quarta-feira, 16 de setembro de 2015

GONÇALO M.TAVARES: "O MEU TRABALHO É ILUMINAR PALAVRAS".





Aos 43 anos, Gonçalo M.Tavares é uma das vozes mais representativas do romance português contemporâneo. Em “Matteo perdeu o emprego” (Foz, 160 pgs. R$ 34,90), ele constrói uma trama singular, na qual os personagens aparecem pela ordem alfabética, como num jogo de dominó, culminando na história de Matteo, que responde a um estranho anúncio de emprego. Ecoando elementos da literatura de Italo Calvino e Georges Pérec, Gonçalo também já foi chamado de “Kafka português”. Com livros traduzidos em mais de 30 idiomas, ele já recebeu importantes prêmio literários, como o Portugal Telecom e o Prêmio José Saramago.

“Matteo perdeu o emprego” se divide em duas partes. A primeira é um conjunto de 25 histórias curtas, em que personagens com sobrenomes judaicos – retirados de um trabalho do fotógrafo Daniel Blaufuks – vivem situações caricatas ou absurdas. Cada história se encadeia na seguinte por meio de um pormenor comum, criando uma narrativa em que cada personagem passa o testemunho à personagem seguinte. Na segunda parte, de natureza ensaística, o autor reflete sobre a parte ficcional, com o distanciamento de um leitor exterior. Nesta entrevista, Gonçalo M.Tavares fala sobre o processo de criação de “Matteo perdeu o emprego”, declara-se admirador de Clarice Lispector e afirma que seus livros são “animais muitos distintos”, como se tivessem sido escritos por diferentes autores.

- A estrutura de “Matteo perdeu o emprego” evoca um jogo de dominó, com um personagem saindo e outro entrando em cena, com seus nomes seguindo a ordem alfabética. Para você a literatura é um jogo?

GONÇALO M.TAVARES: Eu penso que há infinitas formas de escrita literária. De certa maneira a minha intenção é experimentar vários caminhos: um caminho trágico, um caminho lúdico, um caminho de escrita rápida… Todos os caminhos são possíveis, então não vejo a literatura apenas como um jogo, nem como algo muito sério. Acho que não nos devemos levar a sério, mas que devemos levar a sério o mundo. “Matteo perdeu o emprego” tem sem dúvida uma carga lúdica, como se a história fosse narrada não devido à causa e efeito de seus acontecimentos, mas sim devido aos personagens, e como se os personagens entrassem em cena não devido ao que fazem, mas à primeira letra do seu nome. O alfabeto é algo que domina, e muito, a civilização ocidental, não é apenas algo que usamos para escrever, é algo que nos organiza. Numa sala de aula, os que têm o nome começado por “A” se sentam mais à frente, por exemplo, e podemos pensar também na organização das bibliotecas… Enfim, o alfabeto é uma lógica, uma ordem que não é racional mas que de certa maneira domina todo o mundo cultural, e “Matteo perdeu o emprego” tem essa questão do tempo estabelecido pelo alfabeto.

- Fale sobre o processo de criação do livro: você se impôs uma regra e fez um planejamento meticuloso ou deixou a escrita fluir? A divisão do romance em duas partes, a segunda explicando a primeira, unindo o ficcional e o ensaístico, já estava prevista desde o início?

GONÇALO: Eu escrevo sempre com grande rapidez. O primeiro momento da escrita é muito rápido, de grande excitação, em certos momentos escrevo sem olhar para o monitor do computador, e por vezes depois percebo que as letras estão todas fora do lugar, porque só passado um tempo olho para o texto. Para mim a escrita tem vários movimentos e vários ritmos, um primeiro mais rápido e um segundo lentíssimo, que é voltar ao que escrevi e corrigir, rever. Neste caso o ponto de partida foi a história do Matteo, a ideia de que um homem desempregado está disponível para ofícios de certa maneira perversos, como é o de ser as mãos de uma mulher sem braços, que é o emprego que o Matteo que dá nome ao livro aceita, levando a um jogo de perversão entre esse homem e essa mulher. Primeiro escrevi a parte ficcional, quase como em um jogo de dominó, em que uma personagem se cruza com uma segunda, e esta segunda encontra uma terceira, e se segue a quarta personagem, como se todas estivessem ligadas por fios invisíveis, e me interessava uma visão de cima, de cada momento. Mais tarde escrevi o ensaio, porque depois de ter o texto de ficção feito, tentei refletir sobre o que escrevi, como se fosse alguém de fora refletindo sobre a ficção. Me interessa muito essa mistura de ensaio e ficção, que são dois mundos totalmente misturados. Mas o ensaio da segunda parte é também uma narrativa, não é um ensaio que conclua e dê uma interpretação final, é apenas mais uma interpretação, entre as interpretações possíveis dos leitores. Não é um ensaio que explica, ele tenta aumentar, digamos, o pensamento sobre o texto, mas também a ambiguidade do texto.

