domingo, 14 de junho de 2015

A MORTE E O OLHAR



Um ensaio sobre o efêmero e a observação do outro
Espero um voo no Aeroporto de Newark. Houve um tempo em que qualquer canto dos aeroportos era um lugar bom para ler, ou então relaxar, esvaziar-se, não ser ninguém em particular – e nesse sentido ser, mais especificamente, você mesmo. Hoje há aparelhos de tevê por toda parte, posicionados de tal maneira que, quando consigo escapar do som do primeiro, já ouço o seguinte, e as notícias da mais recente atrocidade ou do último escândalo do governo me seguem de um ponto a outro, com todo o poder e a insistência de que banalidades amplificadas se revestem atualmente. Nem mesmo bares e restaurantes oferecem refúgio, embora neles em geral a conversa gire em torno de esportes ou da mais nova e malcomportada banda de garotos.
Nesse momento, porém, a atmosfera está um pouco diferente, porque agora a morte nos atrai. Ou melhor: a vida após a morte, que já há algum tempo se tornou assunto de domínio público – um medo momentâneo, seguido de uma luz branca da qual, vindo diretamente da direção de elenco, surge um porteiro bondoso para dar as boas-vindas aos recém-falecidos. A existência dessa antecâmara do além é uma crença compartilhada por milhões, nos quais possivelmente se incluem os 86% da população norte-americana que afirmaram ao programa do Larry King acreditar em extraterrestres – e, dessa parcela, um expressivo número de sujeitos atribui aos extraterrestres as mesmas capacidades sobrenaturais de Lúcifer e dos anjos caídos. O testemunho de hoje não vai tão longe. Na verdade, é coisa bem rotineira. Interessante é a dimensão humana.
Ao que parece, a entrevistada – cuja voz revela ser uma mulher de meia-idade, jovial, proveniente do Meio-Oeste – morreu há dois anos no pronto-socorro de seu bairro. De acordo com os médicos, diz, ela esteve “clinicamente morta” por sete minutos. Agora, em sua mente, ela visualiza a equipe do pronto-socorro em ação. Enfermeiras e médicos atarantados, às voltas com o corpo que ela acaba de deixar, pedem alguma coisa aos gritos, exatamente como na tevê. Ela se admira com todo aquele rebuliço e toda aquela urgência, uma vez que se sente muito calma e nem um pouco assustada.
Então vem a luz, e a mulher avança rumo à claridade, para longe de todo o caos deste mundo. Por um breve instante ela se pergunta por que tudo é tão fácil, por que não sente nenhum pesar, se tem tudo para querer viver: um bom marido, um emprego que a faz feliz, filhos maravilhosos, a fórmula de sempre. Mas sua hesitação não dura, e logo ela é tragada, a luz que brilha a seu redor parece menos um deus que uma nuvem, uma nuvem carregada de toda a memória, de todos os dados. Aquela esposa e mãe quer ir, quer deixar tudo para trás, sua antiga vida desaparecendo aprazivelmente na distância, um sentimento de paz arrebatador inundando-lhe o espírito, até que alguém ou alguma coisa no interior daquela luz sagrada e misericordiosa a informa de que ela precisa voltar, que sua hora não chegou. Ela tem chão pela frente.
Assim, ela retorna ao pronto-socorro, onde uma voz ainda grita por alguma coisa e a luz da alma se acinzenta. A mulher volta, pois, e, segundo seu relato, o pesar por aquilo que perdeu é palpável. Eu me pergunto o que os filhos dela acham disso tudo, ou o que pensa o marido ao levá-la de carro para o trabalho. “Era algo maior”, ela diz, “muito maior” (ou coisa semelhante), e então para de falar – só que agora já sentimos em sua voz o pesar não apenas pelo outro mundo perdido, mas também pelo fato de sua história ter chegado ao fim. Como numa espécie de Magnificat moderno, sua alma indigna havia sido, por um momento, escolhida e privilegiada, mas, tão ou mais importante que isso, ela havia sido selecionada pela televisão.
