quarta-feira, 24 de junho de 2015

ANTES DE COPULAR, ORAI!




Nunca é tarde demais para aprender como fazer as coisas com fé


O livrinho de 64 páginas chegou às livrarias da Inglaterra, oportunamente, antes do bimbalhar dos sinos natalinos. Ele também pode ser comprado através da Amazon.co.uk e nada impede que logo mais irrompa em versão Kindle. Contudo, aquele que a ele recorrer com a esperança de encontrar um bom manual de autoajuda dificilmente encontrará satisfação plena. O propósito do Prayer Book for Spouses (ou Livro de Orações para Casais), publicado pelo braço editorial da Santa Sé na Grã Bretanha, a Catholic Truth Society, é oferecer orações específicas a cada estágio da vida a dois - do noivado ao casamento, da gravidez aos cuidados com a prole - daqueles fiéis que decidiram ser fiéis até que a morte os separe.

As orações, que foram criadas por vários autores, vêm intercaladas de ensinamentos da fé católica sobre o significado do matrimônio. O manual é descrito como "companheiro espiritual essencial" para quem planeja constituir família. Suas preces e meditações estão divididas em sete capítulos e abordam sessenta tópicos. A publicação tinha tudo para ter sua repercussão restrita exclusivamente aos devotos - não fosse o inesperado tópico tratado na página dezenove. Seu título, "Prece antes de fazer amor", atraiu, inevitavelmente, a atenção também de leitores ímpios, hereges ou simples curiosos de todos os credos.

A ideia seria rezar com ou sem roupa? Ajoelhado, de pé ou já deitado? Cada um por si ou de mãos dadas? Em uníssono ou jogral? Enfim, todo um leque de possibilidades que se abria ao imaginário. Mas o texto, como era mais realista de se esperar de uma obra pia contemporânea, não contempla maiores aberturas. Destina-se, ao contrário, a purificar as intenções e delas erradicar qualquer conotação hedonista. Uma das preces é assim:

Pai Nosso, enviai o Espírito Santo a nossos corações. Contemplai-nos com um amor verdadeiramente generoso, uma ternura capaz de unir, uma auto-oferenda sem falsidade, uma união física acolhedora... Cubra nossa necessidade com a riqueza de Vossa misericórdia e perdão. Vista-nos com nossa verdadeira dignidade e receba nossas aspirações conjuntas para Vossa glória eterna, para sempre. Maria, mãe de todos, intercedei por nós. Amém.

Como ponderou a americana Frances Kissling, presidente do Católicas pelo Direito de Decidir desde sua fundação, em 1982, até dois anos atrás, seria injusto submeter orações ao crivo de uma crítica literária. Mesmo assim, ela considerou a prece pré-cópula "um amontoado de bobagens composto por uma sucessão de clichês", cuja finalidade parece ser a de "evitar o sexo a todo custo". Em se tratando de Kissling, veterana militante dos direitos da mulher católica, e agora docente no Centro de Bioética da Universidade da Pensilvânia, a reação não surpreende. Em momento algum os autores do livro pretenderam falar à parte do rebanho menos dogmática.

O Prayer Book for Spouses só faz nexo quando se leva em conta que, pela primeira vez desde a Reforma de 1534, a Igreja Católica Apostólica Romana está em fase de expansão galopante no Reino Unido. A ampliação de fiéis se deve à enxurrada de imigrantes legais e ilegais vindos de países católicos, sobretudo da Polônia.

Inversamente, a Igreja da Inglaterra e os anglicanos da Escócia, do País de Gales e da Irlanda passam por um lento mas consistente declínio. Segundo dados citados pelo jornal The Times, 95% dos imigrantes aportados em terras britânicas nos últimos anos são católicos tradicionalistas. Eles fazem da Igreja um elemento de identidade pessoal, uma referência cultural e, no caso da Polônia, o fator maior da identificação nacional. Em sua grande maioria, trata-se das ovelhas mais conservadoras do catolicismo, para quem a eterna súplica do perdão - mesmo numa prece pré-coito - pode ser bem-vinda.

O devoto que busca conforto num linguajar pulsante de alegria e prazer sempre poderá encontrar refúgio no bom e eterno Velho Testamento. Mais precisamente, no Livro de Cantares ou Cântico dos Cânticos, de Salomão, certamente a mais memorável prece amorosa de todos os tempos. Em seus oito capítulos e 117 versículos, o rei Salomão, filho de Davi, e sua amada Sulamita compõem um dueto de intimidades que qualquer cristão é capaz de entender. Uma pequena seleta, a título de lembrete:

Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho.

Os teus lábios são como um fio de escarlata, e o teu falar é doce.

O meu amado é meu, e eu sou dele...

Os teus dois peitos são como dois filhos gêmeos da gazela, que se apascentam entre os lírios.

Favos de mel manam dos teus lábios. Mel e leite estão debaixo da tua língua, e o cheiro das tuas vestes é como o cheiro do Líbano.

O meu amado meteu a sua mão pela fresta da porta, e o meu coração estremeceu por amor dele.

As voltas de tuas coxas são como joias, trabalhadas por mãos de artista.

O teu umbigo, como uma taça redonda, a que não falta bebida; o teu ventre, como monte de trigo, cercado de lírios.

Dois meses atrás, falando para uma delegação de bispos brasileiros em visita ao Vaticano, o papa Bento xvi lançou-se numa diatribe contra a televisão e o cinema. Segundo o pontífice alemão, os meios de comunicação de massa incentivam estilos de vida seculares, que minam a família e aumentam os índices de divórcio. "Filhos de um casamento desfeito são como órfãos, não por não terem pais, mas por terem um número excessivo de pais. A família deveria procurar viver como a Sagrada Família", resumiu o pontífice.

É dessa conjuntura que brota o atual manual de orações para cônjuges. Cinquenta anos atrás, quando Doris Day e Rock Hudson trocavam confidências à meia-noite na comédia romântica Confidências à Meia-Noite, uma prece antes de fazer amor talvez devesse ter sido encaixada.


24 de junho de 2015
Dorrit Harazim

A PIRÂMIDE DO MARCIANO...

ERA SÓ O QUE FALTAVA: ACHARAM UMA PIRÂMIDE EM MARTE



Reprodução/Mirror

Mais uma evidência ou apenas viagem de quem quer muito que isso aconteça? Imagens divulgadas pela Nasa mostram fotografias tiradas pelo robô Curiosity, que está em Marte desde 2012, que provariam a existência de vida no Planeta Vermelho.
A foto em questão aponta para uma formação rochosa no formato exato de uma pirâmide. Especialistas passaram a discutir o tema e, segundo alguns ufólogos, a pirâmide em questão não é acaso, mas sim “resultado de vida inteligente e de um projeto e certamente não um truque de luz e sombra”.
O fato de a Curiosity ter fotografado essa formação geométrica em específico fomentou ainda mais os discursos daqueles que acreditam ser essa a prova de que existe vida em Marte. Isso porque, para muitos ufólogos, as pirâmides do Egito são obras de extraterrestres.
A Nasa, por sua vez, não comentou a boataria que está rolando na internet após a divulgação da foto. A agencia espacial dos Estados Unidos se limitou apenas a divulgar os resultados da Curiosity e comemorar a nitidez das imagens trazidas pelo robô.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Em Marte cabe tudo. Já acharam um rosto de Cristo e a cara de um macaco. Depois da pirâmide, retocada no photoshop, o que virá? (C.N.)

24 de junho de 2015
Deu no Yahoo

A SOLIDÃO DO JUIZ





Ser-para-si sartriano, o árbitro precisa assumir o seu lugar no campo para ter uma vida autêntica.


Os juízes de futebol compõem um grupo variado, mas existem vários tipos familiares a torcedores e jogadores. Há o rigoroso, que sempre aplica a letra da lei. Há o vacilante, que foge das decisões difíceis, leva o apito à boca com frequência, mas raramente aponta uma falta. Existe o jogador frustrado, que se envolve mais do que deveria e aplaude a boa jogada como um torcedor. Há também o afetado, que parece atuar no papel de juiz: sua postura é um pouco aprumada demais, seus gestos, excessivamente ensaiados. Temos, por fim, o carteiro, que distribui cartões amarelos e vermelhos por qualquer coisa, e o durão, que desafia os jogadores e incita o enfrentamento.

As ideias necessárias para compreender esses diferentes estilos de arbitragem podem ser encontradas, felizmente, nos escritos do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Ele foi um estudioso fervoroso do futebol e dedicou um trecho longo e complexo da Crítica da Razão Dialética às interações entre jogadores. Como ele observa sabiamente: “Em um jogo de futebol, tudo é complicado pela presença do outro time.” No entanto, são nas obras anteriores de Sartre, O Ser e o Nada e O Existencialismo é um Humanismo, que encontramos sua teoria da arbitragem.

A primeira lição que podemos extrair dos escritos de Sartre diz respeito à natureza existencialmente desafiadora do juiz. Ele é constantemente chamado a fazer escolhas que podem alterar radicalmente o curso de uma partida. Times podem se tornar campeões ou serem rebaixados, craques podem ganhar a Chuteira de Ouro ou ser suspensos das finais por causa de um único cartão. O árbitro tem liberdade total para escolher o que fazer. Se a bola acerta o braço de um jogador dentro da grande área, o juiz é o único com o poder de levar o apito à boca e parar a partida. O bandeirinha pode sinalizar, os jogadores podem reclamar e a multidão pode rugir, mas em última análise tudo depende do juiz. Este é o momento da decisão, quando o destino do jogo pousa sobre os ombros do árbitro.

O resultado de todo um campeonato pode depender daquele momento. Nenhum torcedor australiano, por exemplo, esquecerá o episódio da Copa de 2006, quando, com o jogo empatado em 0 a 0 aos 47 minutos do segundo tempo, o lateral-esquerdo italiano Fabio Grosso caiu sobre as pernas estendidas do zagueiro da Austrália Lucas Neill. A decisão do juiz de marcar um pênalti para a Itália definiu o rumo do jogo: a Itália seguiu em frente e levantou a Taça do Mundo, enquanto a Austrália voltou para casa.

O momento da decisão desempenha um papel central na filosofia de Sartre. Ele o apresenta como o traço definidor da experiência humana. Em O Ser e o Nada, Sartre estabelece uma distinção entre dois modos básicos de existência: o ser-em-si e o ser-para-si. O primeiro é um objeto não consciente, que pode ser definido em termos de uma essência ou função predeterminada. Objetos inanimados, tais como livros e bolas de futebol, estão nessa categoria. O ser-para-si, ao contrário, é um agente ou pessoa consciente capaz de perceber e refletir sobre o mundo ao seu redor. Sartre sugere que, longe de possuir uma essência predeterminada, ele é permanentemente assombrado pela possibilidade do “nada” ou da negação. Em outras palavras, o ser-para-si é forçado a enfrentar continuamente a possibilidade de que as coisas possam ser diferentes do que são.

Em 1928, quando fez o exame final na École Normale Supérieure, em Paris, Sartre resolveu escrever um trabalho sobre o tema da contingência. Foi um fracasso total e ele ficou em último lugar numa turma de cinquenta alunos (Sartre disse ter fracassado porque tentou ser muito original; outros sugeriram que foi porque ele passava mais tempo bebendo e andando atrás de mulheres do que estudando). Em 1929, fez o exame novamente e foi o primeiro da turma. A questão da contingência se tornaria fundamental em sua filosofia.

