sexta-feira, 10 de julho de 2015

ONZE DA NOITE É HORA DOS SOLITÁRIOS



DE SEU POSTO NA SEÇÃO DE LATICÍNIOS DO SUPERMERCADO ZONA ZUL, LOJA 9, NA PRAÇA GENERAL OSÓRIO, EM IPANEMA, FRANCISCO É UM BEM HUMORADO OBSERVADOR DAS MANHAS E HÁBITOS DE SEUS FREGUESES. EM APENAS UM MÊS E MEIO NO POSTO, JÁ FEZ VÁRIAS AMIZADES. É O SEGUNDO EMPREGO COM CARTEIRA ASSINADA DESSE RAPAZ DE 21 ANOS QUE MORA NO BECO DO BICHEIRO, NA VILA VINTÉM.


2 de agosto, QUINTA-FEIRA Às 13 e 20, saio de casa para apanhar o trem rápido, que passa às 14, e, no caminho da estação, encontro o tio de um amigo, que me dá os parabéns pela vitória do meu Botafogo. Uma figura, esse tio do meu amigo. Eu não entendia por que ele passava o dia inteiro na rua, para cima e para baixo, com umas gaiolas com passarinho. Aí conheci a mulher dele e entendi. Ela é muito feia.

Às vezes, consigo pular o muro da estação e economizo uma passagem. Não é muito, mas são 2 reais. Nos últimos dias não tem dado, porque o pessoal da ferrovia passou graxa em cima do muro e já vi um cara que pulou e ficou todo lambuzado. Recebo vale-transporte, mas, de qualquer maneira, uma parte vem descontada do meu salário, que é uma miséria.

Quando entro no trem, já fico esperando alguém com alguma história triste, uma doença. Trem é lugar desses papos. Todo dia tem um. Hoje apareceu um homem que precisava de dinheiro para comprar uma prótese de olho. Ele pedia o dinheiro e abria o olho para mostrar. Sempre que o trem passa pela estação Maracanã, fico olhando o prédio da Uerj. Um dia eu chego lá. Quero ser cirurgião ortopédico. Estou economizando para fazer o pré-vestibular. Já tenho 320 reais na gaveta perto da minha cama.
Falta pouco para o fim da viagem e estou vendo que, o tempo todo, uma gordinha não tirou os olhos de mim. Está dando muito mole, mas não adianta, tenho de trabalhar.

São 15 e 40, e chego ao trabalho de bom humor. Atendo um casal conhecido, seu Ricardo e a mulher. Ele gosta de comprar de tudo para os filhos, mas a mulher manda ele parar. "Pra quê tudo isso?", ela diz.

Acaba o meu dia de trabalho e vou pegar o ônibus para a estação do trem. Chego em casa às 2 e meia da manhã, tomo um banho e desabo na cama.

SEXTA-FEIRA Saí mais cedo de casa. Queria passar na cidade para comprar um jeans. No caminho encontrei o Morcegão. Ele sempre me pede dinheiro para jogar na máquina de azar, mas hoje não deu. A grana está contadinha. A cena do trem hoje foi um cego, acompanhado do filho, pedindo dinheiro. Não dei. Fui direto comprar a calça. Entrei na loja, mas custou muito até ser atendido. Acho que foi por causa da sacola do supermercado que eu carregava com o uniforme. A cada dois dias, ando com essa sacola para casa e para o trabalho. Calça bege e camisa azul, que são lavadas em casa. Por isso a gente ganha dois uniformes, que ainda têm dois pares de sapatos pretos. Comprei, finalmente, a calça: 42 reais. Quarenta, com um desconto de 2 reais que o cara me deu.

Na chegada ao trabalho, os três funcionários na seção estavam estressados. É muito trabalho e pouca gente para trabalhar. São três pessoas num lugar onde deveria ter cinco. O problema é que não tem espaço para cinco atrás do balcão.

A fila cresce e vou atendendo. Um cliente me fala que vai demorar, porque vai comprar muita coisa. E compra mesmo. Gastou o que daria dois meses do meu salário. Era para um café da manhã, ele disse. E a fila não pára de crescer. Uma cliente fica exaltada com a demora. Ela tem razão, mas a demora também é porque os clientes pedem tudo fatiado na hora. A cliente está cada vez mais irritada e começa a xingar a gente. Até que algumas pessoas da fila pedem para ela ir embora, se não quiser esperar.

