terça-feira, 6 de setembro de 2011

CONVERSA DE BOTEQUIM

É preciso entender um pouco da história do homo sapiens, para compreender que conversa de botequim não tem leme. É uma espécie de barco à vela. Ela vai pra onde sopra o vento. E não adianta querer seguir numa direção, se o vento sopra em outra.

Essa "tese" foi o resultado de uma longa conversa com o Macarrão.
Eu já falei do Macarrão? Pois é. No dia desse papo, Macarrão estava um tanto quanto irritado. Fora jogar sinuca no Boteco do Libório, e lá resolvera citar Pascal. E conversa daqui, rola prali, Pascal pra frequentador de boteco e a capital do Curdistão, é aquela história: ninguèm sabe o que é e menos ainda onde fica.
O Macarrão, leitor assíduo de Blaise Pascal, irritou-se, e danou a falar da miserabilidade do ser humano, da sua efemeridade, do brevíssimo tempo de sua vida; e ainda por cima resolveu citar uma passagem do poeta Brecht, aquela do círculo de giz.

Disse Macarrão pra uma platéia absolutamente desinteressada, que eles eram como aquele peru do Brecht. A parte os malentendidos, que quase gerou porrada, sobrou um tempo pro Macarrão explicar.

O peru a que ele se referia, era aquele de uma peça de teatro do B. Brecht: o peru, no meio de um círculo de giz, não conseguia pular e evadir-se.
O velho Libório, já escaldado com porradaria, polícia e prejuízo, observava de longe.

Mas aquela de círculo de giz, peru, prisão, e a burrice do peru, prendeu a atenção dos bebuns. E Macarrão explicou a simbologia do círculo. Não representava ele nenhum impedimento para que o peru se evadisse na direção que quisesse. O problema era o peru entender que bastava passar por cima do risco de giz.

Assim era o problema da mediocridade. Como um círculo de giz, aprisiona muita gente incapaz de entender que basta um passo para passar para o outro lado. Silêncio total. Macarrão observando a cara do pessoal, sem reação e sem entendimento do que fora dito. Continuavam presos no círculo de giz.
"Mas é essa a tua irritação, Macarrão?" - perguntei. E ele sério, entornando guela abaixo o último gole, disse: veja se você pula o círculo de giz!

Lili se acomodou melhor na cadeira. Suspiro fundo. Olhou pro pessoal com carinho.

- Fiquei triste vendo esse papo. Tenho estado dentro de um círculo de giz ha muito tempo.
Acho que vou tomar uma cachaça para pensar a respeito.

Macarrão, um sentimental que oculta o coração, porque pensa que homem não pode ter essas fraquezas, brincou:

- Toma duas logo duma vez, sô! Uma por mim... Pensando melhor, toma três: duas por mim!

Lili sorriu. Vou tentar uma variante desse peru idiota.
Uma variante do circulo de giz: água quente.
Vários estudos sobre comportamento animal demonstram que um sapo colocado num recipiente com a mesma água de sua lagoa, fica estático durante todo o tempo em que aquecemos a água, mesmo que ela ferva. O sapo não reage ao gradual aumento de temperatura (mudanças de ambiente) e morre quando a água ferve. Inchado e feliz.

Por outro lado, outro sapo que seja jogado nesse recipiente com a água já fervendo salta imediatamente para fora. Meio chamuscado, porém vivo.

As vezes, somos sapos fervidos. Não percebemos as mudanças. Achamos que está tudo muito bom, ou que o que está mal vai passar - é só questão de tempo. Estamos prestes a morrer, mas ficamos boiando, estáveis e apáticos, na água que se aquece a cada minuto. Acabamos morrendo inchadinhos e felizes, sem termos percebido as mudanças a nossa volta.

Bochecha deu um gole na cerva, e disse:

- Sapos fervidos não percebem que além de ser eficientes, têm que fazer as coisas. E, para que isso aconteça, há necessidade de um continuo crescimento, com espaço para o diálogo, para a comunicação clara, para dividir e planejar, para uma relação adulta.O desafio ainda maior está na humildade em atuar respeitando o pensamento do próximo.

Lili cortou o incompreensível discurso do Bochecha:

Há sapos fervidos que acreditam que o fundamental é a obediência, e não a competência: manda quem pode, e obedece quem tem juízo.
E, nisso tudo, onde está a vida de verdade? É melhor sair meio chamuscado de uma situação, mas vivos e prontos para agir.