Sua história fora sancionada, sua única experiência digna de relato fora registrada para a posteridade do YouTube, tendo recebido, enfim, o aval de uma autoridade em que sabemos não poder confiar, mas na qual acreditamos assim mesmo, porque ela nos conta aquelas histórias simples e incontestes que, mesmo quando trágicas ou ameaçadoras, estão em consonância com a narrativa que esperávamos. Valendo-se de tal expediente, a televisão toma posse não apenas de nossa vida, mas também da nossa vida após a morte. As histórias de Lázaro que contamos e recontamos, extasiados de admiração e alegria, são roteiros imaculados, já ensaiados milhares de vezes ao vivo. Quem pode dizer se histórias como essas nos ocorreriam, caso não tivéssemos sido adestrados pela tevê?

Alguns anos atrás conheci o fotógrafo Richard Avedon, quando ele esteve num bar de Glasgow para retratar um grupo de escritores escoceses. Por acaso, eu tinha acabado de ver sua exposição retrospectiva, Evidence, na National Portrait Gallery, e ficara quase obcecado com as fotos que Avedon fizera de seu pai, Jacob, ao longo de alguns anos. A série culminava num conjunto profundamente comovente, no qual o velho homem, antes vestido de modo formal, com paletó e gravata, agora aparecia com um avental hospitalar. Mais tarde, Avedon escreveu:
De início, ele apenas concordou em me deixar fotografá-lo, mas acho que, depois de algum tempo, começou a querer que eu o fizesse. Passou a contar com aquilo tanto quanto eu, porque era um modo de nos forçarmos um ao outro a reconhecer o que éramos. Eu o fotografei muitas vezes durante os últimos anos de sua vida, mas nunca olhei de fato para as fotos até depois de sua morte. Agora, fora do contexto daqueles momentos, as fotografias parecem completamente independentes da experiência que foi fazê-las. Existem por si sós. Tudo que acontecia entre mim e meu pai era importante para nós, mas não importa para as fotos. O que há nelas é algo contido em si mesmo e, de alguma estranha maneira, independente de nós dois.
Naquele dia, porém, quando perguntei a Avedon sobre essas últimas imagens, ele me contou uma história elegante e autoexplicativa. Contou-me que estivera fora, trabalhando na Suíça, e que, sabendo da iminência da morte do pai, telefonava para casa todo dia, para perguntar sobre seu estado. Por ocasião de uma dessas ligações, uma enfermeira lhe disse que não se preocupasse, que o pai estava determinado a aguentar até a volta dele, porque sabia que ainda havia uma última foto a tirar. E, de fato, quando Avedon regressou aos Estados Unidos, seu pai continuava vivo, pronto, por assim dizer, para aquele close final. Com certeza o fotógrafo já havia contado o episódio antes; a narrativa era bem elaborada e nada superficial, e evidentemente ele apreciou o efeito que provocou em mim, um completo estranho. Mas acredito que as coisas tenham ocorrido exatamente daquele jeito. Por dias, aquele pacto de pai e filho diante da morte não me saiu da cabeça, fazendo-me não tanto desejar, mas antes imaginar como teria sido se meus pais e eu tivéssemos encarado de forma semelhante a mortalidade deles e, chegada a hora, nos despedido de maneira tão delicada.
Contudo, ainda que a série de fotos de Avedon seja extraordinária, o retrato fotográfico possui a limitação imposta pelo momento único, um momento no qual o objeto tem consciência de estar sendo observado. Refletindo um pouco mais sobre a atitude do pai em relação à série, Avedon destaca:
Um retrato fotográfico é uma imagem de alguém que sabe estar sendo fotografado, e o que esse alguém faz com esse conhecimento é parte da fotografia na mesma medida da roupa que veste ou seu aspecto geral. Ele está implicado no que se passa e tem certo poder real sobre o resultado. Lisette Model me disse sentir que aquelas fotografias de meu pai eram “performances”, e concordo com ela. Todos nós atuamos. É o que fazemos uns para os outros o tempo todo, seja de forma deliberada ou não. É um modo que temos de nos apresentar, na esperança de sermos reconhecidos como aquilo que gostaríamos de ser. Confio em performances.

