisas. 
O único fato que mudou nos últimos anos foi a manifestação, em setembro de 2001, do terrorismo homicida dentro dos Estados Unidos. E mesmo isso não era totalmente sem precedentes: os meios foram novos e a carnificina incomparável, mas o terrorismo em solo americano se manifestou ao longo do século XX.

O que dizer do argumento de que o terrorismo de hoje é diferente, um "choque de culturas" inspirado por uma tóxica mistura de religião e autoritarismo, o "islamofascismo"? Também essa interpretação tem amplo apoio numa leitura errônea da história do século XX. E existe aqui uma tripla confusão. 
A primeira consiste em identificar grosseiramente os diversos fascismos nacionais da Europa entre-guerras com os ressentimentos, as demandas e as estratégias muito diferentes dos (igualmente heterogêneos) movimentos e insurreições muçulmanos do nosso tempo - e querer atribuir a credibilidade das lutas antifascistas do passado às aventuras militares de motivação bem mais dúbia.

Uma segunda confusão advém de igualar um punhado de assassinos apátridas, impelidos por motivação religiosa, à ameaça representada no século XX pelos Estados prósperos e modernos que eram controlados por partidos políticos totalitários, comprometidos com a agressão externa e o extermínio em massa. 
O nazismo era uma ameaça à nossa própria existência, e a União Soviética chegou a ocupar metade da Europa. Mas e a Al-Qaeda? A comparação é um insulto à nossa inteligência - para não falar da memória daqueles que lutaram contra os ditadores. 
Mesmo os que defendem essas semelhanças não parecem acreditar nelas. Afinal, se Osama bin Laden fosse realmente comparável a Hitler ou Stálin, teríamos realmente respondido ao 11 de Setembro com a invasão de... Bagdá?

Mas o erro mais grave consiste em confundir forma e conteúdo: a definição dos vários terroristas e terrorismos do nosso tempo apenas pelos seus atos, mesmo tendo objetivos contrastantes e por vezes conflitantes. 
Seria como pôr no mesmo saco as Brigadas Vermelhas italianas, o grupo alemão Baader-Meinhof, o IRA Provisório irlandês, o ETA basco, os separatistas do Jura suíço e a Frente Nacional de Libertação da Córsega. 
E, então, afirmar que as diferenças entre eles são insignificantes, rotular o amálgama resultante da combinação de militantes ideológicos que desferem tiros no joelho dos adversários, atiradores de bombas e assassinos políticos de "extremismo europeu" (ou "cristofascismo", talvez?), e em seguida declarar contra esse modelo uma guerra armada, sem quartel e sem meta definida.

A simplificação de inimigos e ameaças, essa facilidade em acreditar que estamos em guerra contra os "islamofascistas", "extremistas" de uma cultura estranha, de algum "Islamistão" distante, que nos odeiam por sermos quem somos, e se dedicam à destruição do nosso "modo de vida", essa simplificação é um sinal seguro de que esquecemos a grande lição do século XX: a facilidade com que a guerra, o medo e o dogma podem nos levar a demonizar os outros, negando-lhes uma humanidade como a nossa ou a proteção das nossas leis, para submetê-los a coisas indizíveis.

De que outra maneira podemos explicar nossa indulgência atual para com a tortura? Porque não há dúvida de que a toleramos. 
O século XX começou com a Convenção de Haia sobre as leis da guerra. Ainda em 2008, o século XXI tem em seu passivo o campo de prisioneiros de Guantánamo. Ali, e em outras prisões secretas, os Estados Unidos submetem terroristas ou suspeitos de terrorismo a torturas rotineiras. Existem muitos precedentes para isso no século XX, claro, e não apenas em ditaduras. 
Os britânicos torturavam os terroristas em suas colônias da África oriental até a década de 50. Os franceses torturavam terroristas argelinos que capturavam na "guerra suja" para manter seu domínio sobre o país.

No auge da Guerra da Argélia, Raymond Aron publicou dois ensaios vigorosos, instando a França a sair da colônia e a conceder-lhe a independência. 
Aquela guerra, insistia ele, não tinha sentido, e a França não tinha como vencê-la. Anos mais tarde, perguntaram a Aron por que também não se juntou aos que combatiam o uso da tortura, ao mesmo tempo que se opunha ao domínio da França sobre a Argélia. "Mas o que eu teria obtido, proclamando a minha oposição à tortura?", respondeu ele. "Nunca encontrei ninguém que fosse a seu favor."

