terça-feira, 23 de junho de 2015

AS VISÕES VIOLENAS DE ZIZEK



Realidade é detalhe na obra cheia de som e fúria do filósofo pop star

Poucos pensadores ilustram melhor as contradições do capitalismo contemporâneo do que o filósofo e teórico cultural esloveno Slavoj Žižek. A crise econômica e financeira demonstrou a fragilidade do sistema de livre mercado, cujos defensores acreditavam ter triunfado na Guerra Fria. No entanto, não há sinal de nada parecido com o projeto socialista que foi visto por muitos no passado como o sucessor do capitalismo. A obra de Žižek, que reflete essa situação paradoxal de várias maneiras, fez dele um dos intelectuais públicos mais conhecidos no mundo.
Nascido e educado em Liubliana, capital da República Popular da Eslovênia – parte da antiga federação iugoslava até que esta se desfez e a Eslovênia declarou independência, em 1990 –, Žižek ocupou vários cargos acadêmicos na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, assim como em seu país. 
Sua produção é prodigiosa, com mais de sessenta obras desde a publicação em 1989 de seu primeiro livro em inglês, Eles Não Sabem o que Fazem: o Sublime Objeto da Ideologia [lançado no Brasil pela editora Zahar e esgotado]. Os livros, somados aos incontáveis artigos e entrevistas, além de filmes como Žižek!(2005) e The Pervert’s Guide to Cinema (2006), lhe deram uma projeção que vai muito além da academia. Sintonizado com a cultura popular, em especial com o cinema, ele tem entre seus fãs jovens de muitos países, inclusive na Europa pós-comunista. Tem também uma publicação dedicada à sua obra – o International Journal of  Žižek Studies, fundado em 2007, cujos leitores se registram via Facebook. Em outubro de 2011, fez um pronunciamento aos integrantes do movimento Occupy Wall Street, no Zuccotti Park, em Nova York, que foi amplamente divulgado e pode ser visto no YouTube.
A enorme influência de Žižek não significa que seu ponto de vista filosófico e político possa ser facilmente definido. Membro do Partido Comunista da Eslovênia até 1988, Žižek teve relações difíceis com as autoridades partidárias durante anos, em decorrência de seu interesse por ideias consideradas heterodoxas. Em 1990, candidatou-se à Presidência pelo Partido Liberal Democrata da Eslovênia, legenda de centro-esquerda que foi a principal força política do país na última década do século passado. Mas as ideias liberais, exceto por servirem como ponto de referência para posições que ele rejeita, nunca moldaram o seu pensamento.