Olhei pra Lili, servi seu copo com mais cerveja, acrescentando:

- Sabe Lili, acho que ocê num seguiu o meu conselho e tomou pra lá de uma... Inclusive tomou as minhas. Santa Brígida! Que sermão! Mas ocê me perdoa as ponderações abaixo? Eu perdoei ocê, por causa daquela poesia chinfrim (parece até auto-ajuda!). Aliás quem devia me perdoar era ocê. Mas eu vou saber quem é o anònimo daquela merda...

Isso de morrer inchado e feliz só porque foi fervido no seu habitat, ficou estranho pra caraca! Veja ocê: o 'sapo barbudo' ficou inchado e feliz, na fervura do Planalto, mas não morreu... Continua aí, pulando, vivim... vivim, por cima de tudo!
Tá certo que mudou o seu habitat, passou a tomar champanhe sem abandonar a pinga, jogar futebol na Granja do Torto (Quem seria o Torto?), mudou o seu habitat da fábrica para o palácio... mas até aí morreu o Neves afogado em cuspe!

Agora, se ferver antes o habitat do sapo e jogar o safado lá, quando estiver borbulhando, tu vai ver só o salto que o danado vai dar!!! Pode inté sair com o rabo chamuscado, mas eu garanto que morrer inchado e feliz... nunquinhas! Mas cientista é assim mesmo... Depois que o sapo pular, eles vêm com outra teoria...

Macarrão atalhou, enfático:
- E sapo inchadinho e feliz morrendo numa boa, só se for sapo rico, com a barriga cheia de insetos saborosos. Sapo pobre (e quase que eu digo sapupara!), tá sempre pulando pra num morrer de fome ou deixar a cobra morrer. E não precisa nem ferver a água. Só de riscar o fósforo ele já espanta carreira!

Tomei a palavra do Macarrão, e continuei:
- Minha amiga Lili, não se pode levar a vida muito a sério. Meu amigo Voltaire, ensinou-me muito cedo a rir das tolices humanas. Flaubert também não deixou barato, para não falar de Anatole France.
Fiquei tão ressabiado, que adotei alguns lemas, sem esnobismo. Nada de lema em francês, alemão, inglês que ninguém entende, mas acha inteligente pacas!

1. Tudo na vida é passageiro, menos motorista e trocador. (Anônimo)
2. Tudo passa, até uva passa. (Anônimo)
3. Formei-me em Letras, e na bebida busco esquecer (L.F.Veríssimo)

Juro que nunca mais eu falo em círculo de giz com ocê. Quem vai tomar umas agora sou eu. Santa Brígida

M. AMERICO

TENHO SAUDADES DE MIM

Estava a ler o texto de Adauto Novaes (nosso filósofo sem torre de marfim) sobre a preguiça - tema de seu seminário/livro atual. Na realidade, são estudos sobre a lentidão, neste mundo cada vez mais veloz. E,

aí, tive saudades da calma, do princípio, meio e fim, tive saudade das "geladeiras brancas e dos telefones pretos", das manhãs, tardes e noites, separadas pela luz que se coloria do rosa ao negro e se apagava aos poucos, tive saudade das mortiças casas de família, até da infelicidade de antigamente - de novela de rádio -, de lágrimas furtivas, dos casais com olhos sem luz, depois de casamentos esperançosos com buquês arrojados para um futuro que ia morrendo aos poucos.

Estou com saudades de tudo. De mim, inclusive. "Saudades" ou "saudade"? Tenho saudade (s) de meu velho professor de português, magrinho, irritadiço e doce, Luis Vianna Filho, que me bradava:
"O senhor não tem acento circunflexo!", apontando meu nome que meu avô árabe registrara "Jabôr". E continuava:
"Jabor é o certo. A única palavra dissílaba da língua terminada em "or" que tem circunflexo é "redôr", para diferenciar de "redor, em volta de", pois redôr é o pobre-diabo que fica puxando o sal nas salinas, com um rodo".

Lembrei-me dos miseráveis "redôres" de Cabo Frio, lembrei de minha juventude quando achei, por acaso, uma velha fotografia de jornal, em preto e branco, da passeata dos Cem Mil em 1968 na Cinelândia.
No meio da multidão da foto, vi emocionado um pequeno rosto granulado - eu mesmo, ali, sentado no chão, ouvindo os discursos de Vladimir Palmeira e (talvez) de Dirceu -, bonito, cabelo longo, hippie guerreiro.