Em nossa vida cotidiana, sustenta o filósofo, nos envolvemos constantemente em indagações sobre o mundo que nos rodeia: perguntas sobre a existência de Deus ou sobre onde largamos as chaves do carro colocam certos aspectos de nossa existência em xeque. Uma vez que a resposta a essas questões seja negativa, parece-nos que nosso lugar no mundo não é necessário, mas contingencial.

Segundo Sartre, o sentimento de contingência permeia a experiência humana da escolha. Por mais certeza que tenhamos sobre uma determinada decisão, temos consciência, não obstante, de que outra alternativa seria possível. Uma vez que cada caminho está cheio de possibilidades, parece que não podemos deixar de aceitar a responsabilidade sobre nossas escolhas. Sartre argumenta que esse sentimento de responsabilidade inescapável tende a provocar angústia.

Imagine que está caminhando por uma trilha estreita na beira de uma montanha. Você está permanentemente consciente da importância de pisar com cuidado. Ao mesmo tempo, também está ciente de que, apesar do cuidado e da atenção, seria muito fácil se jogar no precipício. Sartre mostra que a existência humana está cheia desses momentos que podem potencialmente alterar a vida. No espaço de um instante, seria possível jogar seu carro na contramão ou fazer um comentário que afastaria para sempre uma pessoa querida.

Para Sartre, a vida humana envolve uma inevitável percepção dupla. Em primeiro lugar, as possibilidades de alternativas presentes na minha experiência de escolha me revelam que sou livre. Simultaneamente, também estou consciente de que sou responsável, uma vez que sou confrontado com a aparente ausência de restrições a exercícios potenciais, significativos da minha liberdade. Independente de eu caminhar calmamente ao longo da beirada ou de me jogar de cabeça no abismo, a decisão cabe somente a mim.

Voltemos ao momento da decisão. A bola atinge o braço de um jogador na grande área. O árbitro precisa decidir se deve apitar a falta. Nesse momento, ele é livre e responsável: como ninguém pode lhe dizer qual decisão tomar, a responsabilidade pelo resultado recai unicamente sobre seus ombros. Essa posição de poder provoca naturalmente angústia, no sentido sartriano do termo.

Muitos juízes não conse-guem dormir à noite, ruminando os detalhes do que aconteceu em campo e se perguntando se tomaram a decisão certa. Às vezes, a resposta será clara. Em outras, independente do esforço para se lembrar de detalhes da partida, não se saberá de maneira definitiva qual deveria ter sido a escolha correta. Esse tipo de situação sublinha a contingência do papel do juiz: muitas vezes, não há ponto de referência que possa revelar se uma determinada opção foi a certa ou a errada.

Até mesmo os melhores árbitros sentem que a pressão sobre eles é excessiva. É o caso do respeitado juiz sueco Anders Frisk, que aposentou o apito após receber ameaças de morte de torcedores do Chelsea por sua atuação num jogo, em 2005, contra o Barcelona. Ou do suíço Urs Meier, que passou a andar com seguranças para se proteger dos torcedores ingleses descontentes com sua decisão de anular um gol de Sol Campbell contra Portugal, na Eurocopa de 2004.

Isso para não mencionar o árbitro norueguês Henning Ovrebo, rotulado pelo atacante Didier Drogba, do Chelsea, como “desgraçado da porra”, por recusar uma série de pedidos de pênaltis na semifinal da Liga dos Campeões de 2009, mais uma vez contra o Barcelona. Trata-se de um juiz corajoso, capaz de enfrentar essas circunstâncias e admitir ser somente dele a responsabilidade última por suas decisões.

Em um nível mais prosaico, centenas de árbitros amadores desistem da função a cada temporada, em virtude das pressões sofridas durante campeonatos locais. Não é só o perigo de um torcedor descontente tentar esmurrá-lo no estacionamento depois do jogo. (Ou, efetivamente, jogar um pacote de chips em sua cara, como aconteceu comigo em uma ocasião. “Ei, juiz, você gostaria de umas fritas?”) Num nível mais profundo, é a angústia existencial de ser o único que pode responder pelas muitas decisões cruciais tomadas no decurso de um jogo. É solitário estar lá no meio do campo. Por mais conselhos que um juiz possa receber dos fiscais de linha, no momento da decisão ele está sozinho.

Sartre argumenta que, para viver uma existência autêntica, os seres humanos
devem abraçar o sentimento simultâneo de liberdade e responsabilidade que está no cerne de suas vidas. Eles devem reconhecer que o tipo de pessoa que vêm a ser, longe de ser ditado por forças externas, é resultado da vida que decidem levar. Para o ser-para-si, na famosa definição de Sartre em O Existencialismo é um Humanismo, “a existência precede a essência”. Nossas características pessoais não são necessárias ou fixas, mas fruto de nossas escolhas.

Uma pessoa, ao contrário de um objeto, como uma cadeira ou um copo de cerveja, não nasce com um conjunto predeterminado de características definidoras. Não nascemos honestos, covardes, fiéis, ou não confiáveis. Esses traços de caráter são, e só podem ser, uma função do modo como a pessoa escolhe viver. Uma vida autêntica envolve assumir responsabilidade por nosso caráter e reconhecer a capacidade de mudar aquele que viemos a ser. É somente quando morremos que esse projeto de autocriação acaba.

Viver uma vida autêntica é um desafio. É tentador esquivar-se da responsabilidade por nossas escolhas, atribuindo-a a aspectos inatos de nosso caráter ou a forças externas avassaladoras. Sartre descreve esse tipo de atitude como formas de má-fé. Qualquer tentativa de negar a nossa capacidade de moldar nossas vidas por meio de nossas escolhas é uma forma de autoengano, “uma mentira para si mesmo”.

As diferentes personae da arbitragem – o rigoroso, o vacilante, o jogador frustrado, o afetado, o carteiro e o durão – podem ser entendidas como tentativas de lidar com a pressão existencial do papel de juiz. Vimos que a responsabilidade por decidir soprar ou não o apito cabe somente a ele. Não é de se admirar que seja tentador aos juízes se esquivar de uma parcela da responsabilidade, quer adiando suas escolhas ou procurando uma autoridade externa para justificá-las.

O tipo rigoroso, por exemplo, procura amenizar a responsabilidade pessoal por suas decisões se apegando de maneira estrita às leis do jogo, independentemente do contexto. As camisetas devem estar por dentro dos calções e os meiões puxados para cima. Os laterais devem ser cobrados no ponto exato em que a bola saiu do campo. E infrações menores, como empurrões e puxadas de camisa sempre requerem uma falta, sem levar em conta o impacto sobre o fluxo do jogo.

Essa abordagem da arbitragem lembra as críticas de Sartre às concepções que identificam a ação virtuosa com a adesão a um código moral rígido. O problema com esse tipo de perspectiva moral é que estimula as pessoas a não assumirem
a responsabilidade por suas ações. As pessoas confiam no código para dizer-lhes o que fazer, em vez de enfrentar cada situação e fazer suas próprias escolhas.

Em O Existencialismo é um Humanismo, Sartre ilustra esse problema com a história de um estudante que o procurou para pedir conselhos. Durante a ocupação alemã, o rapaz hesitava entre aderir às Forças Francesas Livres na Inglaterra ou ficar na França para cuidar da mãe idosa. Ele achava as duas opções moralmente atraentes, mas por razões distintas. Partir para a Inglaterra lhe permitiria defender seu país e seus ideais, mas cuidar da mãe lhe parecia importante em um nível mais pessoal.

Depois de analisar a situação do aluno, Sartre respondeu com o que deve ter parecido uma colocação inútil: “Você é livre, então escolha.” Seu argumento não era que nunca pode haver uma resposta certa para uma questão moral, mas que, nesse caso, o aluno não poderia resolver seu dilema referindo-se a uma fórmula abstrata. Em vez disso, tinha diante de si uma disputa entre dois ideais que lhe eram caros: a única maneira de enfrentar a situação era fazer uma escolha e aceitar a responsabilidade pelas consequências.

Sartre observa que, quando pedem conselhos sobre uma decisão moral difícil, as pessoas muitas vezes já decidiram o que fazer. Suspeita que o estudante já fizera sua opção, mas queria diminuir a culpa pessoal obtendo a aprovação do professor. Se o aluno quisesse ficar com a mãe, observa Sartre, ele teria procurado o conselho de alguém como um padre conservador.

Uma situação semelhante se aplica ao tipo rigoroso. O fato de ele se ater às regras do jogo não o exime de se posicionar. As regras são vagas: elas precisam de alguém que as interprete e aplique. De acordo com a regra doze, por exemplo, atos como empurrar devem ser penalizados se o árbitro considerar que foram cometidos de uma maneira “imprudente, temerária ou com uso de uma força excessiva”. Esse tipo de norma é inerentemente passível de interpretação. O rigoroso tem tanto arbítrio quanto qualquer outro juiz, mas tenta disfarçar isso citando permanentemente as regras.

Não são apenas os juízes que se escondem por trás das normas escritas quando tomam uma decisão difícil ou impopular. Patrões a burocratas, policiais e juízes, fazem-no com frequência. De acordo com Sartre, essa recusa em aceitar a responsabilidade por suas decisões é uma forma de má-fé. Regras e políticas podem estabelecer diretrizes para as nossas ações, mas elas não determinam e nem podem determinar nossas escolhas. Cabe somente a nós, como agentes livres e responsáveis, fazer isso.

Há um tipo de árbitro ainda mais insultado por torcedores e jogadores: o vacilante, que leva habitualmente o apito à boca, mas raras vezes o aciona. A resposta do vacilante à pressão é evitar apitar. Pensa que, se não apitar, talvez ninguém note a falta. Dessa forma, pode evitar as críticas por assumir uma posição.

A estratégia do vacilante é adiar o momento da decisão pelo maior tempo possível. Sartre discute um exemplo semelhante de má-fé em O Ser e o Nada. O caso diz respeito ao que se passa com uma mulher num primeiro encontro. O homem flerta com ela a noite inteira, fazendo comentários do tipo “Acho você tão atraente!”. Porém, a mulher opta por interpretá-los como elogios à sua personalidade, e não a seus atributos físicos.

Por fim, o homem pega na mão dela. Este é o momento da decisão, quando ela deve escolher se vai retribuir aos avanços ou não. A mulher, no entanto, não quer reagir, pois teria de ferir os sentimentos do candidato ou admitir a reciprocidade da atração. Ela então simplesmente deixa a mão lá – como uma “coisa”, nas palavras de Sartre – fingindo não perceber. Sua reação é ignorar a situação e esperar que ela acabe. De acordo com Sartre, ela age de má-fé, presa em uma mentira para si mesma.

O jogador frustrado procura escapar do peso de seus atos de maneira diferente, simulando a conduta de um torcedor ou jogador. Ele segue o jogo como um espectador, nunca perdendo a chance de aplaudir uma boa defesa ou felicitar um atacante por um belo gol. Esse tipo de árbitro quer ser um dos jogadores e tenta convencê-los de que está do lado deles. Os jogadores não querem um juiz amigo. Querem alguém que assuma a responsabilidade por seu papel no jogo.