Pois os tempos mudaram. Nos Estados de hoje, existem muitas pessoas racionais e respeitáveis que defendem a tortura - nas circunstâncias corretas e quando aplicadas por quem tem méritos. 
O professor Alan Dershowitz, da Faculdade de Direito de Harvard, escreve que "a mera análise da relação custo-benefício do emprego dessas torturas não-letais [para extrair a tempo informações perecíveis de um prisioneiro] parece mais que convincente". 
A professora Jean Bethke Elshtain, da Faculdade de Teologia da Universidade de Chicago, admite que a tortura continua a ser um horror e é "em geral [sic]... interdita". 
Entretanto, no caso do interrogatório de "prisioneiros no contexto de uma guerra letal e perigosa contra inimigos que não conhecem limites, há momentos em que essa regra pode ser desobedecida".

Essas afirmações terríveis são ecoadas pelo senador Charles Schumer (democrata de Nova York), que, numa audiência de 2004 no Senado, afirmou que "deve haver poucas pessoas nesta sala ou nos Estados Unidos que digam que a tortura nunca deva ser usada". 
Certamente não o juiz da Suprema Corte Antonin Scalia, que declarou, em fevereiro de 2008, que seria um absurdo dizer que a tortura não pode ser usada. Nas palavras dele: 
"Depois que isto é reconhecido, o jogo muda de figura. E o quanto a ameaça precisa ser iminente? E o quanto pode ser intensa a dor infligida? Acho que essas questões não são nem um pouco fáceis. Mas sei que ninguém pode se apresentar em toda confiança, satisfeito consigo mesmo, e dizer: 'Ah, é tortura, e portanto é uma coisa ruim.'"

Foi precisamente por essa decisão, de que "é tortura e, portanto, uma coisa ruim", que até pouco tempo atrás se distinguia a democracia das ditaduras. Nós nos orgulhamos de ter derrotado o "Império do Mal" dos soviéticos. De fato. Mas talvez devamos ler de novo as memórias dos que sofreram nas mãos desse império - as memórias de Eugen Loebl, Artur London, Jo Langer, Lena Constante e incontáveis outros - e então comparar os tormentos degradantes que sofreram com os tratamentos aprovados e autorizados pelo presidente Bush e o Congresso. Serão tão diferentes assim?

Escorregamos ladeira abaixo. As distinções mais sofisticadas que fazemos hoje na guerra contra o terror - entre o império da lei e circunstâncias "excepcionais", entre cidadãos e não-cidadãos, aos quais tudo pode ser feito; entre as pessoas normais e os "terroristas"; entre "nós" e "eles" - não são novas. 
Todas foram invocadas ao longo do século XX. São as mesmíssimas distinções que autorizaram os piores horrores do passado recente: campos de internação, deportação, tortura e assassínio - os crimes em resposta aos quais sempre murmuramos "nunca mais". 
Então, o que julgamos ter aprendido com o passado? De que serve o nosso culto moralista da memória e dos memoriais?

20 de junho de 2015
Tony Judt

ANONIMATO PÚBLICO



                 Os ghost-writers da Câmara


Edmílson Caminha aproveitou o período eleitoral, sinônimo de calmaria em Brasília, para passar férias em Paris. No mês passado, reassumiu o posto estratégico que lhe compete na Câmara dos Deputados. Há dezessete anos, ele organiza prós e contras acerca de assuntos variados, sempre em Times New Roman, tamanho 16, entrelinha dupla. Letras garrafais se justificam; o conteúdo produzido por Caminha e outros quinze redatores é dito em plenário no vozeirão de pelo menos metade dos 513 deputados federais, nada receosos com a apropriação.

À diferença do lero-lero exclamativo que compõe diariamente, o cearense Caminha é um homem pacato, de 56 anos, que avisa com modéstia que escreve o que mandam, com a cautela de apagar qualquer vestígio autoral. As paredes do seu gabinete são decoradas com fotos de Machu Picchu e Fernando de Noronha, de autoria própria, e a tela do seu computador, com a imagem de um panda a comer brotos de bambu, sugestão das filhas. "Elas dizem que nos finais de semana pareço com o urso, pois fico horas parado na mesma posição, deitado na rede, escutando jazz", explica o redator parlamentar.