ižek foi demitido do seu primeiro emprego como professor universitário no início dos anos 70. Autoridades eslovenas julgaram que a tese escrita por ele sobre o estruturalismo francês – na época um movimento influente na antropologia, linguística, psicanálise e filosofia – era “não marxista”. O episódio demonstrou como era limitada a liberalização intelectual promovida no país na época, mas os trabalhos posteriores de Žižek sugerem que as autoridades tinham razão ao julgar que sua orientação não era marxista.
Na vasta obra que ele construiu desde então, Marx é criticado por ser insuficientemente radical na rejeição dos modos existentes de pensamento, enquanto Hegel – uma influência muito maior sobre Žižek – é louvado por sua disposição para deixar de lado a lógica clássica a fim de desenvolver uma maneira de pensar mais dialética. Mas Hegel também é criticado por ter apego demasiado aos modos tradicionais de raciocínio. Um tema central dos escritos de Žižek é a necessidade de descartar o compromisso com a objetividade intelectual que orientou pensadores radicais no passado.
A obra de Žižek se coloca em oposição a Marx em muitos pontos. Apesar de tudo o que devia à metafísica hegeliana, Marx também foi um pensador empírico, que procurou elaborar teorias que dessem conta do curso real dos acontecimentos históricos. Sua preocupação central não era a ideia abstrata da revolução, mas sim um projeto revolucionário envolvendo alterações concretas e radicais nas instituições econômicas e nas relações de poder.
Žižek mostra pouco interesse por esses aspectos do pensamento de Marx. Visando “repetir a ‘crítica marxista da economia política’ sem a noção utópico-ideológica do comunismo como seu quadro de referência obrigatório”, ele acredita que “o projeto comunista do século XX era utópico precisamente na medida em que não era suficientemente radical”. Segundo Žižek, a maneira como Marx compreendia o comunismo foi parcialmente responsável por esse fracasso: “A noção de Marx da sociedade comunista é, em si, uma fantasia do próprio capitalismo, isto é, uma projeção fantasmática[1] para resolver as contradições capitalistas que ele descreveu tão bem.”
Embora rejeite a concepção de Marx do comunismo, Žižek não dedica nenhuma única página das mais de mil de seu livro Less Than Nothing: Hegel and the Shadow of Dialectial Materalism [Menos que Nada: Hegel e a Sombra do Materialismo Dialético, que deverá ser publicado no Brasil no próximo ano] para especificar qual sistema econômico ou quais instituições de governo deveriam figurar numa sociedade comunista do tipo que ele defende. Em vez disso,Less Than Nothing, na verdade um compêndio da obra de Žižek até agora, se dedica a reinterpretar Marx por meio de Hegel – uma das partes do livro se chama “Marx como leitor de Hegel, Hegel como leitor de Marx” – e a reformular a filosofia hegeliana fazendo referência ao pensamento do psicanalista francês Jacques Lacan.