Nos instantâneos familiares, porém, o que muito frequentemente transparece é aquele constrangimento doloroso apenas por se estar sendo fotografado: o sujeito não deseja atuar, ou não sabe fazê-lo, e assim desaparece diante da lente, paralisado pelo fato de o estarem observando sem que ele tenha o que mostrar. Meus pais não gostavam de ser observados, quaisquer que fossem as circunstâncias, com ou sem a presença de uma câmera. Minha mãe, em particular, ficava aflita quando a gente olhava fixamente para ela (e, por extensão, para qualquer pessoa).
Passados muitos anos, acho que essa agonia era provocada por uma sensação de se sentir devassada quando observada, e isso porque ela não tinha como ocultar seu próprio sentimento de inadequação e, portanto, sua mortalidade transparente – ou não sabia fazê-lo, como julgava que outras pessoas, mais bem-sucedidas, talvez o soubessem. Esse era o motivo daquele poderoso interdito que pesava sobre encarar os outros: o olhar fixo lembrava, quando não confirmava, a mortalidade do observado. É por essa razão que não se pode encarar o rei: se certo número de súditos o olha, seu poder se dissolve.
Tendo crescido nesse mundo elusivo, sem olhos – um mundo em que olhar fixamente, até mesmo por um único milissegundo além da conta, equivaleria a uma agressão –, tornei-me incapaz de encarar qualquer pessoa de algum modo que fosse significativo, ou seja, de maneira inquisitiva ou perscrutadora. Durante anos, ao que tudo indica, não vi ninguém (ou, se vi, foi por meio de um olhar furtivo, uma olhadela roubada da mesma maneira que a câmera rouba a alma), até que topei com certo tipo de cinema no qual o olhar demorado era, em si, parte inerente da narrativa.
Sentado no Arts Cinema de Cambridge, trajando minhas ordinárias roupas do Exército e da Marinha – estudante pobre que, muitas vezes, trocava a refeição por um bom filme –, aprendi a apreciar a liberdade de fitar rostos humanos, vê-los passar por uma série de emoções diferentes ou mergulhar na autocontemplação, no tédio ou mesmo naquela bela ausência em que a alma parece emergir rumo à luz corriqueira do dia, como um animal que vai brincar num terreno que julgou seguro. Isso foi o que a época áurea do cinema (sobretudo europeu) significou para mim, mais do que qualquer outra coisa: ela permitiu que meus olhos se detivessem no rosto de outra pessoa que era, ao mesmo tempo, um ser humano real e uma ilusão. Até então, esse olhar era proibido.
Foi apenas quando os filmes de arte em preto e branco chegaram – a câmera parada em Garbo ou no rosto de Marcello Morante na abertura de O Evangelho Segundo São Mateus, de Pasolini –, e, mais tarde, com o início da televisão, que pudemos olhar impunemente para um rosto e suas alterações de expressão, como o de Morante nas duas cenas iniciais do Evangelho, quando ele encara Maria, inexplicavelmente grávida, e seu semblante se altera, indo da dúvida e da decepção à angústia e, por fim, à aceitação estoica e compassiva, depois da visão do anjo.
Andy Warhol, nos cerca de 500 Screen Tests que fez entre 1964 e 1966, reconheceu o poder dessa forma de olhar: “Eu só queria encontrar pessoas legais, deixar que fossem elas mesmas, que falassem o que costumavam falar, e eu as filmaria por determinado tempo. Esse seria o filme”, disse ele. Os “testes” – que incluíram gente como John Ashbery, Lou Reed, Dennis Hopper e Susan Sontag – foram registrados em rolos de 30 metros de filme preto e branco, a 24 quadros por segundo; depois, projetados quase em câmera lenta, à razão de 16 quadros por segundo. Os resultados variam bastante.