Estratégia semelhante é usada pelo afetado, que parece empenhado demais em exibir um gestual extremamente correto. Até mesmo na infração mais insignificante, o afetado corre até o jogador envolvido, sopra seu apito de forma dramática e aponta violentamente para a direção da cobrança de falta. Ele ensaia seus sinais antes de cada jogo e gasta mais tempo na frente do espelho do que o Cristiano Ronaldo.

Em O Ser e o Nada, Sartre dá o exemplo famoso de um garçom num café que tenta assumir seu papel de uma maneira afetada. Como diz Sartre, “seu movimento é rápido e para a frente, um pouco preciso demais, um pouco rápido demais”. Ele aborda os clientes com uma eficiência exagerada, inclina-se com ansiedade excessiva e mostra demasiado interesse pelos pedidos.

No exemplo de Sartre, o garçom aspira exercer seu papel de uma maneira em que cada ato pareça necessário e inevitável. Ele deseja ser um garçom, da mesma forma como uma mesa é uma mesa ou um copo é um copo. Assim, o jogador frustrado e o afetado procuram aliviar o fardo de seu dever mediante a criação de papéis artificiais. O primeiro finge ser um jogador ou torcedor, a fim de adiar o momento em que deve enfrentar seu dever. O outro, ao contrário, finge ser um juiz. Ele procura evitar o confronto com a contingência de sua posição, reduzindo-a à interpretação de um papel. Todas as ações são executadas porque está atuando como um juiz, e não porque assumiu sua responsabilidade e decidiu qual a melhor reação no caso em pauta.

Por fim, temos o carteiro, que distribui cartões amarelos e vermelhos ao menor delito, e o durão, que encara os jogadores e provoca deliberadamente o confronto. Esses árbitros imaginam que são Clint Eastwood em Dirty Harry: “Você acha que tem sorte, seu vagabundo?” (Claro, um cartão amarelo não é tão impressionante quanto uma Magnum .44.)

O carteiro e o durão têm consciência da contingência de suas decisões. Eles compensam o fato realçando seu poder sobre os jogadores. Em vez de titubear, como o vacilante, ou ser pouco sincero, como o jogador frustrado ou o afetado, esses árbitros são beligerantes. Sua atitude diz: este é o meu jeito de apitar, e é melhor que você aprenda a gostar dele. Passam o jogo esperando por um pênalti ou uma grita geral, para que possam mostrar aos jogadores que não estão ali para brincadeira.

A hipocrisia subjacente a essa atitude é capturada em outro dos exemplos de Sartre de O Ser e o Nada. Suponha que uma pessoa que se comportou mal diga: “Me desculpe, eu sou apenas uma pessoa má.” Essa confissão é para ser aplaudida? Sartre não pensa assim. Esse pretenso “campeão da sinceridade” parece estar confessando seus defeitos, mas na verdade tenta evitar a responsabilidade por seu comportamento. Seu comentário de que é “uma pessoa má” trata seu caráter como imutável, como se tivesse nascido mau e não pudesse fazer nada a respeito. Ao mesmo tempo, ele tenta se valorizar diante dos outros sendo sincero sobre seus próprios defeitos. Procura transformar sua má conduta em um emblema de honra.

De forma parecida, o carteiro e o durão dizem aos jogadores: “Este é o tipo de juiz que sou, e é melhor lembrar-se disso antes de se meterem comigo.” Em vez de assumir a responsabilidade por suas decisões, eles se comportam como se suas reações fossem determinadas por seu caráter. Com a reputação de rigorosos reconhecida, ficam cada vez mais preocupados em estar à altura do papel. A fama funciona como desculpa para justificar decisões duras: os jogadores sabem que eles são assim e, portanto, é culpa deles se provocam uma reação.

Qual é, então, o estilo ideal de arbitragem, que evita as várias armadilhas existenciais que Sartre descreve? Repete-se que os melhores árbitros são aqueles que fazem seu trabalho sem interromper o fluxo natural do jogo. Isso sugere um ideal do árbitro autêntico, que aceita a responsabilidade por suas decisões, sem exagerar sua autoridade ou negar a natureza contingente de sua posição.

O juiz autêntico dá o melhor de si para apitar bem, mas não finge que a situação é definitiva a ponto de não haver interpelações. Ele é confiante o suficiente para admitir ser possível haver mais do que uma visão de um incidente, e que outros podem ter chegado a uma conclusão diferente. No final, porém, é responsabilidade sua controlar o jogo, e ele enfrenta a situação quando é necessário tomar uma decisão.

Um incidente que envolveu Pierluigi Collina, talvez o maior árbitro de todos os tempos, ilustra o que quero dizer. Em 1997, quando apitava um jogo da Série A entre a Internazionale de Milão e a Juventus, Collina validou um gol da Inter. Embora o artilheiro parecesse impedido, o bandeirinha não marcou a infração. Quando os jogadores da Juventus correram até o auxiliar para reclamar, ele explicou que, embora o atacante estivesse em posição de impedimento, a bola fora tocada para ele por um defensor.

Collina ouviu a explicação, mas achou que estava errada: de onde estava, parecia claro que o passe viera de outro atacante. Àquela altura, os jogadores da Inter já haviam comemorado o gol e estavam de volta ao seu campo à espera do reinício do jogo. Collina tinha diante de si uma escolha difícil: poderia prosseguir com a partida, embora achasse que a decisão estava errada, ou poderia voltar atrás e anular o gol, situação que faria o estádio vir abaixo.

Sabe-se o que alguns árbitros fariam. O vacilante tomaria o caminho da menor resistência, dando continuidade ao jogo e esperando que ninguém tivesse percebido. O rigoroso voltaria atrás e não toleraria discussão, citando a letra da lei. O durão adoraria o confronto, encararia os jogadores da Inter e os desafiaria a reagir. Tal como o rigoroso, o durão apresentaria sua decisão como se fosse a única solução possível, ignorando a ambiguidade da situação.

Collina sabia o que tinha visto. Ele também sabia que o bandeirinha tinha uma opinião diferente. Mas a responsabilidade de apitar era sua. Decidiu anular o gol, e o que fez em seguida mostra sua qualidade como árbitro. Ele chamou o capitão da Inter e explicou as razões de sua decisão. Depois, correu até o banco do time e explicou sua atitude mais uma vez. Não estava em busca de um confronto, queria que os jogadores e dirigentes entendessem por que ele voltara atrás. No final, Roy Hodgson, o técnico da Inter, apertou a mão de Collina e disse: “Tudo bem.” Percebeu que Collina dava o melhor de si numa situação difícil.

Em O Ser e o Nada, Sartre observa que os amantes retratam frequentemente seu amor como sendo necessário, em vez de contingente: falam sobre almas gêmeas, “feitos um para o outro”, “unidos pelo destino”, e assim por diante. A realidade, tal como Sartre a vê, é mais ambígua e, no fim das contas, bem mais romântica: cada um de nós tem muitos parceiros potenciais, e se acabamos ficando com uma pessoa, é porque nós a escolhemos em relação aos outros. Sartre descreve o amor que abraça sua natureza contingente, em vez de procurar superá-la, como “amor no mundo”. Para enfrentar a ideia de amor no mundo, é preciso que assumamos a responsabilidade por nossos relacionamentos, em vez de simplesmente apresentá-los como predeterminados ou predestinados.

Da mesma forma, o árbitro autêntico pratica a “arbitragem no mundo”, sem se esquivar da responsabilidade, nem fingir ser algo que não é. Ele decide, mas não é intransigente. Apita o que vê, o melhor que pode quando tem que decidir o que é correto. Se necessário, gasta tempo para explicar suas razões aos que foram afetados pela atitude. Sabe que nem sempre acertará, e outros terão invariavelmente uma visão diferente. Não obstante, assume a responsabilidade por suas decisões, dizendo: isto é o que eu escolhi.


24 de junho de 2015
Jonathan Crowe

DE BOCA CHEIA






Se você é desses que param no quinto cachorro-quente, desista


Caso a sul-coreana Sonya Thomas conhecesse o jogo do bicho, decerto arriscaria todas as suas economias no elefante. Já se entrasse para a política, bastaria tocar a campainha de FHC para ser recebida com abraços festivos pelo grão-tucano. A moça é uma predestinada do número 45. Tem 45 anos, pesa ínfimos 45 quilos e, no último 4 de julho, engoliu 45 cachorros-quentes em apenas dez minutos.

Não, não se tratava de um caso de fome atávica. Sonya participava, isso sim, do maior concurso de pantagruelismo de que se tem notícia, um evento nos limites da indigestão que acontece anualmente em Nova York no grande feriado nacional.

Promovido há quase 100 anos pela tradicionalíssima casa de cachorros-quentes Nathan’s Famous, em Coney Island, no Brooklyn, o evento é tratado com a seriedade de uma competição olímpica, sendo transmitido para boa parte do planeta pelo canal de esportes ESPN. Naquele dia, sob um calor de 35 graus, 40 mil almas se deslocaram para assistir à comilança desbragada, o que é mais gente do que se costuma ver nas partidas do Brasileirão.

Separados em duas categorias, masculino e feminino, os competidores são convocados a subir ao palco ao som da voz forte do mestre de cerimônias narrando as respectivas glórias gastronômicas de cada um: ali estão engolidores de cannoli, de cupcakes, de hambúrguer, de sushi, de aspargos – e fritos, ainda por cima!

São quinze homens e catorze mulheres de diversas partes do país, todos a relaxar maxilares à cata dos 10 mil dólares destinados aos vencedores. Competiam no mais grandioso palco da modalidade por haverem se distinguido em contendas anteriores.

Os atletas gastronômicos são convidados a se distribuir atrás de uma longa mesa repleta de cachorros-quentes. O centro é ocupado pelos favoritos, que curiosamente parecem ser os mais em forma, quem sabe por terem se abstido de comer nos seis meses anteriores.

Séria e obstinada, Sonya estava a minutos de quebrar o seu recorde de 2011, ocasião em que ingerira 41 HDs – abreviação carinhosa de hot-dogs que todos empregam. O feito é ainda mais impressionante quando se ouve que a iguaria está longe de ser a sua predileta. “Amo batata frita, que cortei do cardápio quando meu médico reclamou da taxa de colesterol”, contou. Era uma prova adicional de sua notável determinação, uma vez que gerencia um restaurante de fast-food numa base militar perto de Washington.

A sul-coreana participa de doze a quinze competições gastronômicas por ano e é a número 4 daMajor League Eating, a CBFda comilança: além de abocanhar trinta títulos mundiais, detém a invejável distinção de ser a mais veloz comedora de ostras do globo. “Foram 564 em oito minutos; também tracei quase 3 quilos de asas de galinha em doze minutos. Ninguém me supera”, jacta-se, com razão.

Modesta, nem sequer menciona as medalhas de ouro conquistadas quando ingeriu 274 jalapeños em míseros dez minutos, 26 dúzias de mariscos em outros seis, 5 quilos decheesecake em nove, 2 quilos e meio de peru em dez e 65 ovos cozidos em seis minutinhos. Há países africanos que consomem menos proteína ao longo de décadas.

A técnica de Sonya exige preparo e astúcia: na véspera da competição, limita-se a uma saladinha. Dada a largada, mergulha os pães num copo de água e, célere, enfia dois sanduíches simultanea-mente na boca. Mastigar é para amadores – “Eu perderia de um a dois minutos.” No oitavo minuto, confessa que começa a passar mal, mas, brava, jamais esmorece: 41 (enjoo), 42 (náusea), 43 (asfixia), 44 (...), 45 (vitória).

