domingo, 14 de junho de 2015

PORNOFAGIA

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O declínio da indústria nacional do sexo explícito
Clóvis Basílio dos Santos, hoje com 60 anos, não guarda boas lembranças de sua infância na Baixada Santista. “Duas ou três vezes por semana, o pau comia pra cima de mim”, disse quando nos encontramos numa noite chuvosa do começo de fevereiro, no interior de São Paulo. Aos 17 anos ele fugiu das surras do pai e foi morar com o avô. Ficou lá por três meses, até juntar algum dinheiro.
Técnico em metalurgia pelo Senai, seguir uma faculdade não estava em seu horizonte, tampouco servir o Exército – “Um amigo da família conseguiu minha dispensa, coisa rara na época”. Em 1973, arranjou um emprego numa loja que consertava escapamentos. O serviço ficava perto do cais de Santos, na rua Brás Cubas. Na carteira, o rapaz ganhava um salário mínimo. Alguns clientes lhe davam caixinha, o que aumentava o orçamento. Em outras ocasiões, ele fazia o que chama de “pequenos trambiques”: “Chegava algum bacana com algum problema fácil de resolver, e eu dizia: ‘O silencioso tá fodido.’ Aí eu guardava o silencioso, e depois vendia a um preço mais barato para um cliente mais humilde. E nisso eu também faturava algum.”
A loja de escapamentos era só um dentre os muitos outros estabelecimentos da rua, que incluíam prostíbulos. “A zona do cais de Santos é a maior zona do país”, comentou, com certo orgulho e talvez alguma hipérbole. No final do expediente, quase toda noite ele perambulava pelo bairro. Na primeira vez que tentou transar com uma prostituta, ela recusou. E mesmo assim lhe cobrou uma taxa. Na segunda vez aconteceu algo parecido: a prostituta chegou a masturbá-lo, mas não passou daí. Ele pagou de novo. “Eu era muito inocente”, ele diz. Com 18 anos e uma graninha no bolso, quis conhecer as casas de tolerância. Então foi à pensão Brás Cubas. Pagou pelo quarto e deu o dinheiro para a prostituta antecipadamente. Aquela noite conseguiu, enfim, transar. Logo depois começou a namorar a moça.
Quando conversamos, Basílio dos Santos, que é negro e tem as feições arredondadas e simétricas, a ponto de parecer um retrato falado, vestia regata azul e bermuda verde fosforescente. O único indício de sua idade eram escassos fios brancos que tentavam nascer na cabeça raspada, visíveis apenas de perto.
Ele falava animado, pondo e tirando os óculos escuros de aviador. Descreveu a transa com intensidade, alguma variedade semântica e muita repetição – “Eu era putão. Putão, putão, putão, putão, putão” –, como se quisesse atingir o grau zero da obscenidade. A ênfase que dava a suas digressões sexuais tornava sua história pessoal opaca e cronologicamente confusa. Basílio dos Santos passou um bom tempo falando da “prostituta enorme” que foi sua namorada por seis meses.
Só muito mais tarde – após discorrer sobre a carreira de metalúrgico e fresador ferramenteiro em São Paulo, sobre as orgias que organizava com amigos no fim dos anos 70 e sobre as noites que passava assistindo a pornochanchadas depois do expediente – ele esclareceu em que momento foi “batizado” com o apelido pelo qual é conhecido. 
Em 1990, quando atuava em seu primeiro filme pornográfico, no Rio de Janeiro, o produtor que o havia contratado não estava satisfeito com o nome Clóvis, que considerava muito banal. Ao ver a genitália do ator – a razão da resistência das prostitutas do cais de Santos –, decretou: “A partir de agora você se chama Kid Bengala.”

Era uma manhã nublada de fevereiro, e o carro serpenteava a estradinha bucólica em algum trecho impreciso nas cercanias de Carapicuíba, em São Paulo. Árvores e mansões pontuavam o trajeto. “Quando eu crescer quero morar numa casa dessas”, disse Cindy, e todos riram. No banco de trás, além dela, acomodavam-se os atores Lolah e Loupan, e Carla Lira, a maquiadora – todos contratados pela produtora Brasileirinhas, mencionados aqui por seus nomes artísticos. O destino era uma casa num condomínio fechado da região, onde seria gravado um filme com temática carnavalesca. No trajeto, Cindy contou que naquela tarde faria sua primeira cena de sexo anal. Decidira encará-la com Lolah e Loupan porque tinha confiança no casal. “Me sinto segura com eles, temos amizade”, resumiu, sorridente.
Ao volante, o diretor Gil Bendazon, um paulistano da Mooca, ruivo, de olhos claros e barba quase translúcida, explicava como certa vez levou bolo de um fã. A Brasileirinhas havia feito uma promoção: sorteariam um cliente para atuar numa filmagem. Avisaram o vencedor, que, animado ao telefone, combinou hora e lugar para o encontro. Bendazon e outros funcionários da produtora foram buscá-lo no metrô. O rapaz jamais apareceu.
Os fãs são chamados de “punheteiros”. Ao longo das semanas em que nos encontramos, ouvi o termo muitas vezes: de Bendazon (nome artístico), de Sérgio, o fotógrafo da equipe, de Clayton Nunes, o CEO da Brasileirinhas. Longe de ser depreciativo, o apelido carrega certo afeto. “Punheteiros” são os clientes fiéis, aqueles que sustentam a empresa. Representam o oposto dos chamados “sazonais”, aqueles que assistem a filmes pornôs para ver celebridades menores, reanimar o casamento ou satisfazer a curiosidade. Enquanto subíamos a estradinha rumo à casa, Bendazon contava o caso do fã sorteado com ar de desolação. A produtora quisera presentear um de seus fiéis e não havia dado certo.
Quando chegamos à mansão, discreta e um pouco decadente, havia um clima de confraternização na cozinha. Dênis Nunes, administrador do espaço e irmão de Clayton Nunes, e Marcelo Ferreira, seu auxiliar, cumprimentaram todos com abraços e beijos. Haviam preparado um café da manhã farto: vários pacotes de pão de forma, duas térmicas de café, leite, suco, fatias de presunto e queijo. Após a refeição, todos se dispersaram pelos cômodos, preparando-se para a filmagem.
As casas que funcionam como locação de filmes pornográficos não duram muito – dois ou três anos, se tanto. Segundo Bendazon, passado um tempo, vizinhos reclamam, ou alguns curiosos dão um jeito de espiar, gerando inibição entre os atores. Na casa atual, alugada três semanas antes da filmagem, eles construíram uma extensão no muro para evitar que os moradores da região pudessem bisbilhotar. O local passava por uma reforma extensa e necessária: o gesso das paredes era frágil e decadente; a tinta estava gasta. Três anos antes, a produtora alugara uma casa isolada na Praia Grande, no litoral paulista. A mansão de Carapicuíba era o novo set.