Lou Reed, que havia estudado teatro, se vale de uma garrafa de Coca-Cola como acessório e usa óculos escuros, de modo que não vemos seus olhos; a cantora Nico posa, olha para uma revista, e se entedia. Mas, no teste mais cruamente íntimo e fascinante, Ann Buchanan, ex-mulher do poeta beat Charles Plymell, por um minuto ou mais fita a câmera sem piscar, até que começa a chorar, as lágrimas formando-se pouco a pouco, e depois escorrendo lentamente pela face. Nesse momento, continuar olhando para o rosto daquela mulher transforma-se numa experiência inquietante, mas estranhamente bela. Esse filme breve revela a graça sem palavras de um indivíduo, e o faz de uma maneira que não requer nenhuma outra informação externa, nenhum conhecimento e nenhum contexto.

A televisão também se valeu do poder desse olhar monocromático. Boa parte da beleza do celebrado drama de Ken Loach Cathy Come Home, de 1966, é tão desprovida de palavras quanto o melhor de Pasolini ou o teste de Ann Buchanan. Desde o primeiro quadro, a câmera isola o rosto de Carol White do fluxo do tráfego, enquanto ela pega uma carona para Londres; depois retorna a essa cena nos créditos finais, quando, sozinha e sem ter onde morar, tendo perdido os filhos, nós a vemos de pé numa rua escura, o tráfego fluindo de novo. Tanto quanto as revelações factuais acerca das injustiças que o “sistema” comete com os sem-teto – ou ainda mais que elas –, é o olhar da câmera para o rosto de Carol White que desafia o espectador.
“Preto e branco são as cores da fotografia”, Robert Frank observou certa vez. “Para mim, elas simbolizam as duas possibilidades, esperança e desespero, a que a humanidade estará para sempre sujeita. A maioria de minhas fotos é de pessoas; elas são vistas com simplicidade, como se através dos olhos do homem da rua. Há uma coisa que a fotografia precisa conter: a humanidade do momento.” Essa qualidade com certeza está presente na fotografia de Frank – mas o aspecto performático ao qual Avedon alude está lá também, como há de estar em qualquer retrato estático. Num filme, todavia, sobretudo quando se tem uma narrativa exterior, com personagens que os atores podem dizer a si mesmos que estão representando, esse elemento performático sofre um desvio.
A atriz que representa um papel nos permite ver seu próprio rosto, nos permite vê-la na condição de uma atriz representando aquele papel. Em Cathy Come Home, é doloroso ver a jovem mulher, alegre e otimista, que no começo do filme pega uma carona para Londres, tornar-se cada vez mais angustiada. Mas quando a deixamos naquela rua escura, não é a Cathy do roteiro que nos aflige, e sim Carol White, uma pessoa para a qual ficamos olhando por um bom tempo, enquanto ela se ocupava de representar seu papel. É com ela que, por uma aliança tácita e autônoma, nos preocupamos nesse momento, e de um modo que raras vezes nos preocupamos com nossos parentes mais próximos.
Antes do cinema e da televisão, minhas primeiras experiências em matéria de olhar para rostos – observando, digamos, minha mãe cochilar numa poltrona – eram marcadas pela culpa e pelo medo, bem como pela curiosa noção da mortalidade da pessoa contemplada. Ao olhar para uma pessoa corremos o risco de devassá-la e, portanto, de vê-la como mortal, um ser imperfeito, sujeito a perecer – daí resultando o intolerável sentimento de compaixão.
Foi por essa razão que não quis ver o rosto da mulher na tela de tevê do aeroporto: ouvindo a voz dela – uma voz musical, com um leve toque daquela bondade típica do Meio-Oeste –, eu podia imaginá-la como membro de alguma outra tribo, mas observar seu rosto (em cores, é claro) teria sido outra história. Não quis vê-lo, e não porque a narrativa sobre a vida após a morte me irritasse, nem mesmo porque me embaraçasse a traição implícita que a narradora cometia em relação a sua vida cotidiana. Não. Eu não quis olhar para ela porque imaginei que poderia enxergar algo familiar em seu rosto – familiar no sentido antigo da palavra, de espírito familiar, à maneira que um gato de bruxa ou um amante secreto já foram, um dia, muito próximos –, o que, por sua vez, significa algo que, para salvaguardar seu poder, deveria permanecer oculto aos olhos de todos.