Além de dominar o português, posto à prova no concurso público de 1991, em que 8 mil candidatos concorreram a 160 vagas, Caminha é um especialista em tudo. Em uma única semana, escreve -sobre assuntos díspares, que vão da crise financeira norte-americana, campeã de pedidos no último mês, até a defesa de 1% das águas nacionais para uso dos -marisqueiros, defendida por Flávio Bezerra, do PMDB cearense, um dos únicos deputados a admitir a autoria alheia dos textos. Na quinta-feira, quase sempre o último dia de plenário, a retórica é mais amena: versa em torno de homenagens póstumas e festas regionais. Estudos es-pe-cíficos, como os projetos de lei, vão para os 164 téc-nicos especializados, que completam o quadro da consultoria legislativa.

Mesmo faltando três meses para o fim do ano, já é recorrente entre os redatores o consenso de que a placidez reinou nos mais de 900 discursos produzidos em 2008. A tendência começou com a eleição de Lula, quando o PT, sempre irado no palanque, se acalmou na situação, e foi agravada este ano pelas inúmeras lembranças ao centenário da imigração japonesa e aos 200 anos da vinda de dom João VI ao Brasil. "Sinto falta de um Artur da Távola", lamenta Caminha, aludindo ao dia 27 de abril de 1992, quando o falecido deputado do PSDB carioca transformou a saudação à Espanha, escrita pelo redator, num discurso inflamado. "O caráter latino, a opulência verbal, o conceitismo barroco e a prevalência da emoção sobre a razão, admiravelmente representada na figura do Quixote, são marcas dessa cultura com que nos identificamos fortemente", disse o deputado pausadamente e em bom-tom. "Ele apontava o in-dicador para o céu enquanto falava", lembra, nostálgico, o redator.

Para manter a produção média de 100 discursos por ano, Caminha evita escrever antes de saber se o texto será lido no pequeno ou no grande expediente da sessão. O primeiro reserva míseros cinco minutos aos deputados e não lhes permite firulas. "Poucos homens conheceram tanto e tão profundamente o Brasil quanto Luís da Câmara Cascudo", iniciou Caminha para um parlamentar paulistano, evitando a peroração e partindo logo para uma biografia sucinta do intelectual.

O discurso é outro quando proferido no grande expediente: são vinte minutos à disposição do político, com direito a aparte vindo dos colegas. "Penso que todo brasileiro deveria ter a oportuni-dade de conhecer a Amazônia, para só então poder dizer que conhece o Brasil", digitou Caminha, para depois se deliciar descrevendo algumas árvores da floresta equatorial, como a andiroba, o mogno e o pau-rosa. Acertou em cheio: o preciosismo agradou ao deputado paraense.

Outra preocupação é saber para quem se escreve. No computador de Caminha, o currículo de Clodovil Hernandes, do PTC paulista, por exemplo, define-o como professor, comunicador, estilista, apresentador e cantor. Apesar do perfil multimídia, o redator conclui sem nenhuma maldade aparente: "Fica evidente que não dá para construir um discurso rebuscado para ele."

Dilemas ideológicos não o perturbaram. Caminha perdeu a conta de quantos discursos produziu em favor do aborto, apesar de ser contrário à prática na maior parte dos casos. Semanas antes da destituição de Collor, mostrava-se habilidoso tanto para defender o ex-presidente quanto para criticar sua "ignominiosa conduta pública". Se um deputado lhe pede um discurso ofensivo, até tenta acalmá-lo, mas, em caso de insistência, escreve sem temer a Justiça. Legalmente, o direito autoral recai sobre aquele que diz a peça oratória.

Para contrapor a falta de autoria, o ghost-writer público escreve suas próprias obras no silêncio de casa, como já fez em oito publicações. Leitor voraz (neste ano foram 39 livros, dentre os quais História Social do Jazz, de Eric Hobsbawn, e A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis, de Lilia Schwarz), Caminha gosta de se corresponder com escritores de renome. Da troca de missivas com Carlos Drummond de Andrade, na década de 1980, nasceu o livro Drummond: a Lição do Poeta, orgulhosamente assinado pelo redator.

Cético, Caminha se define como uma sombra do meio-dia, expressão retirada da obra ficcional do diplomata Sérgio Danese, que relata a amizade entre um senador e seu preparador de textos. Ainda assim, o anonimato não parece incomodá-lo. Mesmo quando o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, entoa um texto seu em plenário, ele se mostra resignado. "Sou apenas a mão que redige."