acan, um “pós-estruturalista” que rejeitou a noção de que a realidade pode ser capturada pela linguagem, também rejeitou a interpretação mais aceita da ideia hegeliana da “astúcia da razão”, segundo a qual a história mundial é a concretização, por meios oblíquos e indiretos, da razão humana. Para Lacan, tal como Žižek o resume: A Astúcia da Razão [...] não implica, de modo algum, a fé numa mão invisível que, de alguma forma, conduziria todas as contingências aparentemente irracionais à harmonia da Totalidade da Razão: de fato, a Astúcia da Razão implica confiar na irracionalidade. Nessa leitura lacaniana, a mensagem da filosofia de Hegel não é o desdobramento progressivo da racionalidade na história, mas sim a impotência da razão.
Assim, o Hegel que surge nos escritos de Žižek tem pouca semelhança com o filósofo idealista que figura nas histórias convencionais do pensamento. Hegel é comumente associado à noção de que a história tem uma lógica intrínseca, na qual as ideias são concretizadas na prática e depois deixadas para trás, em um processo dialético no qual são superadas por outras ideias que representam o seu oposto. Inspirando-se no filósofo francês contemporâneo Alain Badiou, Žižek radicaliza a noção da dialética, propondo que ela signifique a rejeição do princípio lógico da não contradição, segundo o qual uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo.
Desse modo, em vez de enxergar a racionalidade em ação na história, Hegel rejeita a própria razão, tal como ela foi entendida no passado. Segundo Žižek, está implícito em Hegel um novo tipo de “lógica paraconsistente”, na qual uma proposição “não é realmente suprimida pela sua negação”. Essa nova lógica, sugere Žižek, é bem adequada para se compreender o capitalismo hoje. “Pois não é o capitalismo ‘pós-moderno’ um sistema cada vez mais paraconsistente”, pergunta ele retoricamente, “no qual, de várias maneiras, P é não P: a ordem é a sua própria transgressão, de tal forma que o capitalismo pode prosperar sob um governo comunista, e assim por diante?”
Vivendo no Fim dos Tempos [recém-lançado no Brasil pela Boitempo Editorial] é apresentado por Žižek como uma obra preocupada com essa situação. Resumindo o tema central do livro, ele escreve:
O ponto de partida do presente livro é simples: o sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero apocalíptico. Seus “quatro cavaleiros do Apocalipse” são a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matéria-prima, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais.
Com suas generalizações e sua grandiloquência retórica, a passagem é típica do trabalho de Žižek. O que ele chama de premissa do livro é simples só porque passa por cima de fatos históricos. Ao lê-la, ninguém iria suspeitar que, além da matança de milhões por motivos ideológicos, alguns dos piores desastres ecológicos do século passado – tais como a destruição da natureza na antiga União Soviética ou a devastação do campo durante a Revolução Cultural de Mao – ocorreram em economias planificadas. A devastação ecológica não resulta apenas do sistema econômico vigente hoje em grande parte do mundo. Embora possa ser verdade que a versão predominante do capitalismo é insustentável em termos ambientais, nada na história do século passado sugere que o meio ambiente estará mais protegido se for implantado um sistema socialista.
Mas criticar Žižek por ignorar esses fatos é não compreender sua intenção. Ao contrário de Marx, ele não pretende fundamentar suas teorias em uma leitura da história baseada em fatos. “A conjuntura histórica atual não nos obriga a abandonar a noção de proletariado, ou da posição proletária – ao contrário, ela nos obriga a radicalizá-la até um nível existencial, para além até mesmo da imaginação de Marx”, escreve ele. “Precisamos de uma noção mais radical do sujeito proletário [ou seja, o ser humano que pensa e age], um sujeito reduzido ao ponto evanescente do ‘Penso, logo existo’ cartesiano, esvaziado do seu conteúdo substancial.” Nas mãos de Žižek, as ideias marxistas – as quais, na visão materialista de Marx, se destinavam a designar fatos sociais objetivos – se tornam expressões subjetivas de compromisso revolucionário. Saber se essas ideias correspondem a alguma coisa que existe no mundo é irrelevante.
Há um problema neste ponto: por que alguém haveria de adotar as ideias de Žižek, e não quaisquer outras? A resposta não pode ser “porque as ideias do filósofo são verdadeiras”, em qualquer sentido tradicional da palavra. “A verdade de que estamos tratando aqui não é a verdade ‘objetiva’”, escreve Žižek, “mas sim a verdade autorreferente a partir da posição subjetiva de alguém; como tal, é uma verdade engajada, medida não pela sua precisão factual, mas sim pela forma como ela afeta a posição subjetiva da enunciação.”
Se isso significar alguma coisa, quer dizer que a verdade é determinada pela forma como se encaixa nos projetos com que o orador está comprometido – no caso de Žižek, o projeto da revolução. Mas isso só nos leva a colocar o problema em outro nível: por que alguém deveria adotar o projeto de Žižek? A pergunta não pode ter uma resposta simples, uma vez que está longe de ser claro no que consiste o seu projeto revolucionário.
Ele não dá sinais de duvidar que uma sociedade em que o comunismo fosse posto em prática seria melhor do que qualquer outra que já existiu. Por outro lado, ele é incapaz de imaginar quaisquer circunstâncias em que o comunismo pudesse ser concretizado: “O capitalismo não é apenas uma época histórica entre outras. [...] Francis Fukuyama tinha razão: o capitalismo global é o fim da história.” O comunismo não é para Žižek – como era para Marx – uma condição realizável, mas sim o que o filósofo Alain Badiou descreve como uma “hipótese”, um conceito com pouco conteúdo, mas que permite a resistência radical contra as instituições vigentes. Žižek insiste que essa resistência deve incluir o uso do terror:
A ideia provocante de Badiou de que se deve reinventar hoje o terror emancipatório é um dos seusinsightsmais profundos. [...] Lembrem-se da defesa exaltada do Terror na Revolução Francesa feita por Badiou, na qual ele cita a justificativa da guilhotina para Lavoisier: “A República não precisa de cientistas.”
Junto com Badiou, Žižek celebra a Revolução Cultural de Mao como “a última grande explosão realmente revolucionária do século xx”. Mas ele também a considera um fracasso, citando a conclusão de Badiou de que “a Revolução Cultural comprova, em seu próprio impasse, a impossibilidade de libertar, verdadeira e globalmente, a política do arcabouço do Estado de partido único”. Mao, ao incentivar a Revolução Cultural, evidentemente deveria ter encontrado uma maneira de quebrar o poder do partido-Estado. Mais uma vez, Žižek elogia o Khmer Vermelho por ter tentado romper totalmente com o passado. Essa tentativa incluiu matanças em massa e tortura numa escala colossal. Mas, na visão de Žižek, não é por isso que fracassou: “De certa forma, o Khmer Vermelho não foi suficientemente radical: embora levasse a negação abstrata do passado até o limite, não inventou qualquer forma nova de coletividade.” Uma verdadeira revolução pode ser impossível nas atuais circunstâncias, ou em quaisquer outras que possam ser imaginadas atualmente. Mesmo assim, a violência revolucionária deve ser comemorada como “redentora”, até mesmo “divina”.
Embora Žižek se defina como leninista, não há dúvida de que essa posição seria um anátema para o líder bolchevique. Lênin não tinha escrúpulos em usar o terror para promover a causa do comunismo (para ele, um objetivo plenamente alcançável). Sempre utilizada como parte de uma estratégia política, a violência era de natureza instrumental. Em contraste, embora Žižek aceite que a violência não conseguiu atingir os objetivos comunistas e que não há perspectiva de que venha a fazê-lo, ele insiste em que a violência revolucionária tem um valor intrínseco como uma expressão simbólica de rebelião – uma posição que não tem paralelos em Marx ou Lênin. Pode-se encontrar um precedente no trabalho do psiquiatra francês Frantz Fanon, que defendia o uso da violência contra o colonialismo como uma afirmação da identidade das populações submetidas ao poder colonial; mas Fanon via essa violência como parte de uma luta pela independência nacional, um objetivo que foi, de fato, alcançado.
Um precedente mais claro pode ser encontrado na obra de Georges Sorel, teó-rico francês do sindicalismo do início do século XX. Sorel argumentou que o comunismo era um mito utópico – mas um mito que tinha valor, ao inspirar uma revolta moral regeneradora contra a corrupção da sociedade burguesa. Os paralelos entre essa visão e a ideia de Žižek sobre a “violência redentora” inspirada pela “hipótese comunista” são reveladores.