- Sua obra já foi definida como uma “cartografia da desordem humana”, e “Matteo perdeu o emprego” parece refletir uma visão pessimista e irônica da humanidade. Você concorda?

GONÇALO: Eu diria que não sou um pessimista nem um otimista puro. É preciso entender o ser humano como um bicho que tem coisas absolutamente extraordinárias e outras terríveis. Depende de para onde se virar o homem, para o belo ou o feio, para a bondade ou a maldade, e ele está sempre disponível para se virar para qualquer ponto. De certa maneira, as circunstâncias muitas vezes funcionam quase como um vento que o dirige para um lado ou para o outro. Esta visão faz com que a minha escrita seja a de alguém que entende que a história humana não é somente feita de flores, bondade e beleza, que ela é também a história da maldade em movimento. Por isso a literatura deve ter um núcleo eu não diria pessimista, mas que está sempre a lembrar que a tragédia é qualquer coisa de inerente à vida. Por outro lado, como é evidente, a questão do lúdico, do prazer, é fundamental na literatura, porque o ser humano é também um ser feito para o prazer e para o desejo.

- Sua linguagem é avessa ao sentimentalismo, e você parece não se importar com a vida interior dos personagens. A psicologia tem alguma importância na construção de suas histórias?

GONÇALO: Em “Matteo perdeu o emprego”, a linguagem realmente tenta ser direta, mas eu diria que em geral a linguagem dos meus livros tenta misturar a exatidão e a ambiguidade. O que eu tento, não sei se consigo, é ser o mais sintético possível. Se eu conseguir dizer ou transmitir uma ideia com sete palavras em vez de 20, prefiro realmente usar sete. O meu trabalho é iluminar palavras, fazer uma escrita que não tenha palavras a mais, totalmente seca. Mas isso não tem a ver com uma exatidão matemática, é uma secura completamente diferente, uma exatidão ambígua, que que leva a milhares de intepretações. Não é fácil, mas tento sempre sintetizar, diminuir, ser como uma flecha que acerta no centro, Mas dez leitores farão dez análises diferentes do que escrevo. Não é portanto como na matemática, onde dois mais dois são sempre quatro, eu espero que as frases sejam exatas mas não tenham um único resultado. O resultado que o leitor dá é apenas um dos resultados possíveis. Me interessa muito a psicologia, o que está dentro do ser humano, mas para mim o fundamental é que a emoção não seja como a da televisão, mas uma emoção que dure, transmitida ao longo do tempo. Não gosto da literatura com aquela emoção presente nos programas de televisão que entrevistam pessoas que contam seus casos trágicos de doenças etc. Vendo esses programas ficamos emocionados e se for necessário até choramos, nos sentimos comovidos, mas passados cinco minutos o mesmo programa mostra um cantor alegre, e já nos esquecemos daquele caso trágico. Esse tipo de emoção que atinge um pico muito alto rapidamente é perigosa, engana, não é empática nem humana. Não gostava que as pessoas chorassem ao lerem meus livros, mas que pudessem guardar um ano ou dois anos depois uma imagem, que ainda os comove ou perturba. Uma emoção que dure anos, e não apenas 1 minuto, de intensidade baixa mas de longa duração, é uma definição possível da emoção que me agrada.

- Você já disse temer que a atual crise econômica na Europa abra espaço para regimes totalitários. Nesse contexto, os escritores têm um papel político importante a desempenhar? Ou não se deve misturar literatura e política?