Tive uma nostalgia do passado até com a recente "reprise" de José Dirceu na mídia como poderoso chefão dos soviéticos que, aliás, aproveitaram os últimos escândalos para reciclar o lixo bolchevista de "controlar a Imprensa". (Eles não desistem).

Fiquei nostálgico porque Dirceu era também uma sobrevivência do passado em minha vida. E tive uma bruta saudade da utopia. Sempre critiquei o Dirceu porque ele, do passado em preto e branco, tinha querido invadir o presente com uma subversão regressista, que poderia nos jogar de volta a um tempo morto.

Muito mais do que os milhões desviados do "mensalão", critiquei-o ideologicamente, porque ele liderava uma tendência, viva ainda hoje, de se "tomar o Estado", "desapropriando" o dinheiro público pelo "bem do povo". Dirceu caiu por uma tentativa que mais uma vez falhou, em nossa esquerda de trapalhões, como foi em 63 ou em 68, no Congresso de Ibiúna.

Mas, mesmo assim, fiquei com saudade de mim mesmo. Tenho saudade de mim ali, com o rosto cheio de esperança na passeata, achando que mudava a história e que o mundo era fácil de mexer.

Como eu gostaria de explicar aos jovens de hoje o que era a infalível "certeza" daquela época remota, o que era a delícia de viver sentindo-se no "bom caminho", na "linha justa", salvando o futuro. Hoje, ninguém sabe o que era o sentimento de harmonia, de totalidade, em um mundo fragmentado e frio.

Hoje, os meninos vivem em galáxias de informações, quando não há mais lugar para "A Verdade". Os jovens que nascem no grande deserto virtual não sabem que vivíamos num rio que corria para o futuro, em direção a uma felicidade completa, com lógica, com Sentido. Tenho saudade do futuro que hoje se espraia como uma grande enchente suja, sem foz, um deserto sem ponto final. Hoje sabemos que não há mais futuro nem chegada - só caminho.

Tenho saudade do amor da juventude, da minha namorada comunista - nós dois no sofá-cama do "aparelho" clandestino do PCB em Copacabana, o sofá-cama rasgado, com a mola aparecendo, onde nos amávamos antes da reunião da "base" com medo que chegasse o supervisor, um "camarada" com um doce nariz de couve-flor rosado e tristes sapatos pretos com meias brancas, que nos falava, melancólico, do imperialismo norte-americano. Tenho saudades dela, linda, corajosa, no apartamentinho com o cartaz dos girassóis do Van Gogh e uns livros da Academia Soviética, numa prateleira sobre dois tijolos.

Para nós, comunas, até a morte era pequena, como nos ensinava o camarada de nariz rosado:
"O marxismo supera a morte, pois uma vez dissolvido no social, o indivíduo perde a ilusão de existir como pessoa. Ele só existe como espécie. E não morre!" E eu, marxista feliz, sonhava com a vida eterna...

Tenho saudade das madrugadas cheias de esperança, as madrugadas políticas, a boemia de esquerda, soldados de uma guerra imaginária. Meu Deus, como eu era importante, como me senti útil quando ajudei um pouco a luta armada, quando levei no meu fusca um casal de feridos sangrando no banco de trás, até um "aparelho", quando o líder da célula pegou o volante e eu fui ao lado, de olhos fechados para não saber onde estávamos - se bem que espreitei pela fresta das pálpebras e vi o casal mancando em direção a um prédio.

Tenho saudades dessa trágica solidariedade, mas tremi nesse dia, pois comecei a entender que não havia apenas um deserto à nossa frente, mas uma avalanche de obstáculos imensos e que íamos acordar de um sonho para um pesadelo.
Entendi que éramos fracos demais para moldar a realidade e que a vontade não bastava, pois as coisas comandavam os homens e a vida tem um curso próprio e misterioso.
Entendi que ser político e lutar pelo futuro exige vagar e respeito pela insânia do mundo e que a tragédia é parte essencial da vida e que tentar saneá-la pode levar-nos a massacres piores.
Entendi que luta política se faz com humildade e que só a democracia é revolucionária no Brasil. Fora isso, é o desastre.

Mas, tenho saudade da mistura de poesia com revolução que era nossa vida, tenho saudade desse narcisismo onipotente e inocente, tenho saudade da esperança e da ilusão.