celebração da violência é uma das principais vertentes na obra de Žižek. Ele critica Marx por pensar que a violência pode ser justificada como parte do conflito entre classes sociais definidas objetivamente. A luta de classes não deve ser entendida como “um conflito entre agentes particulares dentro da realidade social: não é uma diferença entre agentes (que pode ser descrita por meio de uma análise social detalhada), mas sim um antagonismo (‘luta’) que constitui esses agentes”. Aplicando essa visão ao discutir os massacres de Stálin ao campesinato, Žižek descreve como a distinção entre os kulaks (camponeses ricos) e os demais se tornou “turva e inviável: numa situação de pobreza generalizada, os critérios claros não se aplicam mais, e as outras duas classes de camponeses muitas vezes se uniam aos kulaks em sua resistência à coletivização forçada”. Em resposta a essa situação, as autoridades soviéticas introduziram uma nova categoria, o sub-kulak, o camponês pobre demais para ser classificado como kulak, mas que partilha os valores dos kulaks:
Assim, a arte de identificar um kulak deixou de ser uma questão de análise social objetiva; tornou-se uma espécie de complexa “hermenêutica da suspeita”, de identificar “as verdadeiras atitudes políticas” de um indivíduo escondidas debaixo das suas enganosas afirmações públicas.
Descrever o assassinato em massa dessa maneira, como um exercício de hermenêutica, é repugnante e grotesco; é também característico da obra de Žižek. Ele critica a política de coletivização de Stálin, mas não por conta dos milhões de vidas que foram violentamente interrompidas ou destruídas em seu curso. O que Žižek critica é o apego persistente de Stálin (mesmo que incoerente ou hipócrita) aos “termos marxistas ‘científicos’”. Confiar na “análise social objetiva” como orientação em situações revolucionárias é um erro: “Em algum ponto, o processo tem que ser interrompido com uma intervenção maciça e brutal de subjetividade: o pertencimento de classe nunca é um fato social puramente objetivo, mas também é sempre o resultado da luta e do envolvimento social.” O que Žižek condena em Stálin não é o uso implacável da tortura e do assassinato, mas sim o fato de ter tentado justificar o recurso sistemático à violência mediante referências à teoria marxista.