Radiante, ela se abraça ao pendão americano e é carregada nos ombros da malta, heroína da nação para a qual imigrou em 1997. Causa espanto que, apesar da quantidade do ingerido, seu estômago continue retinho, retinho. O mesmo não se pode dizer do californiano Joey Chestnut, de 28 anos, 100 quilos e 68 HDs. Vencedor das seis últimas edições, subiu ao pódio para receber o prêmio com a desenvoltura de uma parturiente a minutos de dar à luz.

Na véspera, Sonya, Chestnut e os demais contendores foram recepcionados nos jardins da prefeitura pelo alcaide Michael Bloomberg. Apesar de fazer campanha ferrenha contra a obesidade, Bloomberg é administrador astuto e sabe da posição do Nathan’s na geografia gastrocultural de Nova York. Tudo começou em 1916, quando um imigrante judeu polonês, Nathan Hand-werker, abriu uma carrocinha de cachorro-quente. Contava com o apoio da esposa, dona de receita infalível de salsicha. A carrocinha virou loja, que permanece na mesma esquina até hoje, ali mesmo onde se ergue o palco do certame. Atualmente, os hds do Nathan’s são vendidos nos cinquenta estados do país: só em 2011 foram 453 milhões deles, fora os 100 mil doados anualmente a pessoas carentes de Nova York.

Na plateia neste 4 de Julho, estavam lá o neto, o bisneto e o tataraneto de Nathan – que já não está entre nós (faleceu em 1974). Gostam de prestigiar o evento, apesar de não terem seguido o negócio da família. “Tanto antigamente como hoje ninguém sabe direito do que é feita uma salsicha. Então meu bisavô oferecia cachorro-quente de graça para os médicos de um hospital que funcionava logo ali. A condição era atravessar a rua e comer de jaleco e estetoscópio aqui dentro, com vista para a calçada. O público via e pensava: se os médicos comem, está liberado”, conta Ivan Basch.

Pelo Nathan’s passaram Al Capone e Cary Grant; Barbra Streisand mandou entregar dezenas de cachorros-quentes com a marca registrada numa festa que promoveu em Londres; o presidente Franklin Roosevelt abriu precedente em 1939 quando levou HDs do Nathan’s para o rei e a rainha da Inglaterra; Jerry Seinfeld criou um episódio sobre a lanchonete; o ex-prefeito Rudy Giuliani insiste que esse é o melhor cachorro-quente do mundo; e Nelson Rockefeller, governador de Nova York de 1959 a 1973, jurava que nenhum político local ganharia eleições sem ser fotografado abocanhando um Nathan’s Famous. Para isso, é bom esclarecer, basta só um.


24 de junho de 2015
Tania Menai

UMA VIDA QUE MERECE SE ENCERRAR




Há pouco tempo, numa tarde chuvosa, estava indo visitar minha mãe quando resolvi parar no meu corretor de seguros, que vinha insistindo numa conversa. Ele queria me empurrar um plano de assistência continuada na velhice, com um discurso sobre tudo o que eu economizaria se comprasse agora, antes que as taxas disparassem. Por 5 mil dólares ao ano, eu teria, quando viesse a precisar, uma soma diária para cobrir minhas futuras despesas com enfermagem. Corrigindo em 5% a inflação anual, na velhice eu poderia receber (eu ou os responsáveis por cuidar de mim) até 900 dólares por dia. Minha mãe fez um seguro desse tipo, e ele paga uma diária de 180 dólares em valores de 2012 – o que dá uma boa ideia de para onde estão indo os gastos com assistência à saúde.

Eu sou, como comentou meu corretor, um candidato “de catálogo”. Além de dispor do dinheiro (embora não do suficiente para financiar minha derrocada), desenvolvi uma visão realista: como tanta gente na faixa dos 50 – no meu círculo, quase todo mundo –, tenho um progenitor em estágio avançado de degeneração.

É como dizem os meus colegas: o espetáculo de horror dos nossos pais. Vistos de fora – no escritório, nos restaurantes, nas festas –, todos nós parecemos perfeitamente firmes e sólidos. Mas num quarto qualquer, escondidos do mundo, a vida que levamos é outra, inimaginável.

Eu não precisava ser informado sobre a realidade da assistência continuada. Com minha mãe – que está com 86 anos e que nos últimos dezoito meses não pôde andar, falar ou se encarregar de suas necessidades mais elementares, e que além disso, para completar, não tem memória de curto prazo –, os custos chegam a cerca de 17 mil dólares por mês. Embora o seu plano não dê cobertura completa, certamente sou grato por ela ter tido a clarividência de fazer um seguro desses. (Mesmo que a seguradora John Hancock jamais tenha pago em dia e ainda que todo reembolso implique horas pendurado no telefone com atendentes invariavelmente inúteis – e mandem por fax, por favor, não por e-mail.) Meus três filhos merecem a mesma coisa.

E, ainda assim, à beira de preencher o primeiro cheque do meu seguro-velhice, eu recuei.

Nós temos certas suposições a respeito da necessidade de assistência. Trata-se de uma responsabilidade individual e – dependendo de onde você se situa no grande debate sobre o sistema de saúde americano – de uma responsabilidade nacional. É o que se exige de nós, esse esforço extraordinário. Pois minha mãe, meus irmãos e eu fazemos o que se supõe que devemos fazer. Meus filhos, não duvido, farão o mesmo.

Ainda assim, confesso, o que sinto com mais intensidade quando me sento na beirada da cama de minha mãe é um esmagador sentimento de culpa por mantê-la viva. Quem consegue aceitar um sofrimento desses? Quem pode, em sã consciência, contribuir com isso?

“Por que queremos curar o câncer? Por que queremos que todo mundo pare de fumar? É para isso?”, lamentava-se um amigo com sogros longa e ferrenhamente doentes.

Em 1990, havia pouco mais de 3 milhões de americanos com idade superior a 85 anos. Agora, são quase 6 milhões. Em 2050, serão 19 milhões – perto de 5% da população[1]. Há diversas maneiras de encarar esses dados. Se você é responsável por orçamentos governamentais, está diante de uma questão política complicada. Se trabalha com marketing, eles sugerem novas oportunidades de negócios (não limitadas a fraldas geriátricas). Se tem a minha idade, eles soam incrivelmente otimistas. A longevidade é uma das grandes aventuras modernas, um prodígio tecnológico – ganhamos várias décadas de mocidade se nos cuidamos. Quase ninguém (pelo menos, não abertamente) vê a consequência última, apavorante e involuntária disso. Ao promover a longevidade e inibir tecnologicamente a morte, criamos um novo status biológico para uma parcela cada vez maior da nação, um estado sem porta de saída, de duração cada vez mais longa, uma condição que está quase tão distante da vida quanto da morte e que, não obstante, ao contrário da morte, requer amplos serviços – uma servidão contratual, de fato – e enormes recursos.

Isso não é uma anomalia; é a norma.

As saídas tradicionais – um súbito ataque do coração, morrer dormindo, cair morto na rua sem mais nem menos ou mesmo uma doença em fase terminal – tornaram-se formas exóticas de partir. Quanto mais tempo a pessoa vive, mais tempo demora a morrer. Quanto melhor viveu, pior pode ser a morte que terá. Quanto mais saudável ela for – graças a uma dieta meticulosa, exercícios diligentes e atento acompanhamento médico –, mais difícil será morrer. O aumento da expectativa de vida se deve em parte ao fato de que inibimos tecnologicamente o evento final. Combatemos as causas naturais e deu quase empate. Se eliminarmos fumantes, bebedores, viciados em outras substâncias, os obesos e os fatalmente doentes, sobra um segmento demográfico em rápido crescimento que – embora longe, muito longe de ser saudável – mostra uma peculiar resistência a encontrar a morte.



s vezes fazemos penteados bobos em minha mãe ou a fotografamos com chapéus engraçados; humor negro, mas útil: invertendo a máxima do comediante, comédia é bico, o duro é morrer. Melhor calcular no mínimo dois anos, diz o meu corretor de seguros, para esse toco de vida – e possivelmente muito mais.

Mike Wallace, o incansável jornalista e apresentador de tevê, morreu em abril passado, aos 93 anos, em meio a uma avalanche de matérias sobre suas realizações e seu caráter. O que me chamou a atenção, no entanto, foi um detalhe sem importância no obituário do New York Times, aquela tradicional frase de síntese: “Estava doente havia muitos anos.”

“O que significa isso?”, tuitei para o jovem repórter que assinava o obituário. Outra pessoa respondeu que significava que Wallace era velho. Dãã! Mas alguém me indicou uma matéria doWashington Post que mencionava demência. O Times logo providenciou uma atualização: Wallace implantara uma ponte de safena quatro anos antes e desde então permanecera numa casa de repousoem Connecticut.



sso não é apenas um prolongado, estoico e heroico adeus. É carnificina humana. Um estudo mostrou que 70% das pessoas com mais de 80 anos sofrem de alguma incapacidade crônica; desse grupo, 53% têm pelo menos uma incapacidade grave e 36% têm perda cognitiva de moderada a grave. (E que ninguém pense que perda moderada seja uma condição branda.)

De uma perspectiva jovem e saudável, tendemos a pensar que a única forma de demência é o mal de Alzheimer – um projétil similar ao câncer, um infeliz destino genético do qual, com sorte, conseguiremos escapar. Na verdade, o Alzheimer é apenas uma das formas (por acaso, não a de minha mãe) desse estado cada vez mais abrangente de colapso cognitivo que é o parceiro e o preço da longevidade.

Existem hoje mais de 5 milhões de americanos dementes. Em 2050, mais de 15 milhões de nós teremos perdido a sanidade[2].

Por falar em preço: este ano, os custos do atendimento à demência serão de 200 bilhões de dólares. Em 2050, 1 trilhão.

Que ninguém se iluda: o objetivo de um seguro de assistência continuada é ajudar a financiar alguns dos maiores infortúnios e sofrimentos já inventados pelos seres humanos.

Hesito em dar a minha mãe uma personalidade aqui. É a discussão que tenho comigo todos os dias: ela não é quem era; não a obrigue a perdurar em nome do que um dia ela foi. Não sentimentalize. E, ainda assim... Este é o nó: ela continua a ser minha mãe.



uando terminou o ensino médio, em 1942, minha mãe foi trabalhar no Evening News de Paterson, em Nova Jersey. Numa redação com muitos de seus homens na guerra, Marguerite Vander Werf – apelidada de “Van” na redação e para sempre – logo se tornou repórter de assuntos militares. Sua tarefa era ficar de olho nas vítimas locais. Aos 18 anos, magricela de 43 quilos e meia soquete, minha mãe muitas vezes aparecia na porta dos pais de um soldado antes do telegrama do Ministério da Guerra e tinha de contar àquelas almas que o filho estava morto. Décadas depois, essa recordação ainda a deixava melancólica.

Ela se casou com meu pai, Lew Wolff,um publicitário, e saiu do jornal depois de onze anos para me ter – e em seguida aos meus irmãos, Nancy e David. Foi jornalista freelancer e trabalhou em regime de meio período como relações-públicas. Era uma personalidade inquieta e persuasiva que se tornou uma potência cívica na nossa cidade, eleita para o conselho de educação e responsável pela biblioteca pública, organizando e levantando o dinheiro para construir seu novo prédio e expandi-la. Ela era o flautista de Hamelin, a mãe carismática, uma oradora inteligente e apaixonada que prendia a atenção tanto das crianças como do convidado bêbado no jantar.