Da mesma forma, a história de Avedon me afetou bastante, mas só mais tarde comecei a conjecturar o que o pai haveria de ter feito enquanto esperava a volta do filho famoso para a última sessão de fotos. Teria pensado numa vida após a morte? Imaginara que aquele seu legado não era uma obra de arte, nem mesmo um monumento faraônico a sua própria pessoa, e sim uma homenagem comemorativa aos tempos que vivera, uma homenagem que incluía todos aqueles que haviam vivido aqueles tempos com ele, todas as tribos, todos os amores, todos os lugares, refletidos num rosto moribundo?
Talvez seja fantasioso, mas, ao olhar mais uma vez aquelas fotos de Jacob Israel- Avedon do início da década de 70, vejo na performance de Jacob um feito artístico que impressiona ainda mais que as fotografias em si. Na verdade, o que vejo é exatamente o contrário do orgulho faraônico; vejo a fantasia banal da caminhada até a luz, rumo ao abraço dos entes queridos, ou de Jesus, ou do velho professor de arte – uma experiência que, como já disse, se parece muito com entrar num estúdio de tevê para um episódio de Esta é a Sua Vida. Em suma, o que vejo no rosto de Jacob Avedon é a certeza do que esse rosto não é: não é a minha vida, não pertence a mim. É compartilhada e, quando eu paro, ela segue adiante, até que eu – ou alguma coisa como eu – surja de novo, curioso, envergonhado e disposto a olhar fixamente.

Meus pais nunca souberam olhar fixamente, menos ainda depois que foram obrigados a se mudar para longe de tudo que conheciam; então, quando o estranhamento cobrou seu preço, morrerem rodeados de estranhos, de pessoas das quais teriam desejado gostar mais, mas que não eram sangue de seu sangue. Não eram parentes. Mas o que agora me parece ainda pior é que foram obrigados a morrer em meio às cores erradas.
Ainda que Corby tivesse sido conhecida como “a pequena Escócia”, essa nova cidade não tinha nada da atmosfera profundamente granulada das cidades mineiras de Fife, de onde eles vinham. Era moderna à maneira inflamada e bem o cor-de-rosa que os planejadores urbanos privilegiavam na década de 60; faltavam-lhe sombras mais profundas e a severidade chuvosa a que meus pais estavam acostumados. Mergulhadas em cores sintéticas, as casas novas se deterioravam na tinta brilhante descascada e na imitação de carpintaria, os cômodos atulhados de tecidos e móveis berrantes pelos quais aqueles exilados econômicos agora podiam pagar. Aconteceu também de essa mudança para Corby coincidir com o aparecimento (algo precoce) de certa hipersensibilidade em minha alma pré-pubescente, e me lembro de como eu era infeliz vivendo em meio àquela cafonice, e isso num momento em que se ensina às crianças que toda cor, toda combinação de cores, significa alguma coisa.
As bandeiras, por exemplo, eram emblemas da terra e do sangue, e a luz de algum Deus único e verdadeiro; emblemas da terra natal, da terra-mãe, do povo como clã, consciente de si mesmo, exclusivo, violento. O verde era irlandês, católico, celta; o azul era o inimigo. As vestimentas do padre seguiam um código de cores conforme aos humores de Deus: vermelho para Pentecostes ou para os dias dos mártires; roxo para a época do Advento. Meus pais pertenciam a esse mundo e pareciam querer que também eu me integrasse a ele, por razões que nunca consegui compreender – porque, na verdade, não tinha nada a ver conosco.
Nos dias em que vestíamos o vermelho da papoula, em memória de nossos mortos gloriosos, eu observava as matronas envergonhadas e os tios com cicatrizes da guerra que se reuniam do lado de fora da igreja, e me punha a imaginar o que de fato sentiam, se alguém acreditava de verdade em glória ou sacrifício. Na missa, a Virgem erguia-se em seu nicho azul e dourado, e nosso Deus-Homem me fitava com seu Sagrado Coração pregado no manto, as mãos estigmatizadas erguidas para mostrar a profundidade sangrenta de seus ferimentos – e, mais do que qualquer coisa, eu queria viver no preto e branco dos filmes antigos.