20 de junho de 2015
Bruno Moresch

MOVIDOS A VAPOR




Eles são gente como a gente, mas pendem para o século XIX


O grupo de dezoito pessoas achava muito pertinente que o primeiro encontro oficial desteampunks brasileiros tivesse se realizado no Memorial do Imigrante, em São Paulo. De fato, estava-se à vontade naquele prédio antigo, entre milhares de documentos sobre a imigração para o Brasil no século XIX. O problema era o calor daquele sábado. Vestidos com dois ternos, perneiras, chapéus e gravatas apertadas, os homens suavam. As mulheres, com até três saias e os devidos espartilhos, pareciam a ponto de desmaiar como moças de antigamente. Todavia, apesar do bafo, a conclusão era uma só: o sarau estava supimpa, daqui, ó.

O primeiro foi em 2008. De lá para cá, houve outras quinze reuniões no Memorial. Nem todo mundo gosta: “Não temos nada contra eles”, diz o segurança José Guimarães, “mas que eles são estranhos, são. O dia de entrada gratuita mudou de sábado para domingo, mas não adiantou. Eles passaram a vir no domingo.”

O termo steampunk surgiu na década de 1980, quando os escritores americanos Bruce Sterling e William Gibson lançaram livros de ficção científica ambientados no século XIX. Durante uma entrevista, quando lhe perguntaram se havia criado um novo subgênero literário, Sterling concordou e, de brincadeira, juntou as palavras steam (“vapor”) e punk (referência, no caso, aocyberpunk, uma vertente nostálgica da ficção científica) – era assim que definia sua escrita.

A coisa pegou rápido nos Estados Unidos e na Europa. Já no Brasil, a estética steampunk só chegou em 2007, quando o carioca Bruno Accioly, de 39 anos, criou o steampunk.com.br, o primeiro site em português sobre o tema. Bruno é categórico: “Steampunk é, acima de tudo, literatura.” Os integrantes do grupo costumam citar de memória textos de H. G. Wells, Júlio Verne, Edgar Allan Poe, Bram Stoker e Mary Shelley. “A Mary”– assim mesmo, íntimo – “renovou o terror e a ficção científica. Ela criou um monstro com a ajuda da energia elétrica! Não é maravilhoso?” Para Bruno, Frankenstein é tudo.

Antes que o questionem, tolamente, sobre o motivo de os steampunks usarem celulares, computadores e outras maravilhas dos séculos XX e XXI, Bruno explica: “Não achamos que vivemos no século XIX. Somos pessoas de hoje fascinadas por um tempo que já passou.” Algunssteampunks resolvem de maneira criativa a suposta contradição. Por exemplo: customizam o teclado do computador para ter a impressão de que usam uma velha máquina de escrever.

Comparecer aos encontros vestido a caráter é prática sempre bem-vinda, mas não obrigatória. No entanto, se a pessoa decide se fantasiar, precisa usar a criatividade. Bruno explica: “Ninguém aparece de Darth Vader, um produto já inventado. Cada um é estimulado a criar seu próprio personagem, com suas características particulares.”

Jéssica Soares, de 24 anos, é um bom exemplo. Ela é Lady Jesse, mulher corajosa que luta contra a opressão masculina no século XIX. Seu figurino se compõe de uma saia preta longa, coturno, camisa branca e espartilho bem apertado. Para não enjoar da personagem, Jéssica às vezes aparece como Alice, a do País das Maravilhas.

Em contato telefônico, Lady Jesse explicou o lado bom de ser uma steampunk mulher: “O senhor há de concordar comigo”, diz ela, a um repórter de 28 anos, “pelo menos publicamente, os senhores do século XIX eram muito mais educados com as senhoras e as senhoritas.” A Jéssica do século XXI toma a palavra: “É tão mais legal um homem beijar a minha mão, dar passagem e me convidar para um chá das cinco...” No dia a dia, Jéssica e seu povo não adotam a moda do século retrasado, mas normalmente, quando vão às reuniões, saem de casa já caracterizados e, de preferência, usam transporte público, para chamar mais atenção. Não raro, os rapazes ouvem um comentário simpático: “Que lindo! Meu pai/avô/antepassado se vestia assim!”