O lugar não serve apenas como locação. A cada semana a produtora envia uma atriz para morar na casa temporariamente. Os assinantes do site da Brasileirinhas têm acesso a todos os cômodos através de sete canais, supostamente 24 horas por dia. Depois de um mês, uma eleição entre os assinantes determina qual atriz deve voltar ao ambiente. O programa é um pastiche dos reality shows. A própria casa parece uma versão um pouco mais sombria, mais caída, e também mais autêntica das que são vistas em programas como o Big Brother Brasil. O apresentador da Casa das Brasileirinhas é Kid Bengala – “O nosso Pedro Bilau”, conforme diz às gargalhadas Clayton Nunes, o CEO, orgulhoso do trocadilho.
Como em outros programas do tipo, o real não é exatamente real. Existe, por exemplo, um cronograma para as atrizes. Marcelo Ferreira, o Black, é o encarregado de monitorar os horários. Existem tempos mínimos, geralmente entre quarenta minutos e uma hora, para cada atividade obrigatória: piscina, academia, banho. Em certo momento a atriz deve se livrar da roupa. Os assinantes podem conversar com as moradoras temporárias pela internet em horários predeterminados. Ferreira acompanha os chats, bloqueando mensagens ofensivas e pedidos de contato pessoal. “Muitas atrizes trabalham também na noite”, ele me disse, “e acusações de agenciamento de prostituição são complicadas.”
Apesar do apelido, Black é um moreno claro, magro e de cavanhaque ralinho. Além de controlar os cronogramas do reality pornô, ele ajuda nas filmagens, nos ensaios fotográficos, na iluminação. “Pego gel, camisinha, faço de tudo.” Também organiza refeições, supervisiona a reforma da casa e cuida dos computadores. Frequentemente se ouve um grito, dos fundos ou de dentro da casa: “Ô Black!” Foi um dos poucos a não se importar com a publicação de seu nome verdadeiro na reportagem: “Tranquilo, bota aí.”
Nascido e criado em Santos, Ferreira montou móveis para as Casas Bahia por dez anos, na condição de terceirizado. Após a fusão da empresa com o Grupo Pão de Açúcar, deixou o emprego. “Ficou muito ruim para os funcionários, o salário caiu demais.” Começou então a fazer bicos. Uma de suas ocupações temporárias foi como porteiro de uma casa de swing, onde conheceu pessoas do meio pornográfico. “Caí um pouco de paraquedas aqui, mas aprendo muito rápido”, disse, enquanto fumava um cigarro no fundo da casa. No futuro, pretende se matricular num curso de foto e filmagem, não necessariamente no ramo pornográfico. “Quero fazer casamento, funeral, o que for”, comentou, rindo.
Lolah e Cindy estavam sendo maquiadas num dos cômodos do andar de cima. No chão do quarto jaziam colares, pulseiras e outras bijuterias. As atrizes vestiam fantasias minúsculas de Carnaval que continham inúmeras pedrinhas brilhantes, e pareciam mais bronzeadas do que horas antes. Cindy experimentava as roupas sem embaraço. Lolah, mais quieta, não se mostrava desconfortável com minhas perguntas, às quais respondia com uma reserva gentil. Morena, de grandes olhos pretos, ela disse que só contracena com o seu namorado, Loupan. Quando perguntei sua idade, respondeu: “Tô com 23, bem velhinha já.” Ela ficaria na mansão aquela semana inteira, participando da Casa das Brasileirinhas. Não parecia muito empolgada.

Mineira de Santos Dumont, Cindy contava que assistia a filmes pornôs aos 12 ou 13 anos. “Eu adorava. Sempre soube que me envolveria com esse tipo de coisa”, comentou, mostrando animação. Não soava falsa, ainda que atrizes pornográficas sejam encorajadas a propagar mitos desse tipo. É difícil, nesse meio, diferenciar o que é genuíno do que é inventado. Com o tempo e as distorções da memória, é provável que meias verdades ou fantasias ganhem aura de verdade plena.
Cindy enveredou para a área protagonizando filmes envolvendo fetiches em produtoras menores. Logo se destacou e foi chamada para integrar a equipe da Brasileirinhas. Um dos fetiches mais bizarros que encenou no começo da carreira consistia em chutar os testículos do parceiro. Kid Bengala certa vez a desafiou a reproduzir a cena com ele. Cindy gargalhava ao rememorar a história (“Ele aguentou o tranco”), enquanto a maquiadora Carla Lira pedia num tom de voz impaciente que ficasse parada. “Essa fala pelos cotovelos”, contou.
Carla, uma paraibana simpática de 41 anos, conserva um resquício de sotaque, a despeito de morar em São Paulo há 25 anos. Ela começou a prestar seus serviços para o meio pornô em 2004, ano que muitos consideram como o marco inicial do crescimento da indústria. Por muito tempo se importavam filmes do exterior, e pouco se produzia aqui. No fim dos anos 90, produtoras nacionais começaram a crescer. A Brasileirinhas foi fundada em 1996, mas seu auge, e o auge do pornô nacional, segundo todos os entrevistados, foi entre 2004 e 2009. A partir de 2010, afetado pela pirataria na internet e pelo aumento da popularidade de sites de compartilhamento de vídeos pornôs – como YouPorn, XVideos e Pornhub, que disponibilizam conteúdo de graça –, o mercado nacional começou a enfrentar sérios problemas.
Testemunha dos reveses na indústria, Carla encara seu trabalho com estoicismo. Apesar de a demanda ter caído, ela diz que cobra o mesmo cachê – entre 200 e 300 reais a sessão – e ainda tem certa estabilidade financeira. Não há sinal de nostalgia em sua fala quando relembra os tempos gloriosos do pornô. “As produtoras são todas meio parecidas, tinha uma época em que eu saía de uma e já ia para outra, e nem sabia o nome de onde eu estava, de tão igual que era tudo.”
Os anos de carreira lhe proporcionam certo regard lointain, uma vantagem de espectadora externa. Observou, por exemplo, que a decadência do gênero tem gerado uma espécie de autofagia. Por questões de sobrevivência e ego, o ator quer produzir, dirigir, atuar e assim por diante, num círculo que nem sempre fecha redondo. Segundo ela, há hoje menos atenção a detalhes, opera-se mais na base do improviso.
Carla sente saudade das putas. “Puta de verdade”, assim como “punheteiro”, é elogio, e não xingamento – as inversões linguísticas são recorrentes no meio. As “putas” são as atrizes profissionais, que chegam prontas para o trabalho, não hesitam, fazem tudo que se exige de uma cena. “As menininhas”, Carla disse, “ficam perguntando: ‘Mas será que eu tenho que fazer isso, será que eu tenho que fazer aquilo?’ Elas dão palpite na maquiagem, ficam com frescura para encarar o trabalho. Essas eu chamo de ‘putas de quatro paredes’. É outra coisa, viu, não são profissionais. As putas de verdade para mim são as divas. Mônica Mattos, Ju Pantera, Bruna Ferraz.”
Cindy, que ouvia, atalhou em tom sério, já maquiada: “As profissionais se poupam, não vão para a balada na noite anterior.” Não havia dúvida: ela se considerava um exemplo da categoria.

A sede da Brasileirinhas fica num edifício acinzentado, de fachada sóbria, ao lado da Praça da República, no Centro em São Paulo. A produtora ocupa apenas um dos andares. O escritório é simples, com duas salas interligadas por um cômodo maior, onde funcionários silenciosos sentam-se lado a lado. Os empregados estão conectados a sites pornográficos, mas agem como se estivessem abrindo planilhas de Excel ou PowerPoint, morosos e distraídos, o que gera no visitante um efeito desconcertante.
O CEO da firma, Clayton Nunes, iniciou sua trajetória profissional na área de informática. Nascido e criado no bairro do Tatuapé, na Zona Leste paulistana, se uniu aos 20 e poucos anos a alguns amigos para lançar uma revista de tecnologia. “Começou assim, coisa de nerd mesmo”, disse ele em sua sala. Simpático, dado a gestos efusivos, respondeu bem alto, quase gritando, quando lhe perguntei em que se formara: “Fiz administração... administração na São Luís!” – e gargalhou, como se caçoasse da discrepância entre sua ocupação e o curso.
Empolgados com as possibilidades da tecnologia audiovisual, e com a intenção de reportar inovações do meio na revista que almejavam criar, Nunes e seus sócios alugavam fitas em VHS para passar o conteúdo para DVD. Os filmes eram em grande parte pornôs. “No fim do expediente, funcionários vinham pedir cópias emprestadas, sempre discretamente. Percebi que havia uma demanda imensa por DVDs pornôs, talvez até por ser uma mídia mais maneira que o VHS, aquele trambolho que ninguém quer ser visto carregando.”
Nunes teve uma outra ideia. Começou a contatar várias produtoras de pornô, dizendo que lançaria uma “revista de sacanagem”: “Pedia dez minutos de conteúdo, e em troca dava duas páginas de anúncio. Fizemos uma compilação com as melhores cenas de vários filmes. Tinha de tudo: fetiche de pé, dupla penetração, pornô mais tradicional. Na primeira edição, vendemos 60 mil cópias com o DVD encartado.”
Nunes queria vender mais compilações em bancas de jornal. Começou a juntar capital e a comprar conteúdo. A Brasileirinhas era, então, comandada por Luis Alvarenga, um empresário que sempre resistia às investidas de Nunes. “A Brasileirinhas chegou a vender DVD por 60, 70 reais. Eu queria massificar, vender mais barato, a 10, 15 reais na banca, pegar um público com menor poder aquisitivo”, disse ele. Alvarenga, que Nunes define como um pornógrafo da velha escola – “tinha cadeirinha de diretor, cinegrafista e tudo mais” –, estava satisfeito com o modelo de negócios, focado em locadoras.
A expansão da rede de locadoras Blockbuster criou uma pressão mercadológica que obrigou a produtora a repensar seu modelo de distribuição. A rede americana – que viria a enfrentar suas próprias dificuldades, em decorrência do crescimento do mercado de streaming digital – entrara no país em 1995. Fundada no Texas, em 1985, a empresa sempre projetara uma imagem associada a valores familiares, e por isso não trabalhava com vídeos pornôs. Sua presença no Brasil forçou a quebra de várias locadoras locais, até então importantes meios de distribuição para as produtoras pornográficas nacionais. Em 2006, cinco anos após suas primeiras tentativas, Nunes conseguiu licença para a distribuição de filmes das Brasileirinhas em bancas de jornal. Em 2007, ele entrou como sócio da produtora e foi gradativamente assumindo o comando total da empresa. Em 2010, Alvarenga se desligou da produtora.
O mercado estava aquecido em 2007. Os cachês eram altos, lançavam-se DVDs, as produtoras investiam. Cerca de 100 filmes eram produzidos ao ano, e a maior parte da receita provinha da venda de DVDs. Aumentava a reputação da Brasileirinhas como uma das produtoras mais renomadas do mundo, competindo numa área que era historicamente dominada por empresas americanas e europeias.
Mesmo em posição economicamente favorável, Nunes já sentia que o tempo das vacas gordas iria para o brejo. Lembrou-se de uma conversa que tivera com o sócio, assim que entrara na produtora: “Não são só as locadoras que vão sofrer. O DVD em banca de jornal também vai acabar, você vai ver”, dissera ao outro.
Clayton Nunes cedo percebeu que precisaria cortar custos. A pirataria na internet estava a todo vapor: mal era lançado, um filme já estava disponível de graça. No Brasil, o acesso à internet mais rápida ainda estava se consolidando, e foi só a partir de 2010 que o mercado pornô nacional começou a sentir os efeitos mais nefastos da decadência que já ia avançada nos Estados Unidos. O mercado pornô nacional mal se erguia e já começava a declinar.
Nunes passou a investir num site oficial da produtora, convertendo todo o acervo para o formato digital. Com o tempo operou outras mudanças. Além de estabelecer uma equipe regular para as filmagens, contratou como diretor principal Gil Bendazon, que até então
só trabalhara com produtoras do exterior. O diretor tinha carta branca para filmar regularmente, escalar atores e atrizes, editar os filmes como bem entendesse.
Em 2007, o site da Brasileirinhas contava com cerca de 14 mil assinantes. Em 2012, a internet já representava 50% do faturamento da empresa. O problema é que a migração não foi, nem tem sido, proporcional. O faturamento da venda de filmes representa menos de um quarto do que era há cinco anos. E, se em 2007 a produtora jorrava por volta de 100 filmes por ano, no começo de 2013 esse número já havia caído para aproximadamente trinta títulos. Hoje, lança-se uma média de um filme por mês.