Arnaldo Jabor, O Estado de S. Paulo

REFLEXÕES DE UM DIVAGANTE


Pedi silêncio na mesa. A discussão girava em torno do Zédirceu e sua quadrilha. O papo era gigante e ruidoso. Macarrão, Bochecha, Suspiro... A turma bradava aos infernos...
Xibungo, o vira-lata de estimação da mesa, rondava a espera de uma sobra dos petiscos. Um linguicinha caia bem naquele momento. Com seus olhos pidões, amolengava os nossos corações.

Aproveitei a 'deixa' e mandei os versos:

A compreensão que você reivindica a cada passo...
Depende de você!

A bondade que você admira nas pessoas e sonha possuir...
Depende de você!

A abertura que é o caminho para a renovação...
Depende de você!

A realização que você julga essencial...
Depende de você!

O amor que você quer encontrar nos outros...
Depende de você!

A organização que você apregoa...
Depende de você!

Macarrão olha para mim, surpreso com a bonomia pouco habitual do discurso e pergunta:

- Você sonhou com os anjos? Me permita discordar dessas palavras cheias de encantamento, ainda que doa fazer isso com a poesia...
Bochecha atravessa a fala de Macarrão:
- Isso deve ser alguma paixão!

Macarrão continua, apesar do riso matreiro de Bochecha.
- Mas eu acho que tem coisa que depende dos outros. A gente não consegue ser bonito se ninguém acha que a gente é. Não dá para ser admirador de determinado autor se não há outra referência, algum tipo de concordância.

E vou mais longe! Acho que a gente pode até morrer se for rejeitado demais. Eu sei porque sou criador de mula-sem-cabeça, e o bicho está em extinção por causa de um tipo de rejeição moderna.
Os padres não gostam mais de mulheres. Agora só gostam de crianças, quer dizer, não nasce mais mula-sem-cabeça nessa terra. Mas isso é apenas um exemplo.
Tomou um golaço de cerva, pra aliviar a goela.
- Ser o patinho feio o tempo todo não é saudável. Não depende só da gente mudar isso.
O homem é um animal social, precisa da aprovação do outro para se sentir bem (pelo menos de alguns). Se um dia o bicho não vira cisne, e arranca olhares estupefatos de pelo menos parte da platéia, morre de desgosto. Já vi acontecer.

Olhei para o Macarrão e sem refletir sobre as suas palavras, defendi-me:

- Um homem não pode devanear? Um homem não tem o direito de vagar por outros páramos, sem que lhe caiam em cima de paulada? Sei do que você está falando, Macarrão. E você Bochecha fique sabendo que nem tudo nessa vida é paixão por mulher! De vez em quando, um homem fica com o saco cheio dessa realidade pequena, mesquinha, que nos achata, nos apequena. Um gole de poesia é tão confortador como um gole de cerveja... E o que devemos aos poetas, não tem paga nesse mundinho de Deus. São a luz do mundo. Como as crianças, cujos sorrisos são intraduzíveis e enchem o mundo de alegria.
Lancei um naco de linguiça pro xibungo, que pegou no ar.
Macarrão atalhou:
- Até pode ser. É apenas uma questão de espírito, de momento. Agora, por exemplo, eu prefiro uma cerva gelada à poesia domesticada que você decantou. E quer saber? Zédirceu no momento é muito mais importante! Poesia não vai devolver a vida pública o que os ladrões estão tirando...
Cortei:
- Não. Não quero saber. Viva a cerveja que nos afaga o sentido. E a poesia! E o Zédirceu... Cadeia nele!

M. AMERICO

QUAL A IMPORTÂNCIA DO ACASO EM NOSSAS VIDAS?

Já estávamos, eu, Macarrão e Bochecha na bodega do Libório, e lá pelas tantas, não me recordo bem qual foi o incidente que nos conduziu a discutir sobre o 'aleatório' em nossas vidas.

Ah! sim, eu havia narrado uma pequena historinha sobre um cidadão que ganhou um grande prêmio, numa dessas loterias da vida. Perguntado numa entrevista - sim! porque ganhar uma grana preta da noite pro dia, pode fazer e com certeza fará, que você seja uma celebridade! - se ele tinha algum método ou usado algum recurso matemático para ganhar a 'bolada'.
E ele respoondeu: "Ah! eu usei um método matemático, com certeza! Vejam vocês... Sonhei com o número 7 durante 7 noites seguidas. Aí eu pensei: bem... 7 vezes 7 é 48. Não tive dúvidas... Mandei ver no número 48!"

Realmente ele usou um método matemático... Se ele tivesse estudado um pouquinho mais, com certeza não se tornaria uma celebridade! Ele teria jogado no 49!
Isso é ou não é um fator absolutamnte aleatório? - perguntei pros meus amigos.
Concordamos. Pedimos outra gelada e continuamos nosso papo, garganta lubrificada e feliz.