Meu pai, cuja agência de publicidade sofreu grandes oscilações de fortuna, morreu de repente, aos 63 anos, do jeito antiquado: um ataque cardíaco durante uma das retrações econômicas. Minha mãe estava com 58 anos – a idade que tenho hoje – e ficou com poucos recursos. Manejou seu encanto e sua astúcia em prol de uma espetacular reinvenção pessoal e do renascimento econômico, tornando-se executiva de marketing de laboratórios farmacêuticos. Aos 72, a caminho da aposentadoria, mas ainda inquieta, coroou a carreira como chefe de marketing de uma empresa de jogos on-line.

Durante 25 anos, morou num apartamento em Ridgewood, em Nova Jersey, num estilo de sociabilidade e bisbilhotice de comédia de televisão. Uma vez por semana, toda semana, ela pegava o carro e ia a Manhattan para fazer o jantar da minha família e ajudar meus três filhos com a lição de casa – não sei como teria conseguido administrar minha vida e criar os meninos sem ela.

Esta é a mulher, ou o que restou dela, que hoje mora num estúdio no Upper West Side, num daqueles novos edifícios quadrados que pipocam na área – uma espécie de pré-caixão, se preferirem. E isso é exatamente o que poderíamos imaginar – graças à diligência de minha irmã,ao seguro, à poupança de minha mãe e à contribuição dos três filhos – como o lugar ideal para alguém nas condições dela. É um ambiente espaçoso, no 9º andar, com uma grande janela que, da cama de minha mãe, oferece uma vista permanente da cidade. A luz inunda o apartamento. O tempo cumpre seu papel, as estações mudam. Um quadro de 1960 de March Avery, da coleção que ela e meu pai reuniram – uma cadeira Adirondack de frente para o mar azul –,está pendurado diante dela. Abaixo do quadro está a televisão de tela plana, na qual ela assiste a programas de culinária com estranha intensidade. Ela é atendida 24 horas por dia, sete dias por semana, por duas dedicadas acompanhantes que se revezam em dois turnos diários.

É tudo calmo e sereno.

A não ser pelo desassossego de minha mãe. Seus olhos ficam parados em muda reprimenda. De algum modo, a confusão mental e a resignação não atenuam sua raiva. Ela força a cognição e, de um modo impressionante, às vezes irrompe num pensamento – “Belo terno”, me disse há alguns meses, assim, do nada, antes de se recolher novamente.

Eis uma coisa da qual se adquire uma terrível compreensão: demência não é ausência; não é um não estado; seria, na verdade, uma condição de mais sentimento, não de menos, um estado que, dada a falta de clareza e lógica, deve equivaler a um pesadelo perene.

“A velhice”, diz um personagem de Philip Roth, “não é uma batalha, é um massacre.” Eu acrescentaria: é um holocausto. As circunstâncias conspiraram para roubar da pessoa humana – da massa de humanidade – toda esperança, dignidade e conforto.



uando trocam a fralda de minha mãe, ela faz ruídos de um desespero rascante. Durante um tempo, antes que perdesse toda a linguagem, era possível, com um esforço de concentração, decifrar o que ela estava dizendo, o que repetia sem parar: “Isso é uma violação. É uma violação. É uma violação.”

A coisa estarrecedora é que você vê tudo isso chegar – você está vendo, mas teima deliberadamente em não ver.

Quando começou comigo, já estava em fase avançada para um amigo meu, colega de faculdade. Como ele era filho único, não teve muito onde se esconder. Seu desamparo despertava em mim uma preocupação ligeira. Achava que minha situação jamais poderia ficar tão ruim – ele falava, não de brincadeira, em assassinato. Mas todos nós acabamos emparelhados. O descarrilhamento é questão de tempo.

Com minha mãe, começou nos pés. Sua queixa – para a qual nenhum médico achou um nome útil ou ofereceu grande alívio – era que a pele dos seus pés dava a sensação de estar apertada demais. Uma noite, há quase três anos, ao entrar no banho, ela prendeu o pé no trilho da porta do box e caiu dentro da banheira. Ficou ali, tremendo na água morna até de manhã, quando um vizinho acabou estranhando. Aqui há um preceito que nenhum médico explicita bem: depois que começa, começa mesmo – declínio se segue a declínio, incidente anuncia incidente. Em linguagem médica: “Ocorre um decréscimo na capacidade.”

Mas vamos enfrentar, é claro. O chuveiro da minha mãe foi equipado com cadeiras especiais (móveis para velhos são um capítulo de horror à parte), barras para ela se segurar, telefones ao alcance e aparelhos de um serviço de bipe do tipo não-consigo-levantar. Na verdade, ela aprendeu a cair (não cair não sendo uma opção). Ao menor sinal de tombo, dava um mergulho quase elegante no chão e, em seguida, sem conseguir se levantar, bipava para a polícia, a gentil polícia, que vinha e a colocava de pé, e aí ela fazia um café para eles e tudo terminava relativamente bem.



então veio um feriado, esses infalíveis barômetros da saúde familiar. O Dia de Ação de Graças de 2009 já estava esquisito. Eu havia me separado no início do ano. Minha namorada, com quem eu estava morando (na casa dela), iria também. Meus filhos estavam boicotando. Era minha mãe que tentava ser o pilar firme e forte. Ela insistiu que daria conta do recado. O vizinho – que por anos vinha fazendo as vezes de seu escudeiro – iria se encarregar de pôr o peru no forno, pesado demais para ela. Minha irmã e eu chegaríamos antes dos outros convidados, para os últimos detalhes. Estava tudo em ordem quando chegamos lá: as batatas cozidas e prontas para serem amassadas em uma panela, as cenouras cozidas, a torta de cebola assada. Tudo em ordem – a não ser pelo fato de que minha mãe havia feito esses preparativos com uma semana de antecedência. As panelas exalavam um cheiro alarmante. Pior era que ela não tinha noção de nada – e não dava sinal de alarme.

Era preciso, obviamente, tomar providências enérgicas. Seus três filhos – minha irmã e eu em Nova York; meu irmão, que é consultor de software, no Havaí – conferenciaram. Uma vida independente entra em falência e você pensa: Como foi que não percebemos nenhum indício da ruína? Minha mãe, como um contador vigarista, havia escondido muitas provas: ela já não sabia ver as horas, não sabia contar, não entendia o calendário.

Em todo caso, é para isso que serve a vida assistida, não?

Resolvemos trazê-la para Manhattan e a convencemos (a nós mesmos também) de que ela começaria ali uma nova e grande aventura.

Ela estava pronta – e aliviada. O lugar, o Atria Senior Living, na rua 86 Oeste, ficava a poucos quarteirões de onde mora e trabalha minha irmã, que é artista plástica. O Atria, uma cadeia nacional de residências para idosos, é mais um negócio imobiliário do que uma empresa de assistência à saúde, proporcionando, a um custo pesado – os aluguéis estão na faixa dos 8 mil dólares por mês –, um bom apartamento de um quarto num edifício pré-guerra, repleto de comodidades (terraços, cabeleireiros) e diferentes níveis de assistência. Mas é importante entender – e por que razão alguém não entenderia? – que a assistência num local de vida assistida, ainda que você a incremente e pague mais por isso, não vai muito além de palavras gentis e atendimento amável, portas que se abrem, um pouco de lavanderia e entrega de medicamentos. Em quase todos os casos, se há qualquer necessidade de assistência real que implique uma calibragem mínima no esquema de atendimento, se é preciso lidar com as complicações reais e com os problemas existenciais dos idosos, então, invariavelmente, liga-se para o 911[3]. É um modelo de negócios brilhante: toda a responsabilidade e todas as obrigações são imediatamente transferidas para os serviços públicos de emergência e para o sistema de saúde.

A taxa de hospitalização para os demais grupos etários está em declínio ou se mantém estável, mas, para pessoas acima de 65 anos, disparou. Um estudo mostrou que os idosos utilizam 50% de todas as diárias hospitalares. O pronto-socorro, última parada para membros de gangues e desenraizados em geral (pelo menos em versão televisiva), é na verdade território dos idosos e seu primeiro passo no sistema hospitalar – no qual, conforme a explicação objetiva do Medscape.com, a “incapacidade de reconhecer as mudanças normais do envelhecimento [...] aumenta as chances de doença iatrogênica”. Doenças iatrogênicas sendo aquelas causadas por hospitais ou médicos.

Numa noite de maio, minha mãe foi à sessão de cinema pós-jantar do Atria – Uma Aventura na África, se bem me lembro – e comentou com alguém que estava com falta de ar. Minha irmã chegou primeiro ao pronto-socorro – o St. Luke’s-Roosevelt – e me ligou pedindo que eu fosse até lá.



odo mundo teria administrado de outra forma o declínio dos pais. Ninguém se orgulha. Todos nós pisamos na bola.Em parte, porque não existe resultado bom. E em parte porque a medicina moderna é um processo aleatório sem uma real direção e, em última análise, sem ninguém no comando. A bola é sempre passada adiante. Nesse buraco negro, todos nos tornamos ineficientes e patéticos.

A cardiologista da minha mãe, dra. Barbara Lipton, uma mulher mais jovem e espevitada que irritantemente chamava minha mãe de “mamãe”, fazia anos que a monitorava por causa de uma “estenose aórtica”, um estreitamento da valva aórtica. A recomendação era não fazer nada até que se tornasse necessário fazer alguma coisa. Se é que se tornaria.

Foi um bom conselho, na medida em que ela viveu quinze anos nessa condição, sem intercorrências. Mas agora, quando surgiam sintomas que poderiam matá-la de repente, por que não operar e lhe garantir mais uns bons anos? O que havia a perder? De um minuto para o outro, tínhamos esse raciocínio e esse cenário.

Meus irmãos e eu temos de assumir a culpa aqui. Em nenhum momento nos ocorreu dizer: “Você quer fazer uma cirurgia cardíaca desse porte numa mulher de 84 anos com sinais progressivos de demência? Está maluca?”



ão é bem verdade. Meu irmão manifestou dúvida, mas, como ele estava em Mauí e, portanto, sem condição de avaliar a realidade de... bem, a realidade de estar perto, descartamos sua opinião. E minha mãe protestou também. Seu desejo foi sempre devidamente expresso, com eloquência e por escrito: ela não queria, em hipótese alguma, acabar onde finalmente acabou. Ainda tinha discernimento suficiente para resistir – sentada ali no hospital, escrevia bilhetes em pânico, suplicantes, como o Herzog de Saul Bellow, a qualquer um que se dispusesse a ouvir. Mas quem dá ouvidos a uma mulher que rabisca esse tipo de bilhete?

A verdade é que você se sente tão aliviado por alguém ter um plano e porque os profissionais com o plano parecem tão objetivos e despreocupados que ignora até a falácia lógica mais óbvia: você quer acreditar que está escolhendo entre a vida tal como era antes da operação e a morte, e não entre a vida pós-operação e a morte.

Eis o que disse o cirurgião, sofismando com plena convicção, ao rebater as recriminações que se seguiram à severa e dramática deterioração do “padrão de qualidade de vida” de minha mãe no pós-operatório: “Eu visitei sua mãe antes do procedimento e a informei plenamente sobre os riscos de uma cirurgia para alguém que apresentava sinais de demência.”