Renata, a segunda namorada de Clóvis Basílio dos Santos, também era prostituta. Ele continuou no ramo dos escapamentos por alguns meses, até que decidiu pedir demissão e mudar de cidade. Em 1974, arrumou serviço como torneiro mecânico em Sumaré, ao lado de Campinas, no interior paulista. Fazia eixos de caminhão para uma multinacional americana. Juntou algum dinheiro nesse emprego. Com o que sobrava do salário, viajava para São Paulo nos fins de semana. Desembarcava na cidade logo depois do almoço e passava o dia em salas de cinema, vendo pornochanchadas. Então perambulava por zonas de prostituição. Às vezes tomava um ônibus para Santos. “Eu chegava dez, dez e meia da noite na Baixada Santista, e ia direto para a zona do cais.”
A metalurgia, setor em que Basílio dos Santos trabalhava, esteve no centro das mudanças políticas dos anos 70. Foi das greves do ABC paulista, no final da década, que Luiz Inácio Lula da Silva despontou nacionalmente. Quando perguntei a Kid Bengala sobre esse período, e mais especificamente sobre a ditadura, ele não pareceu muito interessado, e até se confundiu sobre quem estava no poder. Para ele, a década de 70 foi “a época das pornochanchadas”. O ano de 1982 foi quando o “HIV começou a pegar mais”. E 1990, “o período pré-Viagra”.
Após trabalhar um tempo em Sumaré, Basílio dos Santos foi promovido a fresador ferramenteiro. Seu salário dobrou e ele se mudou para São Paulo. Na capital fez novas amizades, e em 1976 passou a organizar orgias. “Eu convencia os amigos, fazia festinhas. Não era nada pago ou profissional.” Viveu bem por alguns anos. Na passagem para a década de 80, contudo, em meio a uma crise econômica que assolaria o país por vários anos, ele perdeu o emprego.
Foi um período difícil. “Entrei para a construção civil, fui trabalhar de pedreiro”, lembrou. Havia uma ironia melancólica na situação. Seu pai, com quem tivera sérios atritos na infância e na adolescência, também havia sido pedreiro. No fim dos anos 80, com as finanças mais estáveis, ele voltou a organizar festas. Conheceu “casais liberais” da elite que também se interessavam por sexo grupal. Entre os novos amigos, havia um homem famoso de tevê – “Não vou citar o nome dele, já está velhinho”. Tinha um fetiche voyeurístico: gostava de ver negros transando com loiras. Arregimentava mulheres dispostas a satisfazer essa vontade, e depois ligava para Basílio dos Santos. Certa vez, um agenciador de prostitutas levou a própria mulher para transar com Santos, enquanto o adepto famoso do fetichismo assistia à cena. Assim como as prostitutas do cais santista, o agenciador se impressionou com Bengala. Deixou-lhe um cartão.
Passou quase um ano até que Basílio dos Santos decidiu contatar o agenciador, que lhe apresentou ao dono de uma revista. Foi ao Rio fazer um ensaio fotográfico e lá conheceu um produtor de cinema, Carlo Mossy. Brasileiro nascido em Tel-Aviv, que fizera fama na época das pornochanchadas, foi Mossy quem lhe deu o apelido fálico que adotaria para sempre.

Em seu ensaio célebre, mas estranhamente moralista, “Big red son”, o escritor americano David Foster Wallace caçoa da vulgaridade do festival Adult Video News, AVN, em Las Vegas, que todo ano escolhe os melhores da indústria pornográfica americana. Gil Bendazon se orgulha dos prêmios que recebeu. Antes de ser contratado pela Brasileirinhas, trabalhou com produtoras americanas, como Elegant Angel e Combat Zone, e se refere a esse mercado e seus diretores como o padrão-ouro, o máximo do pornô. John Stagliano é seu François Truffaut. “Ele visitou minha casa”, disse Bendazon na sede da produtora, sussurrando, como se revelasse um segredo.
Stagliano é considerado um dos mais inovadores diretores da história do pornô. Até o fim dos anos 80, os filmes em geral aspiravam a uma estética hollywoodiana. Tinham enredos, atuações e trilha sonora na hora do sexo. Inventor do pornô gonzo – nome que faz referência ao jornalismo gonzo, de Hunter S. Thompson –, Stagliano procedeu a uma revolução na indústria.[1] Seus filmes, lançados no início da década de 90, dispensavam enredo, trilha sonora ou produção. Em seus primeiros vídeos, ele e Rocco Siffredi, um ator pornográfico italiano que viria a se tornar famoso, flanavam pelas ruas. Abordavam mulheres e as convidavam para a cama. Sem enredo, sem firulas. Quase sempre eram atrizes contratadas, mas o objetivo era criar uma atmosfera prosaica, de encontro acidental. Às vezes, Stagliano se inseria na cena – filmava enquanto transava e fazia comentários para a câmera. O pornô gonzo se espalhou. Filmes como os de Stagliano eram baratos de fazer, e a demanda por esse tipo de pornografia, a julgar pelo sucesso de vendas, estava reprimida. A indústria adotou o estilo.
Bendazon é entusiasta do gonzo. “O punheteiro”, disse de modo enfático, “não quer saber de historinha, de narrativa.” Assim como Kid Bengala, os clientes fiéis – os que alimentam as caixas de e-mail da Brasileirinhas – estão mais interessados nas minúcias da transa em si. Bendazon defende o enfoque no ato, mas não participa das cenas – como dirige vídeos institucionais e comerciais de tevê, costuma cobrir a cabeça com um capuz nos sets pornográficos para preservar sua identidade.
Uma das razões que determinaram a contratação de Bendazon foi sua eficiência. Segundo Nunes, “o Gil não precisa de cinegrafista, de iluminação, de auxiliar para isso, para aquilo. É ele e mais uma pessoa no set. E só”. O apreço do empresário não se restringe ao aspecto econômico. Pelo estilo minimalista, Bendazon tem o que Nunes chama, um pouco eufemisticamente, de “ganho de privacidade nas cenas”. Os atores e atrizes se soltam mais, ficam menos inibidos. A atmosfera do real – o éthos do pornô gonzo – fica mais palpável. Há também certa admiração pessoal: “Quando descobri que tinha um brasileiro ganhando AVNs, fiquei animado, quis trazê-lo”, Nunes disse.