A aleatoriedade marca a vida de uma maneira mais assustadora do que pode sonhar a nossa rica imaginação.

Leio em L.Mlodinow que o fato de lançarmos uma moeda diversas vezes para o alto e o resultado der cara seguidamente, não significa que a moeda tenha duas caras...

No ano de 1950 um certo livro foi rejeitado por vários editores, que o classificaram como maçante e desinteressante para o momento. A história da 2ªguerra já era passado... e o livro não teria a menor chance.
O livro era nada mais nada menos que "O diário de Anne Frank", que vendeu 30 milhões de cópias, uma das obras mais vendidas da história.

Estávamos os três convictos de que as nossas vidas são determinadas por fatores absolutamente estranhos a nossa vontade, por mais que julguemos que a decisão esteja em nossas mãos.

Macarrão ponderou: será que estamos condenados a um lance de moeda? Se der 'cara' ganhei... 'coroa' perdi?

Bochecha deu um gole e arremessou a moeda para o alto. Na palma da mão: Coroa! Perdemos...

Dizem que o aleatóro traz o cais e o caos. E mais,dizem que o que ele dá, nada tira.

Pondero:
Segundo a análise combinatória, se for uma moeda perfeitamente fabricada e os dois lados tiverem peso e tamanho iguais, cada qual tem uma porcentagem igual de chance de cair.

Então acho que a vida não é uma moeda com proporções perfeitas.
Cara ou Coroa?

Nem uma flor com pétalas contáveis, pra adivinhar o que dirá a ultima pétala a cair no chão.
Bem-me-quer? Mal-me-quer?

Talvez, eu só tenha bebido demais.
Acho que minhas palavras estão saindo gaguejadas e as que ouvi vão flutando surreais.

Lili, recém-chegada, entra no papo:
Esse negócio de acaso é um pouco doloroso. Sempre penso, e se naquele dia, em que eu estava no aeroporto, pronto para voltar para casa, tivesse acontecido um tufão, o espaço aéreo fechado, e eu não pudesse nunca mais voltar para cá?

... E se não estivesse naquela hora, naquele lugar, em que aconteceu aquela incidente que mudou totalmente a minha vida?

Ah, é muito assustador pensar nisso. E tem a inutilidade da coisa também, porque a gente não pode voltar e fazer diferente. Tem que conviver com a dor das escolhas, a dor do acaso. Talvez o antídoto seja mesmo a determinação:

Nada menos que cinco editoras recusaram os manuscritos do Harry Potter antes que fosse publicado; os Beatles foram recusados em várias gravadoras, e até mesmo Beethoven foi considerado um fracassado sem talento por algum tempo.

Bochecha pondera:

Esses não aceitaram a, digamos, inexorabilidade da coisa. Eu também não aceito.

Macarrão da um gole, olha à roda da mesa, e diz:
A infindável lista dos que foram vencidos, pelo aleatório.
John Kennedy Toole, perdeu a esperança de algum dia ter seu romance publicado e suicidou-se. Sua mãe perseverou. Onze anos depois, UMA CONFRARIA DE TOLOS foi publicado. Ganhou o Prêmio Pulitzer de ficção e vendeu dois milhões de cópias.

Um livro, uma pauta, um biscoito, um sanduíche, navegam no mar da aleatoriedade. O hamburguer do McDonalds vira franquia mundial: pão, carne moida... A coca-cola de xarope... bem você já sabe!

Olhei para o Macarrão, e alimentei suas palavras:

Quando entro num sebo, a procura de algum livro, já desaparecido das livrarias faz tempo, deparo-me com os 'fracassados'. Nomes absolutamente anônimos, que crítico algum, sequer ocupou uma linha no seu editorial para dizer: "o fulano publicou o livro tal... Interessante!" Nada, nem uma linha.
Entristece-me ver o fracasso, não por qualidade, mas por casualidade. Folheio vários, compro alguns... E os que nem o sebo alcançaram?

Dou um gole na cerva gelada. Alívio! Navegar no mar do aleatório, não se escapa do enjôo mareado...

Outro dia deu no jornal da TV: "menina na varanda, morre com bala 'perdida' na cabeça. No lugar errado, na hora errada... E PUFF! Uma vida na flor dos sonhos, desaparece... E ainda falam 'bala perdida'...