Informou plenamente minha mãe demente?

A operação consertou o coração de minha mãe, sem dúvida – conforme disse o cirurgião (que nunca mais vimos), “ela poderá viver por muitos anos” –, mas nos deixou com saudade do seu nível de confusão anterior à história da valva. Se antes ela vinha decaindo suavemente, agora estava em queda livre.



inha mãe foi reduzida a uma criatura aterrorizada que perdia habilidades de linguagem a cada minuto. “Ela parece agitada, sem dúvida”, disse-me o psiquiatra enviado para administrar drogas antipsicóticas, “e você também.”

Seis semanas e uns 250 mil dólares em contas de hospital depois – pagos pelo seguro público de saúde para idosos, o Medicare, ou seja: pelo contribuinte –, ela foi devolvida, uma sombra de pessoa, à rua 86 e ao seu apartamento de vida assistida.

Desamarrada do tempo, começou a perambular pelos corredores e era periodicamente devolvida ao pronto-socorro.Cada retorno, cada ambulância, cada pacote de restrições, cada cateter desferia nela mais um golpe psíquico.

E então fomos despejados. Quando minha mãe se mudou para o Atria, havia sido uma agradável surpresa descobrir que tudo o que eles exigiam era o pagamento mensal. Agora eu sabia por quê. Morrer é uma sequência de paradas, de estações, de placas de sinalização. Lar. Vida assistida. Cuidados de enfermagem. Cuidados paliativos. Você vai indo.

Mas antes do despejo houve outro Dia de Ação de Graças, dessa vez na minha casa, com minha mãe sendo recolhida e transportada e meus filhos novamente reunidos. E então, no dia seguinte, o “evento”. O grande.

Havíamos chegado ao fim dela – era o que eu acreditava, agradecido.

Chamamos a ambulância, e mais uma vez estávamos nos cubículos de emergência do St. Luke’s. A “apresentação” de minha mãe não poderia ter sido mais sombria. O jovem residente se mostrou claramente chocado, porque talvez tivéssemos perdido o momento de administrar a medicação que teria retardado os efeitos daquilo que sem dúvida parecia ser um acidente vascular cerebral. Claro, eles ainda se dispunham a tentar. Mas fomos firmes: escolhemos não fazer nada ali (o que desencadeou novas e detalhadas avaliações do representante do sistema de saúde). E por favor: observem a ordem legal de não ressuscitar. Horas se passaram. Saí e voltei. Minha irmã saiu e voltou. Uma das acompanhantes de minha mãe saiu e voltou.

E ouvimos então aquelas palavras que, em certos casos, estarão muito longe de ser um alívio: “Ela parece fora de perigo.”

O quê? Como?

Minha mãe não havia sofrido um AVC. Havia tido uma crise convulsiva generalizada. As diferenças entre os dois não sendo exatamente claras. E, caso viessem a ocorrer mais convulsões, o que era plausível, isso a mataria, tendo tal explanação e tal urgência resultado de algum modo em aplicarem... – “Você concordou com isso?”, perguntei a minha irmã. “Acho que não. E você?” “Também não, acho” – na aplicação de grandes quantidades de anticonvulsivos em minha mãe, bem como em sua remoção para outra temporada mais ou menos longa de residência hospitalar.

A coerência havia desaparecido completamente. O que restava era um amontoado de palavras e uma raiva absurda.

Ah, sim, o detalhe: a medicação anticonvulsiva estava prevenindo novas convulsões devastadoras e provavelmente letais, porém fritava ainda mais o cérebro dela.

Além do quê, depois de algumas semanas estendida na cama, resistindo ao cataclismo final, o que lhe sobrava da capacidade de andar, um resto de andar lento e cambaleante, sumira.

E nós agora estávamos no seguinte ponto: imóveis e contraditórios. E morrendo de ódio.

Daí a primeira tentativa de falar abertamente sobre o elefante na sala, o assunto tabu.



conteceu numa sala privativa do hospital, pequena para a ocasião e entulhada de mobiliário fora de uso, no interior da qual se acomodaram seu médico, seu neurologista, sua assistente social, minha irmã e eu. Pareceu-nos o passo maduro a ser dado: encarar realmente o ponto em que estávamos, não obrigar aquelas pessoas a pisar em ovos ao redor do óbvio.

Assim, agradeci a todos pelo que haviam feito e, muito sensato, disse-lhes: “Como é que nós vamos daqui... para lá?”

Movimentação embaraçosa.

NEUROLOGISTA (mudando de posição na cadeira): “Acho que seria útil definir aqui e lá” – e virou-se para o médico.

MÉDICO: “Sua mãe está bastante agitada, então nós realmente não sabemos como ela reagirá a um nível mais baixo de agitação.”

MINHA IRMÃ: “Quais as chances de ela voltar a alguma coisa parecida com o ponto em que estava antes da convulsão?”

ASSISTENTE SOCIAL: “Nós temos sempre de levar em conta uma série de possíveis efeitos.”

EU: “Talvez vocês possam nos dar uma ideia das medidas que acham que poderíamos tomar.”

MÉDICO: “Esperar e ver.”

NEUROLOGISTA: “Monitorar.”

MÉDICO: “Trocar a medicação.”

MINHA IRMÃ: “Podemos no mínimo tentar conseguir um fisioterapeuta, trabalhar pelo menos as pernas... Quer dizer... Se ela melhorar mesmo... Ela ficou sem poder andar.”

NEUROLOGISTA: “Eles vão ter que ver se ela se qualifica.”

EU: “Certo, certo... Pela lógica, então, onde vocês acham que isso pode acabar?”

NEUROLOGISTA: “Nós podemos ajudar vocês a avaliar as opções.”

EU: “As opções?”

ASSISTENTE SOCIAL (para minha irmã): “Onde ela poderia viver. Podemos examinar várias possibilidades.”

EU: “Viver?”

Foi meu irmão de Mauí, com nítida impaciência, quem sugeriu que eu obviamente não fazia a menor ideia de como funciona o mundo real. Uma conversa desse tipo, esgueirando-se pelas entrelinhas legais e as práticas da profissão, devia ser conduzida segundo um código estrito – continue a falar em “qualidade de vida”, aconselhou.

Uma semana depois, na mesma saleta desconfortável:

EU: “Obviamente, estamos preocupados com uma qualidade de vida mínima.”

MINHA IRMÃ: “Ela se transformou completamente. Nada é como antes. Está sofrendo demais.”

MÉDICO: “O padrão mínimo teve uma queda evidente.”

NEUROLOGISTA: “O risco é que os níveis de medicação que atuariam sobre a agitação poderiam deprimir o fluxo respiratório.”

EU: “E isso é de novo uma questão de qualidade de vida, certo?”

MÉDICO: “Óbvio.”

EU: “A agitação parece suficientemente grave para autorizar o que seria o passo além, suponho, considerando a questão da qualidade de vida. Ainda que isso...”

NEUROLOGISTA: “Não tenho certeza se me sentiria confortável...”

EU (num súbito brainstorm): “E o que acontece se você simplesmente interrompe os remédios? Corta e pronto.”

NEUROLOGISTA: “A abstinência poderia precipitar uma crise convulsiva generalizada.”

EU: “E a morte?”

NEUROLOGISTA: “E a morte. Possivelmente. Sim.”

EU: “É uma opção?”

NEUROLOGISTA: “A decisão é de vocês. Não podemos forçá-la a tomar os medicamentos.”

EU: “Hum.”

Interromper os medicamentos parecia uma ocasião igualmente solene e desnorteadora. Uma semana se passou, e então os médicos começaram a relatar, mais animados, que ela estava indo bem, no fim das contas. Havia aguentado o impacto. O quadro era estável.

E então a assistente social veio dizer que estávamos nos aproximando perigosamente do limite de dias de internação que o Medicare pagaria. (Havíamos jogado mais umas centenas de milhares de dólares nas costas do contribuinte americano.)

“E agora?”, perguntou minha irmã, no papel de quem levanta a bola para ver se alguém corta: “O que fazer?”

Minha mãe – enfurecendo-nos com sua teimosia primal – foi transferida para a ala destinada à demência no Atria de Riverdale, no Bronx, onde a única restrição ao comportamento dos pacientes parecia ser a severa proibição de bater.Passados nove dias, depois que ela deu um soco numa auxiliar da ala, estávamos de volta ao nosso quarto no St. Luke’s, onde lhe ofereceram – graças à breve duração da alta, minha mãe teria direito a recomeçar do zero a sua cota de diárias hospitalares bancada pelo Medicaid – uma boa acolhida (por outros 200 mil dólares).



que você faz com a sua mãe quando ela não consegue fazer nada – nada mesmo – para si própria? A questão, para começo de conversa, não é como você lida com as necessidades dela – é onde você a põe. Sim. Trata-se, para começar, de quem ou de qual instituição ficará com ela.

Sim. A questão, antes de mais nada, é qual membro da família escolherá entre opções absurdamente bizantinas e mortificantes – ou pela falta de opção.

Foi nesse ponto que passei a sentir uma raiva irracional do meu irmão no Havaí. De certa forma, eu entendia o que embasava a desculpa dele. Não por acaso ele se mudara para Mauí: seus vinte anos no paraíso não deixavam de ser um exercício do direito moderno de se distanciar da família, posição que ele agora defendia com fervor militante. Ele morava em Mauí exatamente para ficar longe de tudo isso. É digno de nota que, entre as pessoas com as quais eu partilhava minhas histórias de “mãe em crise”, muitas, também com pai ou mãe enfermos e longe, identificavam-se com meu irmão. De todas as coisas para escapar, essa talvez fosse a maior. E, ainda em defesa do meu irmão, toda responsabilidade é relativa: se ele estava fazendo menos do que eu, eu tinha uma bela defasagem em relação ao que fazia minha irmã.

Eis um dos fatos inescapáveis desta história: as mulheres cuidam dos velhos. Não há escapatória, acaba sobrando para elas. No fim, é como a dança das cadeiras. Quase invariavelmente é a menina que fica na mão.

Minha irmã montou a lista de possíveis clínicas de repouso, instituições para idosos com necessidades especiais e centros de cuidados paliativos a uma distânciapraticável. Concordei meio a contragosto com os melhores, depois que ela eliminou os piores. O Medicare atribui uma nota a essas instituições, numa escala de uma a cinco estrelas. Quatro estrelas já era um ossuário. Uma estrela, portanto, impensável. Já as instituições cinco estrelas em Manhattan são quase todas para pacientes HIV positivos.

Em sintonia com o medo profundo que minha mãe sentia de virtualmente toda e qualquer presença, toque ou som estranhos, e também com sua necessidade de atenção e apoio permanentes, minha irmã achou defeito em todos os estabelecimentos. O que poderia ter sido um aborrecimento para mim, salvo pelo fato de todos exigirem somas prodigiosas em troca de sua indiferença deprimente, além de muitos, não satisfeitos, excluírem a condição de minha mãe ou terem listas de espera que, era razoável supor, durariam mais do que ela.

Os centros de cuidados paliativos eram a melhor alternativa. Contudo, embora minha mãe com certeza estivesse morrendo – e os médicos teriam prazer em lhe dar um certificado a esse respeito –, tais centros, ficamos sabendo, não eram para os com certeza morrendo, mas para os morrendo de imediato.