GONÇALO: Sobre política e literatura, penso que o escritor deve lembrar a importância da memória, de percebemos que não estamos a começar nada de novo, mesmo politicamente. A História nos ensina que não devemos ter a arrogância de pensar que estamos inaugurando alguma coisa, porque a História do homem é feita de muitas repetições. Nesse particular, a literatura pode ter essa função de memória, de chamar a atenção para a violência e para a potência do mal que existe no homem. Essa memória se liga ao gesto político de dizer “Atenção!”, porque ainda hoje, no século 21, qualquer coisa de terrível pode acontecer. A literatura deve interferir na política através do aumento da lucidez individual das pessoas. Pessoalmente, não me interessa uma política partidária, mas uma política no sentido de intervenção na cidade, na pólis, na forma como os homens vivem, e penso que aí a literatura é essencial, por ser o espaço da reflexão, de uma certa distância em relação aos acontecimentos e às circunstâncias do mundo. Por exemplo, entender por que a violência e a agressividade aparecem… Tudo isso são problemas políticos, e é essa política que me interessa em termos literários.

- Que relação é possível estabelecer entre “Matteo perdeu o emprego” e os textos da série “O Bairro” e “O reino”? Há uma evolução?

GONÇALO: Para mim os meus livros são completamente diferentes, costumo usar a imagem de que cada livro é uma espécie de animal, um animal distinto. “Matteo perdeu o emprego” poderia ser uma cobra, e não faz sentido dizer que uma cobra ou uma girafa é melhor do que um cão. Cada animal tem suas características, se quisermos rapidez pensamos no tigre, mas a tartaruga não é um animal pior do que o tigre. Então não vejo os livros como melhores ou piores, vejo como animais diferentes. Se queremos uma temática artística, devemos escolher um animal e não outro, um livro e não outro. Mas “Matteo perdeu o emprego” é um livro muito distimto da série dos bairros, tem a ver com um ponto de vista mais lúdico e remete para um mundo paralelo, em uma espécie de utopia ficcional. Outros livros meus atiram mais para uma escrita mais realista, enquanto “Viagem à Índia” é um livro que mistura poesia e prosa. “Matteo… “ mistura uma realidade totalmente absurda e uma segunda parte, de reflexão. O que eu sinto é que cada livro vai numa direção diferente, cada livro define um ponto, e vários livros permitem traçar uma linha. Não sei qual é esse desenho, nem o que ele está a representar, mas cada livro é um traço de um desenho, que é a obra que se vai construindo aos poucos.

- Os sobrenomes dos personagens são judaicos, espelhando o seu gosto por sobrenomes alemães presente em outros livros. Fale sobre isso.

GONÇALO: O nome de uma personagem é talvez aquilo que há de menos racional em um livro, é um pouco como dar um nome a uma criança, algo que tem a ver com ordem lógica mas também tem a ver com uma escolha instintiva. Normalmente a escolha dos nomes é muito instintiva, vem do próprio som, como se o som do nome tivesse para mim uma história lá dentro. “Matteo…” partiu de um conjunto de fotografias que eu vi de campos de judeus,e os nomes judaicos remetem para um conjunto de acontecimentos do século 20 que são quase uma paisagem invisível obscura, escondida no livro. O ensaio da segunda parte de “Matteo…” é também uma reflexão sobre essa ideia que de que as primeiras letras dos nomes são algo que traz uma energia, boa ou má, como se o nome de uma personagem não fosse apenas um conjunto de letras, mas também uma história. Quando damos um nome a uma personagem, mesmo que ela não tenha uma história, esse nome já lhe dá uma determinada energia.

- Percebo a influência de Italo Calvino e Georges Pérec em sua escrita, você concorda? Com que outros autores você dialoga?

GONÇALO: Gosto de inúmeros autores, é impossível falar de uns e não de outros. Autores de um mundo muito literário e lúdico e autores completamente distintos, de um mundo mais seco e trágico. Gosto de autores completamente opostos e inimigos, às vezes, Lembro de um debate sobre um livro de ensaios “Calvino ou Pasolini”, que basicamente era sobre se devíamos escolher a literatura de Italo Calvino, mais cerebral e literária, ou a literatura de Pasolini, mais realista. Para mim é evidente que a resposta será sempre “Calvino e Pasolini”, porque os dois me interessam mesmo sendo autores que fazem coisas completamente opostas. Gosto de juntar mundos opostos, escritas trágicas e escritas lúdicas, e cada vez mais tento avançar por caminhos que têm a ver com uma necessidade individual de escrever, sem me identificar com nenhuma escola.. Um livro meu como “Canções mexicanas” e outros como “Viagem à Índia” ou “O sr.Valéry” parecem escritor por autores diferentes. Então não me sinto especialmente próximo de nenhum autor, há centenas de autores que para mim são muito importantes.


16 de setembro de 2015
Luciano Trigo

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