Em São Caetano do Sul, no ABC paulista, mora um dos mais ativos steampunks do Brasil. Hoje com 24 anos, Cândido Ruiz era um moleque de 8 anos quando leu O Homem de Areia, um conto de 1815 do alemão E. T. A. Hoffmann. É a história de um rapaz, Nathanael, que encontra o suposto assassino do pai. Nascia ali uma paixão pelo século XIX. Quando se deparou com o site criado por Bruno, Cândido viu que outras pessoas também flertavam com o passado. Não teve dúvida: mandou um e-mail para Bruno e, dali a pouco, estavam bolando um plano de expansão dosteampunk no Brasil.

A ideia era criar um conselho amplamente democrático, do qual qualquer um poderia participar sem maiores enrolações formais. Em pouco tempo, o movimento já contava com membros por todo o Brasil. Veio então uma segunda ideia: criar lojas regionais. Não, não se tratava de barraquinhas para vender relógios de bolso ou polainas. Como na maçonaria, lojas seriam os locais de encontro.

Atualmente existem lojas em doze estados, todas com site próprio. Cada uma tem sua especialidade. São Paulo, a mais ativa, revela talentos literários e conta com membros que produzem vestuário do século XIX à perfeição. Rio de Janeiro cuida mais de conteúdo para a internet. Minas anda parada, mas é famosa pela produção de ilustrações segundo os cânones da estética steampunk. Rio Grande do Sul é bamba na confecção de joias com cara de priscas eras.

Cândido Ruiz adora quando lhe perguntam se, no Brasil, não é meio fraquinho o catálogo de grandes vultos históricos ao gosto steampunk: “Engano! Os brasileiros têm, sim, ídolossteampunks nacionais!” Ele recita: Santos Dumont, Barão de Mauá, José do Patrocínio, o fictício Brás Cubas... Um nome, porém, merece dele uma explicação emocionada. Vocalizando os sentimentos da maioria, afirma: “Dom Pedro II – esse era um legítimo steampunk. Foi um homem incrível, que incentivou a cultura e as inovações tecnológicas no Brasil.”

Quem precisa de Napoleão? Quem precisa de rainha Vitória? Quem precisa de vultos estranhos aos nossos costumes, à nossa história, à nossa índole? Já insinuava Pero Vaz de Caminha: nesta terra, em se plantando, dá. Eles estão entre nós, e crescendo. Já passam de 200 os steampunksnacionais.


20 de junho de 2015
Bruno Moresch

ODISSEIA À MINEIRA

Depois de correr o mundo pedalando, ele quer uma lavoura urbana no conjugado

hovia em Cordisburgo logo que aurora de dedos de rosa surgiu matutina. Um punhado de pessoas se aglomerava na frente da casa em que Guimarães Rosa foi criado. O arquiteto Argus Caruso Saturnino ajeitou a mochila nas costas, acenou e deu a primeira pedalada, deixando para trás os parentes que agitavam os guarda-chuvas para se despedir.
Zarpava para uma viagem de três anos e meio. Ia correr o mundo de bicicleta. Na Odisseia, enquanto Ulisses passava vinte anos longe de casa, lutando na Guerra de Troia e tentando voltar para Ítaca, foi lealmente aguardado por seu cão, Argos. Na epopeia que começava ali, quem viajou foi Argus.
No dia seguinte, o arquiteto descobriu que é impossível frear uma bicicleta pesada que desembesta morro abaixo, ainda mais sem a ajuda de Atena. Pedalava numa estrada de terra, em meio a uma plantação de eucaliptos, em direção à serra da Canastra, no interior de Minas. Mais ameaçadora que um ciclope, uma árvore se projetou à sua frente, numa descida em curva, e ele foi ao chão. O saldo foi um corte profundo na perna esquerda. Argus amarrou camisas para estancar o sangramento e decidiu seguir adiante, empurrando a bicicleta. Cogitou desistir. “Mas o mico seria muito grande”, admitiu. “Eu tinha acabado de fazer uma festa me despedindo de todo mundo.”
De Cordisburgo, o arquiteto pedalou rumo ao Mato Grosso do Sul, até chegar à Bolívia e cruzar os Andes, onde refez trilhas dos incas. De Lima, cruzou o Pacífico de avião até Sydney, na Austrália, e dali rumou para a Indonésia. Percorreu o Sudeste Asiático antes de seguir para o Oriente Médio, o norte da África e a Europa, até voltar para o Brasil. Quando concluiu a jornada, 35 mil quilômetros depois, Argus havia passado por 28 países de cinco continentes – o suficiente para encher dois passaportes de carimbos.
Ele pedalava até 50 quilômetros por dia e passava cada noite num lugar. Com o orçamento mensal de 300 dólares, que conseguiu com um patrocinador, as opções de pernoite eram limitadas. Dormiu em praias, escolas, prefeituras e templos. Teve pousos ainda menos convencionais, como tendas de beduínos, aldeias indígenas, casas em árvores e cavernas (na Capadócia). Visitou escolas, centenas delas, onde conversou – ou, com mais frequência, gesticulou – com as crianças e filmou recados delas para destinatários desconhecidos em escolas de outros países. Comeu de quase tudo. “Certas coisas não consegui encarar, como aranha frita, daquelas gordas, com os pelos oleosos e um creminho branco quando você morde”, disse, com uma expressão de desgosto.
Argus tem 36 anos e nasceu em Belo Horizonte, numa família de classe média. É um homem alto e bronzeado, de olhos verdes enormes e calvície em progresso. Mora num diminuto conjugado na praia de Botafogo, no Rio, onde não teria espaço para criar um cão que aguardasse seu retorno da próxima viagem. No chão do apartamento, há terra para todo lado. O arquiteto está sentado numa cama feita de tábuas, que é o que mais se assemelha a um móvel ali. “Pedalar é a parte simples da viagem”, contou. “Poucos acreditam, mas para uma viagem assim não é preciso muito preparo físico. Você pode se preparar no próprio trajeto, assim vai se acostumando com o ritmo da viagem, sem bolhas ou dores.”

