quinta-feira, 4 de setembro de 2014

ALADIM E A IDADE DO AVÔ

 
         Após despedir-se do último convidado da sua festinha de sexto aniversário, o menino sentou-se na sala com o avô, que passara a cuidar dele quando os pais se divorciaram. Ambos trabalham agora muito longe. A mãe telefonou da Europa, onde estava em férias com o amante. Encheu-o de abraços e beijos telefônicos; e para evitar o previsível choro por sua inqualificável ausência, anunciou que o Correio entregaria mais um brinquedinho reluzente. Do pai, ouvira também a voz despersonalizada e metálica de telefone. Não o via há mais de um ano, mas já recebera o presente dele. O avô viúvo lamentava essa solidão, mas pouco podia fazer. Encomendara para ele uma festinha comercializada, com quase nada de familiar.
 
         — Vovô, quantos anos você tem?
         O avô quis aproveitar a oportunidade para prolongar a conversa, e propôs:
 
         — Olha, eu já sou bem idoso, e quero ver se você adivinha a minha idade. Eu vou falando e você vai calculando o tempo.
 
         — Uau! Melhor do que jogo com monstrinhos. Vou esfregar o Aladim.
         O avô não entendeu para que serviria o celular. Sabia que o menino costumava esfregar a “lâmpada do gênio” para ter tudo o que queria, e começou por aí:
 
         — Quando eu nasci, não existia celular.
 
         — Peraí. – Batucou no celular quase um minuto, e disse: Já sei, é a sua vez.
 
         — Quando eu nasci, não havia internet, computador. Quem estava longe escrevia carta contando as novidades. A gente gostava de receber e escrever cartas longas, detalhadas, nada de mensagem curtinha de twitter. Muitos caprichavam tanto, que depois as cartas saíram em livros, são grandes obras literárias.
 
         — Vô, pra que eles querem saber da vida dos outros?
 
         — Bem, filhinho, quem é amigo de verdade quer saber tudo o que aconteceu.
 
         — E o pessoal que vai ler isso nos livros? São amigos também?
 
         — Os livros ensinam bons sentimentos, amizade, respeito aos pais.
 
         — Acho que entendi. É a minha vez de calcular.
         Terminado o batuque no smart phone, o avô prosseguiu:
 
         — Quando nasci, quase ninguém tinha geladeira, não havia microondas.
 
         — Chííí! Onde guardavam comida e guaraná? Como esquentavam a comida?
 
         — Não precisava. A mamãe estava sempre em casa, fazia toda a comida no fogão, e também uns sucos saborosos. O cheirinho gostoso da comida que estava sendo preparada abria o apetite, e até iniciava o processo de digestão.
 
         — Vô, não sei nada desse negócio de digestão, mas já dá pra calcular. Peraí.
 
         — Calculou? Bem, a televisão já existia, mas só preto-e-branco, e só um canal.
 
         — Nossa! Nunca vi TV preto-e-branco. Deve ser muito feio, não é?
 
         — Cores bonitas, a gente gostava de ver na natureza, que é toda colorida. Você já viu como são bonitos os passarinhos, os rios, as montanhas?
 
         — Uhm... Tem de andar muito pra ver isso fora da cidade. Tablet e TV é fácil, mas não tem passarinho, só monstrinho e palhaço. Agora deixa calcular.
 
         — A gente ia pra escola a pé, não havia ônibus, poucos tinham automóvel. Todo mundo chegava na hora, sem trânsito complicado. E na volta a gente passava na casa de algum colega, a mãe dele sempre dava uma fruta, um doce. Ah! Bons tempos!
 
         — Olha, vô, esse negócio de andar muito cansa e gasta as pernas.
 
         — De jeito nenhum, até ajuda a conservar, fortalece os músculos, ninguém fica gorduchinho, molengão. A gente passava no riacho e nadava um pouco, isso também é bom para fortalecer os músculos.
 
         — Vô, eu nado só no meu clube. Seu clube chama riacho?
 
         — Não existia clube. Resolveram tampar o riacho, e ele virou esgoto.
 
         — Acho que você é muito velho. Essas coisas que não existiam, eu estou sempre vendo. Peraí que vou calcular. Esse agora é meio demorado. ... Pronto.
 
         — As famílias eram grandes, estavam sempre juntos, brincavam juntos. Conversavam como estamos fazendo agora, a TV não atrapalhava as conversas. Passavam as férias juntos, uns ajudavam os outros. Os vizinhos eram conhecidos, e havia muitas visitas para bate-papo. Pai e mãe separados, vivendo longe dos filhos, é coisa que ninguém conhecia. E uma mulher precisava de marido para ter filhos.
 
         — Acho que era melhor no seu tempo. Meu pai tá sempre longe, minha mãe só fala comigo quando esfrego o Aladim. Ficar juntos deve ser muito melhor.
 
         — Não sei como consertar isso, filho. Ninguém se sacrifica pelos outros. Tudo que inventam facilita alguma coisa, mas vai tirando os melhores prazeres da vida.
 
         — Vô, como é que pergunto essas coisas pro Aladim?
 
         — Não sei. Calcule sem isso, e inclua também que não havia calculadora.
 
         — Então deixa fazer as contas. Soma este mais este... mais aqueles dois... e os três lá de trás. Agora deixa ver o calendário. ... Vô, quem é essa Guerra do Paraguai?
 
         — Como!? Guerra não é uma pessoa!
 
         — Mas o Aladim diz que você tem 149 anos e nasceu em 1865, junto com ela.
         O avô lamentou a sorte desse menino, com mãe virtual que não é virtuosa; com um pai reduzido a provedor à distância; sem irmãos e primos; cheio de brinquedinhos que não ensinam de fato nem o corrigem. Está tentando educá-lo, mas receia pelo futuro dele e do mundo, onde crianças que não têm mais uma família.
 
— Bem, meu filho, depois eu o ajudo a corrigir uns errinhos do seu cálculo. Agora quero ensinar você a gostar de coisas muito melhores de antigamente, sem esses brinquedinhos como televisão, celular, tablete, internet...
 
04 de setembro de 2014
Jacinto Flecha