rejeição de Žižek a qualquer coisa que possa ser descrita como um fato social vem junto com a sua admiração pela violência na interpretação que faz do nazismo. Comentando o envolvimento muito discutido do filósofo alemão Martin Heidegger com o regime nazista, Žižek escreve: “Seu envolvimento com os nazistas não foi um simples erro, mas sim ‘um passo certo na direção errada’.” Contrariamente a muitas interpretações, Heidegger não era um reacionário radical. “Lendo Heidegger contra a corrente, descobre-se um pensador que era, em alguns pontos, estranhamente próximo ao comunismo” – de fato, em meados da década de 1930, Heidegger poderia ser considerado “um futuro comunista”.
Se Heidegger optou, equivocadamente, por apoiar Hitler, seu erro não foi subestimar a violência que Hitler iria desencadear:
O problema de Hitler era que ele “não foi suficientemente violento”, sua violência não foi suficientemente “essencial”. Hitler realmente não agia; todas as suas ações eram, fundamentalmente, reações, pois ele agia de modo que nada fosse mudar realmente, encenando um gigantesco espetáculo de pseudorrevolução para que a ordem capitalista sobrevivesse. [...] O verdadeiro problema do nazismo não é ter ido “longe demais” na sua arrogância subjetivista-niilista de exercer o poder total, mas sim não ter ido longe o suficiente; sua violência foi uma encenação impotente que, em última análise, continuou a serviço da própria ordem que o nazismo desprezava.
O que havia de errado com o nazismo, ao que parece, é que – tal como a experiência posterior na revolução total do Khmer Vermelho – ele não conseguiu criar qualquer novo tipo de vida coletiva. Žižek diz pouco sobre a natureza da forma de vida que poderia ter surgido caso a Alemanha tivesse sido governada por um regime menos reativo e impotente do que ele julga ter sido o de Hitler. Mas ele deixa claro que não haveria espaço nessa nova vida para uma determinada forma da identidade humana:
O status fantasmático do antissemitismo é claramente revelado por uma declaração atribuída a Hitler: “Temos que matar o judeu dentro de nós.” [...]Essa afirmação de Hitler diz mais do que ela quer dizer: contra as suas intenções, ela confirma que os gentios precisam da figura antissemita do “judeu” para sua identidade. A questão, portanto, não é apenas que “o judeu está dentro de nós” – o que Hitler esqueceu de acrescentar é que ele, o antissemita, também está no judeu. O que esse entrelaçamento paradoxal significa para o destino do antissemitismo?
Žižek é explícito ao censurar “certos elementos da esquerda radical” pelo “seu desconforto quando se trata de condenar o antissemitismo inequivocamente”. Mas é difícil entender a afirmação de que a identidade dos antissemitas e a dos judeus se reforçam mutuamente, de alguma forma – ideia que se repete, palavra por palavra, em Less than Nothing –, exceto como uma sugestão de que o único mundo em que o antissemitismo pode deixar de existir é um mundo em que não existam mais judeus.
Interpretar Žižek nesta questão ou em qualquer outra tem suas dificuldades. Primeiro existe a sua prolixidade excessiva, a torrente de textos que ninguém poderia ler na sua totalidade, mesmo porque ela nunca para de jorrar. Depois, há o uso de um tipo de jargão acadêmico com alusões a outros pensadores, o que lhe per-mite usar a linguagem de uma forma ardilosa, hermética.Como ele próprio reconhece, Žižek toma emprestado o termo “violência divina” de “Para uma crítica da violência”, ensaio de Walter Benjamin (1921). É duvidoso que Benjamin, um pensador com afinidades importantes com o marxismo humanista da Escola de Frankfurt, tivesse qualificado como “divino” o Khmer Vermelho ou o frenesi destrutivo da Revolução Cultural maoista.
Mas isso não vem ao caso, pois, ao utilizar a construção de Benjamin, Žižek consegue louvar a violência e, ao mesmo tempo, alegar que está falando da violência em um sentido especial, recôndito – um sentido em que se pode descrever Gandhi como mais violento do que Hitler.[2]
E há, ainda, o constante recurso de Žižek a um jogo de palavras laborioso e circense:
[...] virtualização do capitalismo é, em última análise, a mesma do elétron na física das partículas. A massa de cada partícula elementar é composta pela sua massa em repouso mais o excedente fornecido pela aceleração do seu movimento; no entanto, a massa de um elétron em repouso é zero, pois a sua massa consiste apenas no excedente gerado pela aceleração, como se estivéssemos lidando com um nada que adquire uma substância enganosa apenas por girar magicamente até tornar-se um excesso de si mesmo.