Curiosamente, e em vão, foi nessa época que um dos neurologistas que passavam de vez em quando resolveu reavaliar minha mãe, declarando que o diagnóstico dela estava errado. Ela não tinha Alzheimer, como todos pareciam supor. Tinha demência, sim, mas de um tipo que não seguia nem seguiria o padrão do Alzheimer. Minha mãe não desapareceria; conservaria certa consciência de si e do entorno, ele disse, como se desse uma boa notícia.

A sugestão partiu da acompanhante de minha mãe, Marion, uma mulher de humor e equilíbrio extraordinários que um dia apareceu por aqui, mandada por uma agência, e que agora já estava com minha mãe havia quase dezoito meses, sem falhar um único dia: levá-la “para casa”, simplesmente. Em Manhattan, quando não se dispõe de nenhuma herdade familiar, a coisa mais próxima de “casa” parecia ser o apartamento-estúdio onde ela está agora, a uma rápida caminhada da casa de minha irmã.



ara meu irmão, claro, tratava-se de um pântano de despesas e encargos. Minha irmã lhe assegurou, como tínhamos ouvido dos médicos, que até seis meses era um quadro realista. Meu irmão consultou o seu Google: “Sim, sim, eles têm razão, nesse estágio a expectativa é de seis meses. Mas querem saber do que eles morrem? Morrem de negligência! De negligência! Não tem negligência aqui! Não é natural!”

Assinei o contrato de aluguel.

“Já faz um ano, dá para acreditar?”, disse Marion quando renovei o contrato por mais doze meses, há algumas semanas.

Minha irmã passa por aqui todas as manhãs. Traz as compras, planeja o cardápio e mantém uma rotina diária de esticar os membros de minha mãe (isso afora coordenar e pagar os cuidadores e fazer a coleta na seguradora, a sempre recalcitrante John Hancock). Eu venho algumas vezes por semana (por exatos trinta minutos, nem mais, nem menos). Os netos, com uma mistura genuína de devoção e horror, adotam um padrão diligente. E temos os nossos eventos de família: nos feriados, comemos em volta da cama. Seu irmão de 84 anos e a cunhadavêm visitá-la regularmente, assim como o primo de 89 e a filha. Ela ainda tem até uma amiga que liga todos os dias (os outros se foram há tempos) e entabula uma conversação extremamente unilateral do lado de lá da linha.

De vez em quando chega uma carta de amigos aposentados que se instalaram em climas ensolarados e que de algum modo ignoram, ou preferem não registrar, a situação de minha mãe. Eles retomam o fio da conversa, propõem um almoço para a próxima vez em que estiverem por aqui e contam detalhes de vidas ainda em curso. Continuam a tratar minha mãe como uma mulher que bate papo, cozinha, lê, faz fofoca e demanda atenção. Toda vez que leio essas cartas, de repente, sempre, perturbadoramente, é assim que eu a vejo também.

O absurdo de onde estamos, aqui no corredor da morte, avaliado não só pela nossa aflição, mas também, no plano nacional, em centenas de bilhões de dólares, só não é percebido por quem não tem nenhuma experiência com a real natureza da qualidade de vida e seus contrastes radicais.

Há algumas semanas, minha irmã e eu marcamos uma reunião com a médica de minha mãe. Como os outros não tinham dado conta, assumiu o posto a chefe da gerontologia do St. Luke’s, dra. Brenda Matti-Orozco, mulher calejada, de uma paciência a toda prova.

A médica abriu a reunião com umas histórias sobre a calamidade do sistema de saúde, cortes no Medicaid, redução de leitos num número também menor de hos-pitais na cidade – “Vocês sabiam que o Cabrini[4] fechou?” Havia gente, ela disse, que simplesmente largava o parente velho no hospital. Estava de bom tamanho a conversa mole.

“Já completou um ano”, comecei, abrindo caminho para o que precisava ser dito: Vamos fazer assim, vamos encerrar o assunto, acabar com isso, querendo com isso matar igualmente os eufemismos e minha mãe. “Nós vimos uma deterioração gradual, mas bem acentuada.”

Minha irmã entrou na conversa com alguns detalhes expressivos.

De início a médica parecia assustada, achando que tentaríamos impingir minha mãe de volta à sua instituição, mas ficou aliviada quando eu disse, com toda a franqueza, que planejávamos jamais retornar a um hospital. Queríamos apenas ajudá-la a ir para onde estava indo. (Aqui passou da conta? Foi específico demais?)

Realmente, admitiu a médica, ela parecia ter mudado de estágio. (Estágios de meia-vida antes da morte, de modo que nunca se chega lá.)

“Mais cuidados paliativos, talvez. Deve aliviar o sofrimento, mas teríamos o efeito colateral de deprimir as funções. Se bem que talvez seja o momento de errar por excesso de alívio.”

Mais um dito progresso em nossa descida irreversível: ao longo de um número incerto de semanas ou meses, suas funções se deprimirão sempre mais nesta queda derradeira, tortuosa, excruciante.

“Sua mãe, como tanta gente”, disse a doutora, “é o que nós chamamos de uma definhante.”



ão sei como os tais “painéis da morte” de Obama[5] ganharam um nome tão ruim. Talvez devessem ser chamados de “painéis da libertação”. O que eu não daria por um organismo isento que me permitisse pleitear o fim de minha mãe.

A alternativa é insana: ficar à espera da hora de pagar trilhões e de levar à bancarrota a nação e nossas almas, enquanto suportamos o sofrimento dos nossos pais e nossa incapacidade de ajudá-los a chegar aonde estão indo. O fator isolado que mais pressiona o sistema de saúde são os recursos desproporcionais destinados aos idosos – não aos apenas velhos, mas aos velhosvelhíssimos. Ainda assim, ninguém diz o que todo filho velho de pais velhos sabe bem: é um desatino que, não bastando, suga a vida de todos os envolvidos.

E parece ainda mais selvagem porque há uma saída simples: deem-nos o direito de tomar as providências para quando quisermos partir. Deem às famílias competência para pleitear que basta, se bastar, para pleitear que o fim, de facto, chegou.

Umas semanas atrás, pouco depois de parar no corretor de seguros, enviei aos meus filhos, os três na faixa dos 20 anos, um daqueles e-mails de ALERTA!!!!!, dizendo que eles deveriam dar palpite nessa decisão, nisso de contratar ou não um seguro de assistência continuada. Quando a coisa estourasse, cuidar de mim seria um problema logístico e financeiro deles; era bom pensar sobre o que queriam que eu fizesse e, também, sobre o que eu queria que eles fizessem. Mas nenhum deles respondeu ao e-mail. Suponho que pelo estilo do assunto.

De qualquer forma, feitas as devidas considerações, decidi por conta própria que, sinceramente, jamais teria interesse no que se adquire com um seguro de assistência continuada e que, em todo caso, seria um mau negócio. Minha aposta é que, mesmo aqui na América, mesmo com esse sistema de saúde de merda que é o nosso, nós, baby boomers que assistimos à morte longa e agonizante dos nossos pais, não faremos isso conosco. Encontraremos – havemos de encontrar – um modo melhor, mais barato, mais rápido e mais suave de partir.

Enquanto isso – visto que não posso, a exemplo de minha mãe, contar com ninguém para me sufocar com um travesseiro –, estarei empenhado em estudar a melhor hora e os pormenores de uma estratégia de partida do tipo “faça você mesmo”. Todos deveríamos ter uma. 


24 de junho de 2015
MICHAEL WOLFF



[1] O IBGE não tem números de 1990, nem projeção para 2050. Em 2010, o número de brasileiros com mais de 85 anos era de aproximadamente 1,3 milhão, correspondendo a 0,66% da população.


[2] No Brasil, não há consenso sobre o número de casos de demência. Estudos feitos no estado de São Paulo encontraram incidência de 5,1% a 19% na população acima de 60 anos. Em 2007, uma pesquisa encomendada ao Ibope pela Associação Brasileira de Psiquiatria apontou que 9% da população total, ou 17,6 milhões de pessoas, sofrem de algum tipo de distúrbio mental grave; a pesquisa tem margem de erro de dois pontos.


[3] Telefone de emergência nos Estados Unidos.


[4]Cabrini Medical Center, hospital em Nova York que fechou em 2008.


[5]“Painéis da morte” foi como os republicanos chamaram a proposta, afinal não aprovada pelo Congresso, de oferecer aconselhamento sobre opções de tratamento em caso de doenças graves.

MENDIGO BICO FINO









O morador de rua que come no restaurante de Claude Troisgros


Na última vez que deu entrada no Hospital Municipal Miguel Couto, Otávio Júnior tinha um abscesso cheio de pus na perna esquerda. Não havia cuidado de uma ferida aberta na rua e, agora, ela apodrecia diante de seus olhos. Mas a bronca do médico veio por outro motivo. “Cento e trinta e seis quilos, 235 de triglicerídeos, Otávio! Diabete nas nuvens!”, esbravejou o clínico geral enquanto analisava o resultado dos exames. “Não pode. Vou te botar numa dieta e é já!”

Dentro de uma bermuda tamanho 66 e de uma camiseta branca com pano o bastante para fazer um lençol de solteiro, o jovem de 32 anos nascido em Nova Iguaçu fez cara feia. “Mas, doutor, como é que eu vou largar o Claude? Me diz”, questionou, apontando para a própria barriga, que vazava por debaixo da camiseta. O médico não se conteve e riu.

Otávio referia-se ao francês Claude Troisgros, chef que há mais de trinta anos faz experimentos culinários misturando ingredientes nacionais e trazidos de sua terra natal. Entre suas criações, estão as terrines de palmito pupunha com foie gras ou os lagostins acompanhados de batata-doce crocante. Iguarias como essas garantem casa cheia quase todas as noites no Olympe, inaugurado em 2003 e recém-eleito o melhor restaurante do Rio pelo Guia Quatro Rodas.

O Olympe fica no Jardim Botânico – o mesmo bairro em cujas ruas Otávio escolheu morar aos oito anos. Num fim de tarde recente, o Mendigo Bola, como é conhecido na vizinhança, calçava Havaianas e carregava a bolsa em que leva tudo o que precisa para viver: duas camisetas, duas bermudas, dois celulares de operadoras diferentes, um carregador universal, um sabonete e os documentos. “Bora pro Olympe?”, convidou, pronunciando a vogal anasalada comme il faut. “Se o Claude estiver lá, pode até rolar um macarrãozinho com camarão, meu prato favorito.”

Um jantar no Olympe pode passar dos 500 reais para um casal. Adotado pela equipe do restaurante, Otávio come ali quase todo dia, de graça. “O Bola faz parte da família Olympe há anos”, reconheceu Troisgros, rindo. “Ele sempre fila a boia dos funcionários, que costuma sair por volta das seis da tarde. Deve ter mais ou menos a mesma idade do Thomas, meu filho, e já usou muita roupa dele”, completou o chef.



ambaleante por conta da ferida que ainda cicatriza na perna, Bola fez duas paradas para respirar enquanto andava rumo ao Olympe. No caminho, foi surpreendido por um Peugeot 206 que buzinou ao seu lado. “Bola, taí teu remédio. É um por dia, o.k.? Depois do café. Não vai dar mole, moleque”, aconselhou o mauricinho que estava ao volante. Enquanto espremia o jovem de Ray-Ban e Rolex num abraço pegajoso, Bola meteu na bolsa as seis caixinhas de Pioglit, remédio para controlar o diabete. “Pô, cara, ainda bem que tu me ajuda”, agradeceu. “Cada caixinha dessa sai por uns 40 reais na farmácia.”