Macarrão tem os olhos espetados no espaço, no nada.

Aí, fica inevitável a gente pensar no aleatório que comanda a vida.
No entanto, continuamos a caminhada, porque a vida nos empurra para a frente. Não há como ficar parado... Lutamos muitas vezes por alguma coisa, e não a alcançamos. Lamentamos. Mas eu pergunto: e que certeza teríamos, de que a nossa vida poderia ter sido melhor? Decisão? Mas o que é a decisão? Um ato consciente? Mistérios... Como dizia o poeta inglês: "há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia."

Alimento os comentários:
Herman Hesse jamais acreditou no acaso, e Voltaire também não, e explica: "O acaso não existe; o que nós chamamos de acaso, é o efeito de uma causa que não conhecemos." O criador da doutrina espírita, Allan Kardec gostava de dizer que tudo que acontece faz parte de um grande plano espiritual, já programado.

Talvez seja confortador pensar assim, principalmente nos momentos em que nos acontecem coisas muito ruins. Ajuda a sobreviver. Acho.

Macarrão gira o copo de cerveja e profere solenemente:
Enfim, a vida é uma criança que é preciso embalar até que adormeça, e nada como a filosofia para isso.

Mas o acaso, disse o velho Machado de Assis, é um deus e um diabo ao mesmo tempo. . . Enfim, cousas!

Ao leitor, informo que conversa de boteco, enquanto houver cerveja na mesa diria que é quase infinita, não chegando a tanto porque a língua enrola e a mente se turva...
Palavra de homem...

M. AMERICO

PATOS SELVAGENS

A minha amiga Lili contou uma historinha sobre os sapos. Sapos fervidos, sacou? Não? Quando joga o pilantra na água fervendo, se ela não for a água do seu habitat, o safado, mesmo com o rabo chamuscado, salta longe... Mas se a água for a do ambiente dele, onde ele fica só pescando insetos, e se ela for aquecida gradualmente com o besta lá dentro, ele vai ficando numa boa, imaginando até que tá fazendo uma saunazinha e assim, acaba cozinhadozinho sem nem saber o que aconteceu... Palavra de cientista! E não duvidem da minha amiga!

MORAL DA HISTÓRIA


A gente fica tão acomodado no nosso lugarzinho, tá tão bom, já que não precisamos fazer qualquer esforço para conquistar alguma coisa que justifique a nossa vida, que terminamos por morrer gordos e felizes, embora estúpidos e insensatos.

Mas eu vou contar outra historinha.
Essa é a do pato.
Era uma vez um bando de patos selvagens que voava nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos.
Tudo tão bonito! Mas era uma beleza que doía. O cansaço do bater das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando e as espingardas dos caçadores...

Foi então que um dos patos selvagens, olhando lá das alturas para a terra aqui embaixo viu um bando de patos domésticos. Eram muitos. Estavam tranqüilamente deitados à sombra de uma árvore. Não precisavam voar. Não havia caçadores. Não precisavam buscar o que comer: o seu dono lhes dava milho diariamente.

E o pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, baixou seu vôo e passou a viver a vida mansa que pedira a Deus. E assim viveu por muitos anos. Até que...

Até que, num ano como os outros chegou de novo o tempo da migração dos patos. Eles passavam nas alturas, no fundo do azul do céu, grasnando, um grupo após o outro.

Aquelas visões dos patos em vôo, as memórias de alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado, o lugar chamado saudade. Uma nostalgia pela vida selvagem, pelas belezas que só se vêem nas alturas, pelo fascínio do perigo...

Até que não foi mais possível agüentar a saudade. Resolveu voltar a ser o pato selvagem que fora. Abriu suas asas, bateu-as para voar, como outrora... mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, gordo de barriga cheia, protegido pelas cercas e triste por não poder voar...
(Rubem Alves)

Essa historinha não tem aquele negócio de MORAL DA HISTÓRIA. Não tem por duas razões:

1. o recheio moral é óbvio demais para ser explicado;

2. desnecessário acrescentar MORAL DA HISTÓRIA, numa história que não precisa de muletas. Ela por si é ululante. E até por que daria um trabalho danado ter que pedir autorização ao autor, que certamente não autorizaria...

Mas eu vou dizer por conta própria o seguinte: somente a transgressão das normas é capaz de inventar uma vida que vale a pena ser vivida. Foi por conta das transgressões que a vida, em muitos e magníficos momentos, conseguiu alcançar patamares realmente significativos.

M. AMERICO