impossível ler o trecho acima sem lembrar o caso Sokal, em que Alan Sokal, um professor de física, apresentou um artigo-paródia – “Transgredindo as fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica” – a uma revista de estudos culturais pós-modernos. Também é difícil ler isso, e muitas passagens semelhantes de Žižek, sem desconfiar que ele esteja envolvido – seja intencionalmente ou não – em uma espécie de autoparódia.
Pode existir quem se sinta tentado a condenar Žižek como um filósofo do irracionalismo, cujo louvor à violência é uma reminiscência da extrema-direita, mais do que da esquerda radical. Seus escritos com frequência são ofensivos e, por vezes (como ao escrever que Hitler está presente “no judeu”), obscenos. Há uma frivolidade zombeteira nos louvores de Žižek ao terror que faz lembrar Gabriele D’Annunzio, futurista italiano e ultranacionalista, e seu companheiro de viagem, o fascista (e depois maoista) Curzio Malaparte, mais do que qualquer pensador na tradição marxista. Mas há outra leitura de Žižek, que pode ser mais plausível, em que ele não é um epígono da direita, assim como não é discípulo de Marx ou Lênin.
Seja ou não a visão marxista do comunismo “uma fantasia do próprio capitalismo”, o fato é que a visão de Žižek – que, além de rejeitar concepções anteriores, carece de qualquer conteúdo definido – é bem adaptada a uma economia baseada na produção contínua de novas experiências e novos produtos, cada um supostamente diferente de qualquer outro que já tenha existido antes. Com a ordem capitalista vigente consciente de que está em apuros, mas incapaz de conceber alternativas viáveis, o radicalismo sem forma de Žižek se adapta muito bem a uma cultura paralisada pelo espetáculo da sua própria fragilidade. Não surpreende que haja esse isomorfismo entre o pensamento de Žižek e o capitalismo contemporâneo. Afinal, apenas uma economia do tipo que existe hoje poderia produzir um pensador como Žižek. O papel de intelectual público mundial que Žižek desempenha surgiu juntamente com um aparato de mídia e uma cultura da celebridade que são parte integrante do atual modelo de expansão capitalista.
Em uma façanha estupenda de superprodução intelectual, Žižek criou uma crítica fantasmática da ordem atual, uma crítica que afirma repudiar praticamente tudo o que existe atualmente, e em certo sentido realmente o faz; mas que, ao mesmo tempo, reproduz o dinamismo compulsivo, sem propósito, que ele vê nas atividades do capitalismo. Ao alcançar um conteúdo enganoso com a reiteração interminável de uma visão essencialmente vazia, a obra de Žižek – que ilustra muito bem os princípios da lógica paraconsistente – consiste, no final, em menos que nada. J
23 de junho de 2015
JOHN GRAY

[1]Conceito psicanalítico, muito presente na obra do francês Jacques Lacan, que significa a leitura inconsciente da realidade, ou a fantasia (“fantasma”) que reveste a percepção da realidade.
[2]“É crucial enxergar a violência que é cometida repetidamente para manter as coisas como são. Nesse sentido, Gandhi foi mais violento do que Hitler.” Veja a entrevista de Shobhan Saxena com Žižek: First they called me a joker, now I am a dangerous thinker (“Primeiro me chamaram de piadista, agora sou um pensador perigoso”), em The Times of India,10 de janeiro de 2010.