s monstros marinhos de Cila e Caríbdis, que Ulisses derrotou, foram brinquedo diante da polícia iraniana. Argus pedalava por uma estrada no interior do país, com uma amiga que acabara de fazer, quando viu emparelhar um carro com três policiais. Checaram seus passaportes e pediram que os dois fossem para a delegacia de Abbar, a 70 quilômetros dali. Escoltaram-nos de carro. Argus imaginou que o tomassem por um espião. Temeu pelo pior. “A cada quilômetro a mente ficava mais criativa e pessimista”, lembrou.
No posto policial, os viajantes foram interrogados, com o auxílio de um tradutor. Os agentes quiseram saber o que eles estavam fazendo ali e se tinham binóculos ou computadores. Foram liberados, mas na manhã seguinte os policiais os seguiram de carro novamente, “para sua segurança”. A escolta seguiu pelos próximos quatro dias. Argus consultou a embaixada brasileira em Teerã, que lhe recomendou que deixasse o Irã o mais rápido possível. “Ainda ficamos um dia na pequena cidade de Masuleh, na esperança de nos deixarem em paz, mas fizeram vigília na frente doHOTEL. Tivemos mesmo que ir embora”, lamentou.
Argus enfrentou ainda obstáculos como tombos, hipotermia, desidratação e intoxicação alimentar, mas concluiu seu trajeto com êxito, voltando à mesma Cordisburgo de onde partira.
Como não havia PowerPoint nos tempos da Odisseia, Ulisses nem considerou sair numa turnê de palestras pelo Peloponeso para narrar suas peripécias depois de voltar a Ítaca. Já Argus decidiu que devia compartilhar sua experiência com o mundo. Desde que retornou, já visitou mais de 50 escolas para falar de sua viagem. Também faz palestras para defender que a diversidade cultural trará a paz para a humanidade. “O mundo é maravilhoso”, conta o arquiteto com ar idealista. “A mídia amplia sem medida os focos de problemas. Fui ao Irã, à Síria, à Mongólia e à Turquia e o que mais vi foram famílias em busca de paz.”
A experiência também ensinou ao arquiteto que a ciência e tecnologia não impediram que o mundo ocidental regredisse muito, em certos aspectos. “Não conseguimos mais usar a ventilação, a iluminação e o aquecimento naturais, como tantos povos orientais ainda fazem”, denuncia. Imbuído da luta pela preservação do meio ambiente, decidiu estudar o uso da terra crua na construção, no mestrado em design que faz na universidade católica do Rio.
E a luta por um mundo mais sustentável começa em casa. Argus afirma querer construir em seu conjugado uma verdadeira lavoura urbana – embora cactos sejam tudo o que se vê por ora. O reboco é de terra, a parede é de pau a pique e a pintura, de baba de cacto. Num canto, jazem bambus que o arquiteto promete transformar em móveis. Tudo muito orgânico. Segundo ele, “é só botar o apartamento abaixo que nasce planta”.
20 de junho de 2015
Cristine Gerk