Bruna Ferraz, uma das estrelas do meio, participou do momento áureo do pornô nacional. Chegou a fechar um pacote de dezoito cenas com a Brasileirinhas por quase 200 mil reais. “Ganhei uma bolada na época”, contou quando nos encontramos na entrada de seu prédio, na rua Oscar Freire, em São Paulo. Bruna, que adotou o sobrenome de uma atriz da Globo que admira, vestia uma blusa de renda branca decotada e calça colada. A maquiagem, em tom verde-escuro, estava particularmente concentrada ao redor dos olhos, conferindo-lhe um quê das mulheres retratadas por Toulouse-Lautrec.
Nascida em Alegrete, uma cidadezinha gaúcha perto da fronteira com a Argentina, Bruna foi adotada por uma mulher católica e criada num ambiente conservador. Quando menina ia sempre à missa. Continua religiosa, mas suas crenças atuais são um amálgama de candomblé, misticismo (“Todos temos anjos da guarda”) e monoteísmo (“Ele é o mais importante, acima de tudo”). Às vezes a atriz escuta vozes. “Sempre femininas”, disse. “Elas me dão instruções: faça isso, não faça aquilo.”
Aos 18 anos Bruna saiu de Alegrete e se mudou para Porto Alegre. Pouco depois foi para Foz do Iguaçu e começou a dançar em boates. Aos 24 anos, incentivada por uma amiga, foi para São Paulo, onde se destacou como dançarina e logo começou a receber convites para eventos de revistas. Mas o que suscitou o interesse da indústria pornográfica foi sua presença em vídeos da internet – como já era bastante conhecida, pôde negociar um bom cachê.
Ela foi contratada numa época em que certas celebridades começavam a se aventurar no ramo. Um deles foi o ator Alexandre Frota, que deixou lembranças ambíguas de sua passagem pela Brasileirinhas. “Até a chegada dele, o pornô era totalmente marginalizado, um estigma que vinha desde a época da boca do lixo, das pornochanchadas”, comentou Nunes, e completou: “Frota desmistificou isso.” No entanto, o ator e outros que, como ele – Rita Cadillac, Gretchen, Mateus Carrieri –, rodaram filmes esporádicos só atraíram clientes sazonais. Os fãs assíduos da produtora, os “punheteiros” que sustentam a empresa, não gostam de celebridades. “Frequentemente mandam e-mails reclamando, ou então comentam em fóruns – ‘Pô, e aquela cena risível de Alexandre Frota, o pior ator pornô do mundo?’”, disse Nunes.
Bendazon também é cético em relação ao potencial dos famosos no mundo pornô. “Não dão ângulo, dificultam a vida.” Ele não considera Frota e outros como “atores pornôs de raiz”. Quando perguntei quem seria esse tipo de ator, tanto ele quanto Nunes foram categóricos: Kid Bengala.
Bruna ainda atua, mas ultimamente tem se concentrado mais na carreira de stripper e dançarina. Na última vez que filmou, contou ter fechado um pacote de três cenas por “algo em torno de 10 mil reais”, muito menos do que conseguia outrora. Ainda assim, seu cachê é maior que o de outras atrizes. A maioria dos entrevistados estimou ganhar, por cena, entre 200 reais – de produtoras menores, independentes, que burlam requisitos legais e nem pedem identificação aos participantes – e 1 500 reais – de produtoras renomadas e estabelecidas. Ninguém quis declarar exatamente quanto ganha.

Se, por um lado, a revolução gonzo libertou a pornografia do pastiche, da imitação de segunda mão de Hollywood, ela também facilitou a cultura do “Faça você mesmo”, lema do empreendedorismo. O pornô amador, filmado por pessoas em suas casas ou lugares públicos, é hoje responsável por uma fatia significativa do consumo.
Nunes não acredita que a produção amadora seja a pá de cal das produtoras. “São nichos. O cara que vê filme amador em geral só gosta de filme amador. Muitas vezes o que o atrai é o fato de que aquilo foi filmado sem consentimento, por exemplo. Não é o que a gente faz. A Brasileirinhas é conhecida pelos filmes bem-feitos, acho que nem se quiséssemos conseguiríamos mudar essa imagem.” O problema maior, na avaliação de Nunes e Bendazon, são a pirataria na internet e os sites que disponibilizam conteúdo ilegalmente, de graça. É um problema insolúvel, impossível de monitorar. O mercado para DVDs pornográficos está a ponto de se extinguir. “Hoje você lança um DVD para mostrar que está vivo. Virou operação de marketing. Não dá lucro nenhum”, falou Nunes.
No dia da filmagem, no carro, quando já voltávamos a São Paulo, Bendazon contou que dentro de seis meses a Brasileirinhas provavelmente não lançaria mais DVDs para venda; o acervo será apenas digital. Do banco de trás, Loupan, que acabara de atuar aquela tarde, se assustou: “É sério?”
Paulistano do bairro de Santa Cecília, moreno, baixo e forte, Loupan, de 31 anos, sempre começa as frases como se estivesse a ponto de fazer uma revelação (“Posso te falar uma coisa?”, “A verdade é a seguinte”), e conclui com uma piscadela de olho, satisfeito. Ainda menor de idade, ouviu de uma de suas primeiras namoradas a sugestão de trabalhar como ator pornográfico. Dois dias depois de completar 18 anos, fez um teste. Foi aprovado e nunca mais parou de atuar. Orgulhoso da profissão, ele com frequência menciona os bens conquistados com seu trabalho – carro, casa própria (“Comprei meu primeiro apartamento aos 21 anos”) e, mais recentemente, um curso de inglês. (Naquela tarde, um pouco antes das filmagens, Lolah o chamou para estudarem juntos.)
Loupan não esconde a raiva dos piratas: “Dá vontade de entrar no computador e espancar esses caras”, disse-me, deitado numa cadeira ao lado da piscina, com os olhos semicerrados e uma expressão serena que contrastava com suas frases incisivas. “Não gosto muito de jornalista”, disse a certa altura, calmo, sem traço de agressividade. Ele não vê na pirataria um problema sistêmico. É uma questão de caráter: “Tem muito espertalhão no mundo.” Apesar de criticar os que pirateiam, e tacitamente admitir o declínio da indústria, Loupan não acredita que sofra ou venha a sofrer as consequências da queda. “Quem é bom é bom, não tem concorrência.” É uma atitude comum no meio. O declínio é aceito em termos abstratos, mas nunca de maneira individual, concreta. A regra geral é válida, mas todos se consideram exceções.
Sérgio, o fotógrafo da equipe, paulistano filho de japoneses, de 56 anos, é um que não se esquiva de admitir a decadência. Preserva a identidade por razões financeiras. “Antes a gente sustentava a família com o pornô, mas agora, que já não dá tanto dinheiro, não é legal se expor.” Como atua em outras áreas – sobretudo fotos para jornais e anúncios de joias –, prefere manter o anonimato. De estatura média, camisa polo, óculos de grau e um ar tranquilo, só uma tatuagem na parte interna do antebraço destoa de seu aspecto circunspecto. A tatuagem traz o sobrenome de sua família, grafado em japonês.
Para Sérgio, o declínio da fotografia antecedeu o do pornô. “O trabalho do fotógrafo profissional ficou muito difícil. Você mesmo poderia ter tirado uma foto para essa matéria com seu telefone, não é?” Por já ter experimentado uma turbulência, ele parece ter uma visão mais abrangente do assunto. Evitando a atitude negacionista com que muitos tentam se defender de um futuro sombrio, Sérgio enxerga a decadência da indústria dentro de um contexto maior – é apenas mais uma das áreas que têm sofrido com o advento das novas mídias. “Como o jornalismo, né?”, disse, com um sorriso cúmplice.