A ÚLTIMA MODA DA VIDA ETERNA


O ponto de Nova York onde ficava a megastore da Virgin vira uma loja que embrulha roupa barata com o Evangelho

“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu Seu Filho único, para que todo aquele que n’Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” João, capítulo 3, versículo 16, Forever 21.

Forever 21 é uma das maiores redes de lojas de roupas e acessórios dos Estados Unidos. E “John 3:16”, referência à citação do evangelista, é uma das marcas registradas de suas sacolas de compras, por exigência de seu proprietário Do-Won Chang – ou Don Chang, em versão ocidentalizada –, que está a um passo de invadir a Times Square, em Nova York, com as palavras da Bíblia.

Cristão fervoroso, o coreano Chang emigrou para os Estados Unidos em 1981. Em três anos, abriu seu primeiro negócio no país, uma loja com pouco mais de 84 metros quadrados na Figueroa Street, em Los Angeles. Chamou-a Fashion 21. Com o tempo, o Fashion de moda jovem virouForever – para sempre –, como um para a eternidade aqui e agora.

A fé deve ter ajudado Chang, tanto que ele vendia bijuterias por menos de 5 dólares e vestidos de noite por menos de 50. Em um ano, suas vendas aumentaram em vinte vezes. Em 1989, ele tinha uma rede com dez filiais. E não parou mais de acelerar vertiginosamente.

A Forever 21 está plantada em cidades dos Estados Unidos, da Coréia, do Canadá, da China, da Indonésia, da Arábia Saudita, da Malásia, de Cingapura e dos Emirados Árabes, entre outros países e continentes anexados a seu império comercial. Mas é o seu próximo endereço que tem dado mesmo o que falar. Até meados do ano que vem, abrirá suas portas num dos melhores pontos de Nova York, a Times Square, na Broadway, entre as ruas 45 e 46 – onde, até dias atrás, funcionava a Virgin Megastore, loja de discos que já foi um grande símbolo mundano do sucesso temporal. Estima-se que, este ano, antes mesmo do outono americano, cinco outras megastores da Virgin sumirão dos Estados Unidos. A da Times Square acabou em março.

A troca da Virgin pela Forever 21 é mais um golpe na combalida indústria da música, e mais um sinal de que a indústria da moda, com crise ou sem crise, não pára de crescer. Como acontecia com a Virgin no começo da década, na época em que o filme Alta Fidelidade retratou o sufoco de Rob Gordon, um comerciante de bairro fictício mas verossímil, que só trabalhava com bolachas de vinil e ameaçava naufragar na onda dos CDs distribuídos por megastores.

Tudo nessa história parece que foi ontem. A primeira Virgin Megastore surgiu em Londres trinta anos atrás. Ficava na Oxford Street, esquina com a Tottenham Court Road. Seu fundador, Richard Branson, ainda longe de virar sir Richard Branson, partiu dessa base local para consolidar um conglomerado que se alastrou pelo ramo do turismo, dos jogos e das telecomunicações. Um de seus braços, a Virgin Galactic, aceita reservas para vôos interplanetários. Como a Forever 21, sua sucessora na Times Square, os negócios de Branson tiveram um começo modesto em 1971, no bairro londrino de Notting Hill Gate, com o nome de Virgin Records and Tapes.

Era um bom momento para abrir uma loja desse tipo na Inglaterra. Os Beatles haviam se dissolvido, mas John Lennon e Paul McCartney se lançavam em carreiras solo. Led Zeppelin, Rolling Stones, The Who e Pink Floyd se revezavam nas paradas de sucesso. Mas a Virgin Records and Tapes nasceu contra a corrente. Especializava-se em Krautrock, um tipo de rock experimental nascido na Alemanha nos anos 1960, que chegava à Inglaterra com certo atraso. De brinde, a loja ainda oferecia aos fregueses comida vegetariana.