Seria um ato de misericórdia que às pessoas à beira da morte fosse facultado habitar por algum tempo aquela zona em preto e branco, antes de escorregar para sempre para dentro dela, mas esse não seria o caso de meus pais. Minha mãe foi diagnosticada com um câncer inoperável aos 47 anos de idade e passou meses deitada, sob uma colcha brilhante num dos verões mais quentes de sua vida, cercada de rosas e de cartões de melhoras. Quase todo dia colegas de trabalho e vizinhos iam visitá-la, e eu a ajudava a descer até a grande poltrona junto à lareira, onde ela recebia as visitas num roupão rosa e verde. O tecido era sintético e, para mim, um tanto escorregadio, quando, quase no fim, eu precisava carregá-la.
À época, eu era jovem e ignorante demais para compreender que a conversa fiada que preenchia aquelas ocasiões era mais que mecânica – que, para minha mãe e seus amigos, ela significava muitíssimo –, mas percebia com muita clareza que todas aquelas pessoas evitavam se olhar no rosto por muito tempo. Minha mãe continuou daquele jeito por vários meses, durante os quais fiquei em casa para cuidar dela. Então, cerca de uma semana antes de ela morrer, duas tias chegaram da Escócia, e fui excluído do quarto da enferma. Ela não queria que eu a visse naquele estado – essa era a explicação. Era melhor guardar dela a lembrança de como havia sido em vida. No melhor de sua forma. Mas, no fundo, eu nunca a havia visto no melhor de sua forma. Nós jamais havíamos olhado de fato um para o outro. Tínhamos muita vergonha.

A última vez que vi meu pai foi numa enfermaria de hospital, depois de seu terceiro ataque cardíaco. Algumas horas antes que eu, por fim, conseguisse chegar lá (estivera viajando), o homem no leito vizinho morreu – uma equipe médica de emergência cuidou dele, sua alma supostamente alçando-se em direção a uma luz leitosa, para nunca mais voltar. Eu sabia que o grande medo de meu pai era morrer entre estranhos, ao lado de alguém que não conhecia e que nada significava para ele, um estranho fitando seu rosto ou apalpando seu pescoço para afrouxar o colarinho.
Sabia disso porque um de seus amigos morrera assim, num ônibus na hora do rush. Uma hora depois de receber a notícia, meu pai explodiu num de seus acessos de raiva contida do mundo e, deliberada e sistematicamente, quebrou uma a uma as plaquinhas de vidro do tamanho de um punho que adornavam um ponto de ônibus perto da casa de minha tia. Agora, ante a possibilidade (em sua cabeça, pelo menos) de passar por algo semelhante, implorava que eu convencesse os médicos a mandá-lo para casa – em seu desespero, quase me olhava nos olhos ao fazer o pedido.
Quase, embora não de todo. Na verdade, ele sobreviveu ao ataque cardíaco, mas morreu poucos meses depois em seu clube, sobre um carpete de gosto duvidoso, a meio caminho entre o bar e as máquinas automáticas de cigarros. Por um momento, disseram-me, ninguém notou que ele se fora.
Muito antes dessa derradeira evasão, num verão em que eu ainda vestia calça militar de segunda mão puída nos joelhos, ao capinar o jardim de minha mãe arranquei do barro uma pequena lata enferrujada e a abri. Dentro dela havia um montinho de osso e penas; se aquilo um dia tivera cor, ela havia desaparecido, não fosse uma mancha de azul-anil e um último fio carmesim. De pé no sol quente, eu fitava meu achado com um misto de admiração e tristeza.
Um dia aquilo tivera vida, mescla de pulsação e tremor, como os pintarroxos no viveiro doméstico de um primo meu, passarinhos que apanhávamos em armadilhas feitas de caixote e recolhíamos como preciosidades do campo na periferia de nossa cidade mineira. Agora, a despeito do que tivesse sido, não passava de um punhadinho de penugem e osso ressecado, tão sem vida como o pó e os fósforos usados que, em dia de faxina, minha mãe amontoava com a vassoura no cantinho onde lavava a louça. E, no entanto, por mais insubstancial que parecesse, nada que eu jamais havia possuído ou desejado tinha tanta importância para mim.