EExperiência, seu livro de memórias, o escritor britânico Martin Amis discorre sobre a dificuldade de escrever bem sobre sexo. O problema consistiria no fato de cada ser humano ter preferências muito específicas nesse âmbito, e daí ser complicado extrair de uma experiência concreta, individual, a universalidade necessária à literatura: o oxigênio da empatia. Diante de um sem-número de opções narrativas, recorremos a clichês.
A premissa de Amis é perceptível em filmes pornográficos. Ainda que diferentes uns dos outros, todos eles têm um componente ritualístico e previsível. As interlocuções são sempre as mesmas (“Vai, vai!”, “Que bom!”, “Caralho!”), bem como a apresentação, regida por padrões e modas (genitália depilada, maquiagem densa).
Bendazon me prometera acesso à cena que iria filmar, frisando, porém, que eu não deveria permanecer dentro do cômodo, para não constranger os participantes. O aparente paradoxo se resolveu. No dia da filmagem, postado do lado de fora da casa, eu poderia espiar por entre uma cortina de bambu que resguardava o set.
Não assisti mais do que uns poucos minutos, incomodado por assumir aquele papel de voyeur. A filmagem ocorria no mesmo quarto que, horas antes, quando chegamos para o café da manhã, parecia escuro e melancólico, com colares carnavalescos espalhados pelo chão. Gil Bendazon, encapuzado, segurava a câmera; Black se concentrava no laptop, sem capuz; Cindy movia-se sobre Loupan, que estava deitado num sofá; Lola revezava seus esforços entre os dois. A cena, genérica e similar a tantas outras, o reflexo do vidro e o isolamento acústico me davam a impressão de estar vendo um filme através de uma tela.
Tarde da noite, terminada a filmagem, todos foram recolher suas coisas para voltar a São Paulo. Na sala sobrou apenas Kid Bengala, que havia interrompido a entrevista comigo para gravar a apresentação da Casa das Brasileirinhas. Retomamos a conversa. Largado no sofá, sem camisa, as câmeras desligadas mas ainda apontando em sua direção, Bengala voltou a falar de si.
Após rodar seu primeiro filme pornográfico, em 1990, no Rio de Janeiro, o ator ficou apenas alguns meses na cidade. Fez mais dois filmes, “para aprender a lidar com as câmeras”, e esperando ser chamado para atuar no exterior. Ouvira que profissionais como ele ganhavam muito dinheiro na Europa e nos Estados Unidos. (Anos depois descobriria que os atores de fora não eram tão bem remunerados: “Essa história é balela. O que se ganha aqui ganha-se lá, a diferença é pouca.”) De todo modo, como na época ainda não existia uma indústria nacional de pornografia, Bengala retornou a São Paulo. Seguiu sua vida como fresador ferramenteiro e retomou as orgias com amigos.
Um desses amigos, Sandro Lima, viria a se tornar cinegrafista da Brasileirinhas. Quando o mercado cresceu, por volta de 2003, 2004, ele convidou Bengala a voltar à ativa. A princípio, o ator não acreditou que a proposta pudesse cobrir seu salário na fábrica – lembrava que em 1990 o mercado não pagava bem. Ofereceram muito mais. Já na casa dos 50 anos, ele assinou um contrato de dois anos e logo passou a ser um dos atores mais importantes da pornografia nacional, a ponto de ser disputado pela concorrência.
Contou que há poucos anos a Falotex, empresa que produz extensores penianos, investiu na criação de uma réplica de seu pênis. A Adão e Eva Toys, uma outra empresa, recentemente fez uma oferta para expandir em escala nacional a distribuição do artefato. Bengala ganha royalties sobre cada unidade vendida. Quando perguntei se o declínio da indústria poderia afetá-lo de alguma forma, ele foi enfático, passando do uso da primeira para a terceira pessoa: “A queda do pornô nunca alterou minha vida, em nada. Porque o Kid Bengala é um ícone.”
Estimulado pela notoriedade alcançada, em 2008 o ator decidiu candidatar-se a vereador pelo PPS (Partido Popular Socialista). Fez campanha em prostíbulos, cabarés, boates. Abordou camelôs que vendiam seus DVDs na rua 25 de Março. Conseguiu menos que mil votos. Afetado pela derrota, teve o que define como uma “semidepressão”. Passou um tempo na Europa, filmando em Hanover, na Alemanha, e em Salzburgo, na Áustria, mas não se adaptou. “Fiz uma doideira”, disse, referindo-se à eleição. “Candidato de primeira viagem sempre acha que vai ganhar.” No ano passado, no entanto, voltou a se candidatar, desta vez a deputado estadual pelo PTB. Com pouco mais de mil votos, foi novamente derrotado.
Ele desacelerou o ritmo da fala ao comentar os reveses. Mas o desânimo durou pouco. Alguns instantes depois, Bengala já estava falante e efusivo novamente. Enquanto discorria sobre a sua vida em São Paulo e a ascensão ao estrelato pornô, interrompeu o raciocínio, como se tivesse esquecido de dizer algo importante. Parecia o prelúdio de mais uma digressão sexual, talvez uma lembrança do cais de Santos e das suas primeiras namoradas. Mas, sorrindo, ele apenas arregalou os olhos e perguntou na minha direção: “Ô, jornalista, você já viu o tamanho dele?”
14 de junho de 2015
Alejandro Chacoff


[1] Surgida no início dos anos 70 e cunhada pelo americano Hunter S. Thompson, a expressão “jornalismo gonzo” passou a designar um estilo no qual o repórter se mistura à história que narra e comenta no texto essa sua interferência, descartando qualquer aspiração à objetividade.

A MORTE E O OLHAR



Um ensaio sobre o efêmero e a observação do outro
Espero um voo no Aeroporto de Newark. Houve um tempo em que qualquer canto dos aeroportos era um lugar bom para ler, ou então relaxar, esvaziar-se, não ser ninguém em particular – e nesse sentido ser, mais especificamente, você mesmo. Hoje há aparelhos de tevê por toda parte, posicionados de tal maneira que, quando consigo escapar do som do primeiro, já ouço o seguinte, e as notícias da mais recente atrocidade ou do último escândalo do governo me seguem de um ponto a outro, com todo o poder e a insistência de que banalidades amplificadas se revestem atualmente. Nem mesmo bares e restaurantes oferecem refúgio, embora neles em geral a conversa gire em torno de esportes ou da mais nova e malcomportada banda de garotos.
Nesse momento, porém, a atmosfera está um pouco diferente, porque agora a morte nos atrai. Ou melhor: a vida após a morte, que já há algum tempo se tornou assunto de domínio público – um medo momentâneo, seguido de uma luz branca da qual, vindo diretamente da direção de elenco, surge um porteiro bondoso para dar as boas-vindas aos recém-falecidos. A existência dessa antecâmara do além é uma crença compartilhada por milhões, nos quais possivelmente se incluem os 86% da população norte-americana que afirmaram ao programa do Larry King acreditar em extraterrestres – e, dessa parcela, um expressivo número de sujeitos atribui aos extraterrestres as mesmas capacidades sobrenaturais de Lúcifer e dos anjos caídos. O testemunho de hoje não vai tão longe. Na verdade, é coisa bem rotineira. Interessante é a dimensão humana.
Ao que parece, a entrevistada – cuja voz revela ser uma mulher de meia-idade, jovial, proveniente do Meio-Oeste – morreu há dois anos no pronto-socorro de seu bairro. De acordo com os médicos, diz, ela esteve “clinicamente morta” por sete minutos. Agora, em sua mente, ela visualiza a equipe do pronto-socorro em ação. Enfermeiras e médicos atarantados, às voltas com o corpo que ela acaba de deixar, pedem alguma coisa aos gritos, exatamente como na tevê. Ela se admira com todo aquele rebuliço e toda aquela urgência, uma vez que se sente muito calma e nem um pouco assustada.
Então vem a luz, e a mulher avança rumo à claridade, para longe de todo o caos deste mundo. Por um breve instante ela se pergunta por que tudo é tão fácil, por que não sente nenhum pesar, se tem tudo para querer viver: um bom marido, um emprego que a faz feliz, filhos maravilhosos, a fórmula de sempre. Mas sua hesitação não dura, e logo ela é tragada, a luz que brilha a seu redor parece menos um deus que uma nuvem, uma nuvem carregada de toda a memória, de todos os dados. Aquela esposa e mãe quer ir, quer deixar tudo para trás, sua antiga vida desaparecendo aprazivelmente na distância, um sentimento de paz arrebatador inundando-lhe o espírito, até que alguém ou alguma coisa no interior daquela luz sagrada e misericordiosa a informa de que ela precisa voltar, que sua hora não chegou. Ela tem chão pela frente.
Assim, ela retorna ao pronto-socorro, onde uma voz ainda grita por alguma coisa e a luz da alma se acinzenta. A mulher volta, pois, e, segundo seu relato, o pesar por aquilo que perdeu é palpável. Eu me pergunto o que os filhos dela acham disso tudo, ou o que pensa o marido ao levá-la de carro para o trabalho. “Era algo maior”, ela diz, “muito maior” (ou coisa semelhante), e então para de falar – só que agora já sentimos em sua voz o pesar não apenas pelo outro mundo perdido, mas também pelo fato de sua história ter chegado ao fim. Como numa espécie de Magnificat moderno, sua alma indigna havia sido, por um momento, escolhida e privilegiada, mas, tão ou mais importante que isso, ela havia sido selecionada pela televisão.
Sua história fora sancionada, sua única experiência digna de relato fora registrada para a posteridade do YouTube, tendo recebido, enfim, o aval de uma autoridade em que sabemos não poder confiar, mas na qual acreditamos assim mesmo, porque ela nos conta aquelas histórias simples e incontestes que, mesmo quando trágicas ou ameaçadoras, estão em consonância com a narrativa que esperávamos. Valendo-se de tal expediente, a televisão toma posse não apenas de nossa vida, mas também da nossa vida após a morte. As histórias de Lázaro que contamos e recontamos, extasiados de admiração e alegria, são roteiros imaculados, já ensaiados milhares de vezes ao vivo. Quem pode dizer se histórias como essas nos ocorreriam, caso não tivéssemos sido adestrados pela tevê?