Há cerca de dois anos, o jovem do Peugeot voltava de uma noitada sem dinheiro para pagar o táxi. Parou no posto de gasolina em que Bola dormia para fazer um saque no caixa automático, mas não conseguiu. Vendo o tumulto, Bola foi lá e pagou os 15 reais da corrida. Ganhou em troca um amigo e a simpatia de sua família.

Falando da vida com lucidez impressionante, o morador de rua disse arrecadar 150 reais por semana com a mendicância e doações dos amigos grã-finos que fez no bairro. O butim fica guardado para as visitas que faz à mãe, em Nova Iguaçu, para visitas eventuais ao barbeiro e para a compra de roupas de tamanho especial (“Se eu fosse mais magro, nem pra isso precisava de dinheiro!”).

Ao retomar a caminhada, lembrou-se de um detalhe logístico importante: “Precisamos descolar uma caixa de sorvete.” Puxando um dos celulares da bolsa, discou para um morador do prédio em frente. Reagiu com serenidade à falta de resposta. “A ansiedade não traz comida”, filosofou. “Daqui a alguns minutos a solução vai aparecer.”

E não deu outra. Logo passou na calçada uma adolescente de iPhone na mão, a quem Bola cumprimentou e pediu: “Sua mãe ou irmã estão em casa? Pode pedir para elas descerem uma caixinha de sorvete para mim?” Em menos de dez minutos, o porteiro espremia a embalagem vazia por entre as grades. Bola estampou na cara o sorriso dos poderosos.

“Vitor! Márcio!”, gritou ele ao chegar enfim à janela da cozinha do Olympe, que dá para a calçada. “O que tem de bom por aí hoje?” Do lado de dentro do restaurante, os cozinheiros acenaram com a cabeça enquanto faziam fila para garantir seu próprio jantar. Bola decidiu aguardar no banco de madeira que, horas mais tarde, seria ocupado pelos clientes que costumam fazer fila por uma mesa.



pesar da receptividade que encontra no Olympe, Bola gosta de variar e conhece a fundo as opções gastronômicas do Jardim Botânico. Seu roteiro predileto inclui o restaurante Frontera, do qual recomenda a cozinha japonesa (“É a melhor da região”). Também são dignos de nota o pastel de forno de palmito da padaria Le Pain du Lapin, na mesma rua, e o pão de queijo recheado com ricota da Pin Pin Sucos, logo em frente.

“Só não comi mesmo no Mr. Lam, do Eike [Batista]”, admitiu Bola, enquanto voltava à janela do Olympe para entender por que tanta demora (já fazia quinze minutos que ele aguardava). “Me disseram que eles fazem lá um pato com não sei o quê que segue umas tradições meio estranhas”, disse, fazendo cara feia. “Coisas da China. Eu passo”, desdenhou.

Foi interrompido por um jovem chef uniformizado que chegou trazendo o pote de sorvete repleto de comida. Bola estendeu-lhe a mão e, sem abrir para conferir o conteúdo, partiu o mais rápido que pôde rumo ao posto de gasolina. Precisava de talheres de plástico – ele prefere não andar com garfo e faca na bolsa para não ser acusado de portar armas brancas.

Abriu o pote afoito e apaziguou-se diante da visão do arroz branco e de uma carne acebolada que, de tão macia, dispensava faca. “Sente só o cheirinho”, observou, a gula gravada no rosto. “Não vou conseguir largar o Claude nunca!”


24 de junho de 2015
Laís Coelho

ZIZEK, O MOISÉS DA DIALÉTICA






Vino puro, cazzo duro!


Como se pronuncia Zizek? "Não se preocupe, meu nome é pronunciado errado universalmente", ele respondeu. "Fico tanto tempo sem ouvir meu nome de verdade que, quando o escuto, acho que é um policial esloveno querendo me prender." Numa tarde calorenta de outubro, o filósofo esloveno Slavoj Zizek estava no saguão de um hotel a três quadras da praia de Copacabana. Com 59 anos, atarracado, grisalho, barbado e cabeludo, parecia um urso cinzento.

Um afável urso meia-oito, de jeans puído e camisa amarfanhada, que quando falava (e ele não parou de falar nem por cinco segundos) gesticulava um dos braços com frenesi, enquanto o outro permanecia imóvel ao longo do corpo. A cada dez minutos, a tese virava antítese, e vice-versa: o braço que estivera em ação descansava, e o outro passava a se mover descoordenadamente.

"Está bom, está bom: é Jíjék", sinte-tizou. "Aqueles dois vêzinhos em cima dos zês viram j e fazem o acento cair na vogal seguinte. Fico ridículo com os vê-zinhos: pareço Moisés descendo do Monte Sinai com as Tábuas da Lei. Ou um chifrudo, um corno. É bom eu voltar rápido para Buenos Aires!"

Zizek mora em Liubliana, a capital da pequenina Eslovênia - república centro-européia menor e com menos gente que Alagoas - onde vivem seus dois filhos. E mora também em Buenos Aires, com a segunda mulher, uma jovem manequim de lingerie que, como o marido, é lacaniana heterodoxa. Entre uma casa e outra, ele faz palestras em universidades prestigiosas de todo o mundo, nas quais lota auditórios ao difundir a boa-nova do marxismo.

A sugestão de ir tomar um café perto da praia o deixou horrorizado. Como observou, suava como uma vaca, e tinha que tomar uma chuveirada antes de sua conferência, à noite. Ele esteve no Brasil para fazer palestras em São Paulo e Salvador, além do Rio, e lançar A Visão em Paralaxe, publicado pela Boitempo, livro que dedicou à esposa, uma sílfide de parar o trânsito - Para Analia, el axioma de mi vida.

O filósofo pediu uma Coca-Cola e comentou que o velho clichê sobre o Brasil é verdadeiro: "De fato, os pobres e milionários, os brancos e os negros estão todos misturados nas ruas. Sei que isso não muda a vida dos pobres, mas é importante ser confrontado com a miséria." Botou um fecho de ouro no raciocínio com um aforismo que atribuiu a Kierkegaard - "Se os pobres não fizessem barulho, ninguém saberia que sofrem, exceto eles mesmos" - e começou a criticar seus colegas acadêmicos.

"Conheço dezenas de professores universitários radicais, marxistas puros", disse. "Porque é muito fácil fazer críticas abstratas ao capitalismo e passar a vida sem dizer um ai contra o reacionário que chefia o departamento de filosofia." E como Zizek faz para escapar da inocuidade da crítica acadêmica? Fazendo política?

"Não necessariamente", ele respondeu. "Não me meto nesses fóruns, nesses piqueniques new ageonde há de tudo, principalmente regressão." Ao ser lembrado que, num artigo recente, defendeu a política de Hugo Chávez, Zizek, que não é muito de nuances (prefere paradoxos como: "Sou a favor do fim da pena de morte, mas só depois de fuzilarmos Bernard-Henri Lévy. Faço questão de participar do pelotão de fuzilamento."), fez uma nuance:

"Defendi que Chávez incentivava algum tipo de auto-organização nas favelas venezuelanas e, portanto, de discussão política. Isso é positivo, porque os governos de esquerda não fazem política, eles administram a situação social. A política virou café descafeinado. Assim como tiraram o café do café, tiraram a política da política, e ficou só a administração rala."

Como acontece com freqüência, Zizek tomou distância em relação ao que acabara de falar: "Chávez não passa de um populista afogado em petróleo, mais um caudilho latino-americano. E de caudilho já temos, ou tínhamos, Fidel. Nada melhor, para deixar de ter ilusões de esquerda, do que ir a Cuba."

Deu outra volta e assestou suas baterias dialéticas contra o presidente brasileiro: "Lula é ainda pior do que Chávez. Se o Brasil descobriu petróleo, se o governo tem um partido com base popular, se o país tem sindicatos organizados, por que não promove a politização e lidera o avanço sobre a propriedade privada?"

Perguntado se haveria um político vivo que admira, nem parou para pensar: "Jean-Bertrand Aristide. Num país paupérrimo como o Haiti, ele foi eleito duas vezes contra a vontade da burguesia, e foi derrubado duas vezes porque não traiu os miseráveis e os trabalhadores, não se adaptou à classe dominante. Bem ao contrário do PT, que mandou o exército brasileiro a Porto Príncipe para defender interesses americanos e franceses."

E a China, o que ele acha? "É uma prova de que o marxismo está vivo", ele disse. "Todo aquele blablablá de que o proletariado se aburguesara era apenas blablablá. O proletariado americano e europeu está hoje na China." Dando um risinho, não resistiu e avançou sobre os maoístas: "Dá para constatar hoje que a Revolução Cultural, dirigida pelo camarada Mao, foi um movimento para restabelecer o capitalismo na China."

Como assim? "Meu amigo Alain Badiou quase rompeu comigo, apesar da nossa admiração por Wagner, quando lhe disse isso. Mas é verdade: a Revolução Cultural foi um poderoso golpe nas tradições milenares chinesas, nos seus resquícios medievais, e abriu caminho para o florescimento da burguesia. Funciona um pouco como o 'capitalismo de choque' imaginado por Naomi Klein: o Katrina, a invasão do Iraque, as catástrofes naturais e políticas são boas para destruir a velha ordem, inclusive fisicamente, e expandir o capitalismo."

À la Contigo (ou Caros Amigos, ou Trip), foi perguntado qual conselho daria a um jovem revolucionário. "Que leia Marx!", entusiasmou-se Zizek. "Leia a 11ª Tese sobre Feuerbach, aquela que diz que os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, quando devemos transformá-lo. Mas leia ao contrário. Devemos parar de querer mudar o mundo às cegas, para interpretá-lo, saber o que ele é."

E quem seria capaz de formular essa nova síntese revolucionária? Um partido? "Acho difícil, porque a forma do partido revolucionário, a forma bolchevique, tem pouca chance de vingar", respondeu sucintamente, o que lhe é raro, e aguardou a próxima pergunta. Teria então de ser um filósofo, necessariamente um hegeliano, por que não.? Zizek ficou na expectativa, esperando a provocação, ou seja, que seu nome fosse pronunciado. Mas o nome pronunciado foi o de um hegeliano de direita: Francis Fukuyama.

"Não, Fukuyama não!", respondeu, legitimamente chateado. "Mas entendo o raciocínio. Todo mundo goza o fim da história do Fukuyama. Mas todos agem como se não houvesse alternativa à democracia parlamentar e ao liberalismo, mesmo nesses tempos de crise financeira. Vou mais além. Nunca, na história da humanidade, houve tanta gente comendo bem, morando bem e estudando bem, num ambiente laico, quanto o último meio século, na Europa e na América do Norte - mas à custa da exploração de bilhões de outras pessoas. É preciso levar isso em conta."

Chegara a hora da chuveirada pré-palestra. Slavoj Zizek perguntou em nome de quem deveria fazer a dedicatória em A Visão em Paralaxe. "Ah, é um sobrenome ambíguo", constatou, e logo perguntou: "Da nobreza francesa ou do campesinato italiano?" Comemorou a resposta como um vero lacaniano: "Buono! Vino puro, cazzo duro!"


24 de junho de 2014
Mario Sergio Conti