Teria dado qualquer coisa para trazer aquele corpo de volta à vida, pelo menos para ver o que era. Um pássaro nativo ou um passarinho de estimação, como aqueles tentilhões de cores vivas que eu havia visto na loja de animais, logo depois do cinema? Quem o enterrara ali? Um adulto? Uma criança? Tinha ouvido que os inquilinos anteriores da nossa casa eram PDs – era o que Jim Black, da casa pré-fabricada vizinha, tinha dito a minha mãe –, e, quando perguntei o que aquilo significava, fiquei tão intrigado com a resposta que carreguei aquelas palavras comigo durante dias. PDs, pessoas deslocadas.
Fiquei fascinado com aquela ideia – deslocadas como crianças que se perdem na terra das fadas, ou como cavaleiros andantes que se afastaram da terra natal e se veem sem seu soberano, para além da lei e da proteção do poder real. Pessoas deslocadas. Talvez uma dessas pessoas tivesse enterrado aquela latinha, murmurando uma breve oração ou uma bênção em polonês, digamos, ou lituano, antes de fechar a cova e ir-se embora, uma vez cumprido o arremedo de ritual fúnebre.

Soa tão trivial, quase mecânico – mas essa, penso, é a verdadeira vida após a morte, ou pelo menos uma vida após a morte que vale a pena contemplar: a qualidade duradoura do gesto de ternura, a celebração de qualquer traço remanescente de cor ou graça. Uma lembrança dos versos de Walt Whitman:
Tudo segue e se transforma, nada perece,
E morrer não é como parece, é muito mais agradável.
Os sentimentos nesses versos podem ser deflagrados por uma fotografia ou um arremedo de exéquias num quintal chuvoso, mas o que os representa melhor é o olhar casual e rotineiro que perdura o bastante para discernir quem vê e quem é visto, livrando-os da mortalidade e deslocando os dois para um novo terreno de possibilidades. O que iremos descobrir pode soar banal: um murmúrio de preces vespertinas para além das luzes fluorescentes de uma sala de espera de hospital, uma lua cheia e brilhante refletida ao longo de quilômetros de telhados inclinados e quintais lavados com mangueira, enquanto um homem volta para casa de carro, depois de um jantar formal, o nó da gravata afrouxado e o rádio tocando uma música que, embora ele nunca tenha ouvido, acha tão bonita que mal ousa respirar.
Esse é o momento que amantes ou amigos anteveem quando trocam o primeiro olhar, e se um deles morre e o outro está em alguma outra parte – numa lavanderia, digamos, ou escolhendo a sobremesa num jantar com colegas –, se um deles deixa de existir, penso que o outro talvez perceba, seja um nada extraordinário que estabiliza o mundo, mesmo que por um único instante, como a derradeira visão de tudo antes de uma luz se apagar, ou então (sem querer impingir uma espécie de clichê da vida após a morte) um momento de descrença ao final da travessia, um momento seguido de um breve hiato, de um olhar para trás desprovido de pesar, um olhar para tudo que foi, antes da partida ou dispersão, ou antes do antarãbhava.[1]
Não me refiro aqui a uma nova vida, pelo menos não àquela consoante com as fórmulas habituais – uma reencarnação, digamos, sob a forma de cervo, ou peixe, ou um feixe de células-tronco e carma. Penso que a morte demanda, antes de mais nada, a dissolução do eu histórico, um esquecimento, a fim de tornar irrelevantes todos os dados aparentes – para que o que quer que emerja, caso emerja, seja novo, desmemoriado e desvinculado. Desvinculado, sim, e, no entanto, que de alguma maneira pareça uma realidade universal, não de todo apartada do que sabia antes, de tal modo que, mesmo que acabe olhando para fora do interior de um corpo novo, na condição de um novo eu, nela ainda persista uma fibra de tecido conjuntivo, um desejo quase, mas tão totalmente, impossível de fitar outra vez o que fitou no passado, e lamentou, e esqueceu.

[1] No budismo tibetano, o estado intermediário entre a morte e a reencarnação.
14 de junho de 2015
John Burnside

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