Virgin queria dizer que Branson era novo na praça – ou virgem em matéria de comércio. Mas pegou. Em 1973, a Virgin Records lançava seu primeiro álbum, Tubular Bells, do inglês Mike Oldfield. E, como a Forever 21 faria mais tarde em seus calcanhares, suas lojas foram espalhando filiais pelo mundo, primeiro no Reino Unido, depois França, Austrália, Japão, Grécia, Alemanha, Canadá, Oriente Médio e Estados Unidos. Nos bons tempos do CD, teve 23 megastores, só nos Estados Unidos, que lucravam 280 milhões de dólares por ano, mesmo sustentando pelo menos doze lojas que funcionavam quase sempre no vermelho.

megastore da Times Square foi a coroa desse reino. Abriu em 1996, quando a empresa tinha quatro anos de experiência no mercado americano e o download de músicas na internet nem estava à vista para ameaçar a indústria fonográfica com o degredo na realidade virtual. O Napster, primeiro programa de compartilhamento de arquivos musicais, só daria o ar de sua graça em 1999.

A loja ocupava três andares e 5,5 mil metros quadrados de pavimentos. Além de CDs, DVDs e vinis, vendia agendas, pôsteres, camisetas de artistas, filmes, equipamentos de som, videogames, livros e, com valentia à altura do estilo empresarial de Branson, engenhocas para tocar MP3, o antídoto eletrônico contra o hábito de comprar discos para ouvir em casa. Havia, em suas instalações, 600 pontos de headphones para testar músicas e 100 telas de tevê para vídeos. “Era um ponto turístico, um lugar que você tinha que visitar se estivesse na cidade, mesmo que não fosse comprar um disco sequer”, relembra a cantora carioca Silvia Machete, que morou sete anos em Nova York.

A Virgin da Times Square vivia cheia. Nem sempre na fila do caixa, apesar dos espíritos entusiastas que a frequentavam. “Eu baixo toneladas de músicas para o meu laptop. E vou a lojas de discos toda semana, mesmo assim. A Virgin era um dos últimos lugares em que eu ainda podia aproveitar aquele pequeno prazer, e em alguns meses isso estará acabado”, lamentou o jornalista americano Simon Vozick-Levinson.

A megastore resistiu como pôde à cultura do download e às previsões de que o CD devia morrer de vez em cinco anos. Ultimamente, os aparelhos eletrônicos respondiam por um quarto de suas vendas no Natal, admitiu Simon Wright, o presidente da empresa. E o primeiro sinal de que a Virgin não ia bem dos alicerces veio em 2007, quando Branson vendeu suas lojas nos Estados Unidos para dois pesos pesados do mercado imobiliário, o Vornado Realty Trust e a Related Companies. Sob essa nova ótica, os 55 milhões que a megastore faturava por ano não se mostraram mais compensadores do que os 540 dólares que a Virgin pagava pelo aluguel do metro quadrado naquele endereço, com o ponto na Times Square valendo dez vezes mais. A loja fechou no mês passado, depois de uma liquidação em que os descontos chegaram a 70%. Será para sempre uma perda insubstituível para quem se acostumara a sair dali, nos grandes lançamentos, com álbuns autografados por Michael Jackson, Nine Inch Nails, Eminen, N’Sync e outros astros de carne e osso, coisa que ainda não se pode baixar pela internet.

Mas a Forever 21 promete, em contrapartida, uma loja ainda maior, de 8,3 mil metros quadrados, repleta de roupas a preços de CDs. E Chang já anunciou pelo jornal The New York Times que seus diretores mal podem esperar para “criar um novo ambiente na Times Square”, com o Evangelho de São João num lugar que já foi famoso pelos serviços prestados a todos os tipos de pecadores.

23 de junho de 2015
 Rafael Teixeira