Alguns anos atrás conheci o fotógrafo Richard Avedon, quando ele esteve num bar de Glasgow para retratar um grupo de escritores escoceses. Por acaso, eu tinha acabado de ver sua exposição retrospectiva, Evidence, na National Portrait Gallery, e ficara quase obcecado com as fotos que Avedon fizera de seu pai, Jacob, ao longo de alguns anos. A série culminava num conjunto profundamente comovente, no qual o velho homem, antes vestido de modo formal, com paletó e gravata, agora aparecia com um avental hospitalar. Mais tarde, Avedon escreveu:
De início, ele apenas concordou em me deixar fotografá-lo, mas acho que, depois de algum tempo, começou a querer que eu o fizesse. Passou a contar com aquilo tanto quanto eu, porque era um modo de nos forçarmos um ao outro a reconhecer o que éramos. Eu o fotografei muitas vezes durante os últimos anos de sua vida, mas nunca olhei de fato para as fotos até depois de sua morte. Agora, fora do contexto daqueles momentos, as fotografias parecem completamente independentes da experiência que foi fazê-las. Existem por si sós. Tudo que acontecia entre mim e meu pai era importante para nós, mas não importa para as fotos. O que há nelas é algo contido em si mesmo e, de alguma estranha maneira, independente de nós dois.
Naquele dia, porém, quando perguntei a Avedon sobre essas últimas imagens, ele me contou uma história elegante e autoexplicativa. Contou-me que estivera fora, trabalhando na Suíça, e que, sabendo da iminência da morte do pai, telefonava para casa todo dia, para perguntar sobre seu estado. Por ocasião de uma dessas ligações, uma enfermeira lhe disse que não se preocupasse, que o pai estava determinado a aguentar até a volta dele, porque sabia que ainda havia uma última foto a tirar. E, de fato, quando Avedon regressou aos Estados Unidos, seu pai continuava vivo, pronto, por assim dizer, para aquele close final. Com certeza o fotógrafo já havia contado o episódio antes; a narrativa era bem elaborada e nada superficial, e evidentemente ele apreciou o efeito que provocou em mim, um completo estranho. Mas acredito que as coisas tenham ocorrido exatamente daquele jeito. Por dias, aquele pacto de pai e filho diante da morte não me saiu da cabeça, fazendo-me não tanto desejar, mas antes imaginar como teria sido se meus pais e eu tivéssemos encarado de forma semelhante a mortalidade deles e, chegada a hora, nos despedido de maneira tão delicada.
Contudo, ainda que a série de fotos de Avedon seja extraordinária, o retrato fotográfico possui a limitação imposta pelo momento único, um momento no qual o objeto tem consciência de estar sendo observado. Refletindo um pouco mais sobre a atitude do pai em relação à série, Avedon destaca:
Um retrato fotográfico é uma imagem de alguém que sabe estar sendo fotografado, e o que esse alguém faz com esse conhecimento é parte da fotografia na mesma medida da roupa que veste ou seu aspecto geral. Ele está implicado no que se passa e tem certo poder real sobre o resultado. Lisette Model me disse sentir que aquelas fotografias de meu pai eram “performances”, e concordo com ela. Todos nós atuamos. É o que fazemos uns para os outros o tempo todo, seja de forma deliberada ou não. É um modo que temos de nos apresentar, na esperança de sermos reconhecidos como aquilo que gostaríamos de ser. Confio em performances.

Nos instantâneos familiares, porém, o que muito frequentemente transparece é aquele constrangimento doloroso apenas por se estar sendo fotografado: o sujeito não deseja atuar, ou não sabe fazê-lo, e assim desaparece diante da lente, paralisado pelo fato de o estarem observando sem que ele tenha o que mostrar. Meus pais não gostavam de ser observados, quaisquer que fossem as circunstâncias, com ou sem a presença de uma câmera. Minha mãe, em particular, ficava aflita quando a gente olhava fixamente para ela (e, por extensão, para qualquer pessoa).
Passados muitos anos, acho que essa agonia era provocada por uma sensação de se sentir devassada quando observada, e isso porque ela não tinha como ocultar seu próprio sentimento de inadequação e, portanto, sua mortalidade transparente – ou não sabia fazê-lo, como julgava que outras pessoas, mais bem-sucedidas, talvez o soubessem. Esse era o motivo daquele poderoso interdito que pesava sobre encarar os outros: o olhar fixo lembrava, quando não confirmava, a mortalidade do observado. É por essa razão que não se pode encarar o rei: se certo número de súditos o olha, seu poder se dissolve.
Tendo crescido nesse mundo elusivo, sem olhos – um mundo em que olhar fixamente, até mesmo por um único milissegundo além da conta, equivaleria a uma agressão –, tornei-me incapaz de encarar qualquer pessoa de algum modo que fosse significativo, ou seja, de maneira inquisitiva ou perscrutadora. Durante anos, ao que tudo indica, não vi ninguém (ou, se vi, foi por meio de um olhar furtivo, uma olhadela roubada da mesma maneira que a câmera rouba a alma), até que topei com certo tipo de cinema no qual o olhar demorado era, em si, parte inerente da narrativa.
Sentado no Arts Cinema de Cambridge, trajando minhas ordinárias roupas do Exército e da Marinha – estudante pobre que, muitas vezes, trocava a refeição por um bom filme –, aprendi a apreciar a liberdade de fitar rostos humanos, vê-los passar por uma série de emoções diferentes ou mergulhar na autocontemplação, no tédio ou mesmo naquela bela ausência em que a alma parece emergir rumo à luz corriqueira do dia, como um animal que vai brincar num terreno que julgou seguro. Isso foi o que a época áurea do cinema (sobretudo europeu) significou para mim, mais do que qualquer outra coisa: ela permitiu que meus olhos se detivessem no rosto de outra pessoa que era, ao mesmo tempo, um ser humano real e uma ilusão. Até então, esse olhar era proibido.
Foi apenas quando os filmes de arte em preto e branco chegaram – a câmera parada em Garbo ou no rosto de Marcello Morante na abertura de O Evangelho Segundo São Mateus, de Pasolini –, e, mais tarde, com o início da televisão, que pudemos olhar impunemente para um rosto e suas alterações de expressão, como o de Morante nas duas cenas iniciais do Evangelho, quando ele encara Maria, inexplicavelmente grávida, e seu semblante se altera, indo da dúvida e da decepção à angústia e, por fim, à aceitação estoica e compassiva, depois da visão do anjo.
Andy Warhol, nos cerca de 500 Screen Tests que fez entre 1964 e 1966, reconheceu o poder dessa forma de olhar: “Eu só queria encontrar pessoas legais, deixar que fossem elas mesmas, que falassem o que costumavam falar, e eu as filmaria por determinado tempo. Esse seria o filme”, disse ele. Os “testes” – que incluíram gente como John Ashbery, Lou Reed, Dennis Hopper e Susan Sontag – foram registrados em rolos de 30 metros de filme preto e branco, a 24 quadros por segundo; depois, projetados quase em câmera lenta, à razão de 16 quadros por segundo. Os resultados variam bastante.
Lou Reed, que havia estudado teatro, se vale de uma garrafa de Coca-Cola como acessório e usa óculos escuros, de modo que não vemos seus olhos; a cantora Nico posa, olha para uma revista, e se entedia. Mas, no teste mais cruamente íntimo e fascinante, Ann Buchanan, ex-mulher do poeta beat Charles Plymell, por um minuto ou mais fita a câmera sem piscar, até que começa a chorar, as lágrimas formando-se pouco a pouco, e depois escorrendo lentamente pela face. Nesse momento, continuar olhando para o rosto daquela mulher transforma-se numa experiência inquietante, mas estranhamente bela. Esse filme breve revela a graça sem palavras de um indivíduo, e o faz de uma maneira que não requer nenhuma outra informação externa, nenhum conhecimento e nenhum contexto.

A televisão também se valeu do poder desse olhar monocromático. Boa parte da beleza do celebrado drama de Ken Loach Cathy Come Home, de 1966, é tão desprovida de palavras quanto o melhor de Pasolini ou o teste de Ann Buchanan. Desde o primeiro quadro, a câmera isola o rosto de Carol White do fluxo do tráfego, enquanto ela pega uma carona para Londres; depois retorna a essa cena nos créditos finais, quando, sozinha e sem ter onde morar, tendo perdido os filhos, nós a vemos de pé numa rua escura, o tráfego fluindo de novo. Tanto quanto as revelações factuais acerca das injustiças que o “sistema” comete com os sem-teto – ou ainda mais que elas –, é o olhar da câmera para o rosto de Carol White que desafia o espectador.
“Preto e branco são as cores da fotografia”, Robert Frank observou certa vez. “Para mim, elas simbolizam as duas possibilidades, esperança e desespero, a que a humanidade estará para sempre sujeita. A maioria de minhas fotos é de pessoas; elas são vistas com simplicidade, como se através dos olhos do homem da rua. Há uma coisa que a fotografia precisa conter: a humanidade do momento.” Essa qualidade com certeza está presente na fotografia de Frank – mas o aspecto performático ao qual Avedon alude está lá também, como há de estar em qualquer retrato estático. Num filme, todavia, sobretudo quando se tem uma narrativa exterior, com personagens que os atores podem dizer a si mesmos que estão representando, esse elemento performático sofre um desvio.
A atriz que representa um papel nos permite ver seu próprio rosto, nos permite vê-la na condição de uma atriz representando aquele papel. Em Cathy Come Home, é doloroso ver a jovem mulher, alegre e otimista, que no começo do filme pega uma carona para Londres, tornar-se cada vez mais angustiada. Mas quando a deixamos naquela rua escura, não é a Cathy do roteiro que nos aflige, e sim Carol White, uma pessoa para a qual ficamos olhando por um bom tempo, enquanto ela se ocupava de representar seu papel. É com ela que, por uma aliança tácita e autônoma, nos preocupamos nesse momento, e de um modo que raras vezes nos preocupamos com nossos parentes mais próximos.
Antes do cinema e da televisão, minhas primeiras experiências em matéria de olhar para rostos – observando, digamos, minha mãe cochilar numa poltrona – eram marcadas pela culpa e pelo medo, bem como pela curiosa noção da mortalidade da pessoa contemplada. Ao olhar para uma pessoa corremos o risco de devassá-la e, portanto, de vê-la como mortal, um ser imperfeito, sujeito a perecer – daí resultando o intolerável sentimento de compaixão.
Foi por essa razão que não quis ver o rosto da mulher na tela de tevê do aeroporto: ouvindo a voz dela – uma voz musical, com um leve toque daquela bondade típica do Meio-Oeste –, eu podia imaginá-la como membro de alguma outra tribo, mas observar seu rosto (em cores, é claro) teria sido outra história. Não quis vê-lo, e não porque a narrativa sobre a vida após a morte me irritasse, nem mesmo porque me embaraçasse a traição implícita que a narradora cometia em relação a sua vida cotidiana. Não. Eu não quis olhar para ela porque imaginei que poderia enxergar algo familiar em seu rosto – familiar no sentido antigo da palavra, de espírito familiar, à maneira que um gato de bruxa ou um amante secreto já foram, um dia, muito próximos –, o que, por sua vez, significa algo que, para salvaguardar seu poder, deveria permanecer oculto aos olhos de todos.
Da mesma forma, a história de Avedon me afetou bastante, mas só mais tarde comecei a conjecturar o que o pai haveria de ter feito enquanto esperava a volta do filho famoso para a última sessão de fotos. Teria pensado numa vida após a morte? Imaginara que aquele seu legado não era uma obra de arte, nem mesmo um monumento faraônico a sua própria pessoa, e sim uma homenagem comemorativa aos tempos que vivera, uma homenagem que incluía todos aqueles que haviam vivido aqueles tempos com ele, todas as tribos, todos os amores, todos os lugares, refletidos num rosto moribundo?
Talvez seja fantasioso, mas, ao olhar mais uma vez aquelas fotos de Jacob Israel- Avedon do início da década de 70, vejo na performance de Jacob um feito artístico que impressiona ainda mais que as fotografias em si. Na verdade, o que vejo é exatamente o contrário do orgulho faraônico; vejo a fantasia banal da caminhada até a luz, rumo ao abraço dos entes queridos, ou de Jesus, ou do velho professor de arte – uma experiência que, como já disse, se parece muito com entrar num estúdio de tevê para um episódio de Esta é a Sua Vida. Em suma, o que vejo no rosto de Jacob Avedon é a certeza do que esse rosto não é: não é a minha vida, não pertence a mim. É compartilhada e, quando eu paro, ela segue adiante, até que eu – ou alguma coisa como eu – surja de novo, curioso, envergonhado e disposto a olhar fixamente.

Meus pais nunca souberam olhar fixamente, menos ainda depois que foram obrigados a se mudar para longe de tudo que conheciam; então, quando o estranhamento cobrou seu preço, morrerem rodeados de estranhos, de pessoas das quais teriam desejado gostar mais, mas que não eram sangue de seu sangue. Não eram parentes. Mas o que agora me parece ainda pior é que foram obrigados a morrer em meio às cores erradas.
Ainda que Corby tivesse sido conhecida como “a pequena Escócia”, essa nova cidade não tinha nada da atmosfera profundamente granulada das cidades mineiras de Fife, de onde eles vinham. Era moderna à maneira inflamada e bem o cor-de-rosa que os planejadores urbanos privilegiavam na década de 60; faltavam-lhe sombras mais profundas e a severidade chuvosa a que meus pais estavam acostumados. Mergulhadas em cores sintéticas, as casas novas se deterioravam na tinta brilhante descascada e na imitação de carpintaria, os cômodos atulhados de tecidos e móveis berrantes pelos quais aqueles exilados econômicos agora podiam pagar. Aconteceu também de essa mudança para Corby coincidir com o aparecimento (algo precoce) de certa hipersensibilidade em minha alma pré-pubescente, e me lembro de como eu era infeliz vivendo em meio àquela cafonice, e isso num momento em que se ensina às crianças que toda cor, toda combinação de cores, significa alguma coisa.
As bandeiras, por exemplo, eram emblemas da terra e do sangue, e a luz de algum Deus único e verdadeiro; emblemas da terra natal, da terra-mãe, do povo como clã, consciente de si mesmo, exclusivo, violento. O verde era irlandês, católico, celta; o azul era o inimigo. As vestimentas do padre seguiam um código de cores conforme aos humores de Deus: vermelho para Pentecostes ou para os dias dos mártires; roxo para a época do Advento. Meus pais pertenciam a esse mundo e pareciam querer que também eu me integrasse a ele, por razões que nunca consegui compreender – porque, na verdade, não tinha nada a ver conosco.
Nos dias em que vestíamos o vermelho da papoula, em memória de nossos mortos gloriosos, eu observava as matronas envergonhadas e os tios com cicatrizes da guerra que se reuniam do lado de fora da igreja, e me punha a imaginar o que de fato sentiam, se alguém acreditava de verdade em glória ou sacrifício. Na missa, a Virgem erguia-se em seu nicho azul e dourado, e nosso Deus-Homem me fitava com seu Sagrado Coração pregado no manto, as mãos estigmatizadas erguidas para mostrar a profundidade sangrenta de seus ferimentos – e, mais do que qualquer coisa, eu queria viver no preto e branco dos filmes antigos.
Seria um ato de misericórdia que às pessoas à beira da morte fosse facultado habitar por algum tempo aquela zona em preto e branco, antes de escorregar para sempre para dentro dela, mas esse não seria o caso de meus pais. Minha mãe foi diagnosticada com um câncer inoperável aos 47 anos de idade e passou meses deitada, sob uma colcha brilhante num dos verões mais quentes de sua vida, cercada de rosas e de cartões de melhoras. Quase todo dia colegas de trabalho e vizinhos iam visitá-la, e eu a ajudava a descer até a grande poltrona junto à lareira, onde ela recebia as visitas num roupão rosa e verde. O tecido era sintético e, para mim, um tanto escorregadio, quando, quase no fim, eu precisava carregá-la.
À época, eu era jovem e ignorante demais para compreender que a conversa fiada que preenchia aquelas ocasiões era mais que mecânica – que, para minha mãe e seus amigos, ela significava muitíssimo –, mas percebia com muita clareza que todas aquelas pessoas evitavam se olhar no rosto por muito tempo. Minha mãe continuou daquele jeito por vários meses, durante os quais fiquei em casa para cuidar dela. Então, cerca de uma semana antes de ela morrer, duas tias chegaram da Escócia, e fui excluído do quarto da enferma. Ela não queria que eu a visse naquele estado – essa era a explicação. Era melhor guardar dela a lembrança de como havia sido em vida. No melhor de sua forma. Mas, no fundo, eu nunca a havia visto no melhor de sua forma. Nós jamais havíamos olhado de fato um para o outro. Tínhamos muita vergonha.

A última vez que vi meu pai foi numa enfermaria de hospital, depois de seu terceiro ataque cardíaco. Algumas horas antes que eu, por fim, conseguisse chegar lá (estivera viajando), o homem no leito vizinho morreu – uma equipe médica de emergência cuidou dele, sua alma supostamente alçando-se em direção a uma luz leitosa, para nunca mais voltar. Eu sabia que o grande medo de meu pai era morrer entre estranhos, ao lado de alguém que não conhecia e que nada significava para ele, um estranho fitando seu rosto ou apalpando seu pescoço para afrouxar o colarinho.
Sabia disso porque um de seus amigos morrera assim, num ônibus na hora do rush. Uma hora depois de receber a notícia, meu pai explodiu num de seus acessos de raiva contida do mundo e, deliberada e sistematicamente, quebrou uma a uma as plaquinhas de vidro do tamanho de um punho que adornavam um ponto de ônibus perto da casa de minha tia. Agora, ante a possibilidade (em sua cabeça, pelo menos) de passar por algo semelhante, implorava que eu convencesse os médicos a mandá-lo para casa – em seu desespero, quase me olhava nos olhos ao fazer o pedido.
Quase, embora não de todo. Na verdade, ele sobreviveu ao ataque cardíaco, mas morreu poucos meses depois em seu clube, sobre um carpete de gosto duvidoso, a meio caminho entre o bar e as máquinas automáticas de cigarros. Por um momento, disseram-me, ninguém notou que ele se fora.
Muito antes dessa derradeira evasão, num verão em que eu ainda vestia calça militar de segunda mão puída nos joelhos, ao capinar o jardim de minha mãe arranquei do barro uma pequena lata enferrujada e a abri. Dentro dela havia um montinho de osso e penas; se aquilo um dia tivera cor, ela havia desaparecido, não fosse uma mancha de azul-anil e um último fio carmesim. De pé no sol quente, eu fitava meu achado com um misto de admiração e tristeza.
Um dia aquilo tivera vida, mescla de pulsação e tremor, como os pintarroxos no viveiro doméstico de um primo meu, passarinhos que apanhávamos em armadilhas feitas de caixote e recolhíamos como preciosidades do campo na periferia de nossa cidade mineira. Agora, a despeito do que tivesse sido, não passava de um punhadinho de penugem e osso ressecado, tão sem vida como o pó e os fósforos usados que, em dia de faxina, minha mãe amontoava com a vassoura no cantinho onde lavava a louça. E, no entanto, por mais insubstancial que parecesse, nada que eu jamais havia possuído ou desejado tinha tanta importância para mim.
Teria dado qualquer coisa para trazer aquele corpo de volta à vida, pelo menos para ver o que era. Um pássaro nativo ou um passarinho de estimação, como aqueles tentilhões de cores vivas que eu havia visto na loja de animais, logo depois do cinema? Quem o enterrara ali? Um adulto? Uma criança? Tinha ouvido que os inquilinos anteriores da nossa casa eram PDs – era o que Jim Black, da casa pré-fabricada vizinha, tinha dito a minha mãe –, e, quando perguntei o que aquilo significava, fiquei tão intrigado com a resposta que carreguei aquelas palavras comigo durante dias. PDs, pessoas deslocadas.
Fiquei fascinado com aquela ideia – deslocadas como crianças que se perdem na terra das fadas, ou como cavaleiros andantes que se afastaram da terra natal e se veem sem seu soberano, para além da lei e da proteção do poder real. Pessoas deslocadas. Talvez uma dessas pessoas tivesse enterrado aquela latinha, murmurando uma breve oração ou uma bênção em polonês, digamos, ou lituano, antes de fechar a cova e ir-se embora, uma vez cumprido o arremedo de ritual fúnebre.

Soa tão trivial, quase mecânico – mas essa, penso, é a verdadeira vida após a morte, ou pelo menos uma vida após a morte que vale a pena contemplar: a qualidade duradoura do gesto de ternura, a celebração de qualquer traço remanescente de cor ou graça. Uma lembrança dos versos de Walt Whitman:
Tudo segue e se transforma, nada perece,
E morrer não é como parece, é muito mais agradável.
Os sentimentos nesses versos podem ser deflagrados por uma fotografia ou um arremedo de exéquias num quintal chuvoso, mas o que os representa melhor é o olhar casual e rotineiro que perdura o bastante para discernir quem vê e quem é visto, livrando-os da mortalidade e deslocando os dois para um novo terreno de possibilidades. O que iremos descobrir pode soar banal: um murmúrio de preces vespertinas para além das luzes fluorescentes de uma sala de espera de hospital, uma lua cheia e brilhante refletida ao longo de quilômetros de telhados inclinados e quintais lavados com mangueira, enquanto um homem volta para casa de carro, depois de um jantar formal, o nó da gravata afrouxado e o rádio tocando uma música que, embora ele nunca tenha ouvido, acha tão bonita que mal ousa respirar.
Esse é o momento que amantes ou amigos anteveem quando trocam o primeiro olhar, e se um deles morre e o outro está em alguma outra parte – numa lavanderia, digamos, ou escolhendo a sobremesa num jantar com colegas –, se um deles deixa de existir, penso que o outro talvez perceba, seja um nada extraordinário que estabiliza o mundo, mesmo que por um único instante, como a derradeira visão de tudo antes de uma luz se apagar, ou então (sem querer impingir uma espécie de clichê da vida após a morte) um momento de descrença ao final da travessia, um momento seguido de um breve hiato, de um olhar para trás desprovido de pesar, um olhar para tudo que foi, antes da partida ou dispersão, ou antes do antarãbhava.[1]
Não me refiro aqui a uma nova vida, pelo menos não àquela consoante com as fórmulas habituais – uma reencarnação, digamos, sob a forma de cervo, ou peixe, ou um feixe de células-tronco e carma. Penso que a morte demanda, antes de mais nada, a dissolução do eu histórico, um esquecimento, a fim de tornar irrelevantes todos os dados aparentes – para que o que quer que emerja, caso emerja, seja novo, desmemoriado e desvinculado. Desvinculado, sim, e, no entanto, que de alguma maneira pareça uma realidade universal, não de todo apartada do que sabia antes, de tal modo que, mesmo que acabe olhando para fora do interior de um corpo novo, na condição de um novo eu, nela ainda persista uma fibra de tecido conjuntivo, um desejo quase, mas tão totalmente, impossível de fitar outra vez o que fitou no passado, e lamentou, e esqueceu.

[1] No budismo tibetano, o estado intermediário entre a morte e a reencarnação.
14 de junho de 2015
John Burnside