Jantei aquela comida do refeitório. Feijão e arroz é todo dia. O resto varia: um dia tem frango, outro carne. A verdura é legal, mas a fruta da sobremesa está sempre meio passada. O suco é legal também, manga, maracujá. O duro é a caminhada. São 25 minutos de ida e outro tanto para voltar, porque eu trabalho na filial da praça General Osório, em Ipanema, e o refeitório é na avenida Nossa Senhora de Copacabana, lá no Posto 5.

Quando volto para o balcão, chega um casal brigando e entra na fila. O cara também quer brigar comigo, mas o pessoal da fila manda ele descontar a raiva em outra pessoa, porque eu estava trabalhando e não tinha feito nada para ele.

Escolhi um ônibus via Lapa para chegar ao trem. Fiz mal. Fiquei na Lapa até 1 e 20 da manhã, num engarrafamento. Eram quase 3 horas quando cheguei em casa. O céu da favela vizinha, a Fumacê, estava iluminado. Pelas balas traçantes. São os alemão, o pessoal de outra facção do tráfico que quer tomar as bocas da favela. Lá no Fumacê quem manda é o Terceiro Comando.

SÁBADO Hoje a única coisa fora do normal em casa é que vai ter almoço. Há tempos não tem, porque minha mãe anda muito cansada. Ela tem 45 anos e está grávida: aos 21 anos vou ganhar um irmãozinho. Eu queria que ele se chamasse Ítalo, mas a minha mãe prefere Rian. Vai acabar sendo esse nome, claro. O Paulo Henrique, meu outro irmão, tem 13 anos, e a Crysli tem 5.

O dia no trabalho vai ser longo. Só saio às 2 da manhã de domingo. Logo que começo a trabalhar, chega um senhor que atendo há tempos. Carlos é o nome dele, um cara nota 10. Está sempre alegre, fala com todo mundo, cumprimenta. Depois vêm uns grupos de franceses e de chilenos. Nos entendemos através de sinais. É divertido atender estrangeiros.

Anoitece sem que eu veja. Noto porque as pessoas começam a me dar "boa-noite". O movimento no Laticínios cresce como nunca vi. Uma mulher me pede informações sobre um produto, e o pessoal pensa que ela quer furar a fila. Chove reclamação. Num momento de calmaria, outra freguesa me contou que brigou muito com o marido porque ele disse que ela estava uma baleia.

Quase 3 da manhã, chego à Central do Brasil para pegar o trem. Às 4 e 40 estou em casa, abro a porta e falta luz. Dia duro.

DOMINGO Acordo com barulho de tiros por perto. Os caras estão atirando da minha rua na polícia. Depois eu soube que foi porque se negaram a pagar o arrego. Foram uns trinta minutos de tiros.
Nove e meia já estou no trem, e bastante cansado. Vai ser outro dia daqueles, de meio-dia à meia-noite atrás do balcão.

Logo chega um cliente gay e me passa um papel com números de telefone. Diz que é para eu ligar a cobrar. Não adianta eu falar que gosto de mulher. Ele vai embora dizendo que eu não sei o que perdi.
Perto das 22 horas, chega uma cliente que mora em São Paulo e vem ao Rio para cuidar do pai. Ela só gosta que eu atenda. Hoje pediu para eu estender a mão e esfregou a mão dela na minha. Disse que era para eu lembrar do perfume dela quando fosse embora. Gostei.

SEGUNDA-FEIRA Hoje é FOLGA. Vou à casa do Gilmar, meu amigo de infância. Ele também nasceu na Vila Vintém. Brigou com a mãe e o irmão, e estava juntando as roupas para ir morar na casa da irmã. Essa história do Gilmar é longa. A mãe não gosta da namorada dele, acha que ela sai com todo mundo.

Parto para a casa de outro amigo de infância, o Fernando. A mãe dele pede que eu o acorde. Fernando chegou em casa de manhã, não trabalha, só quer saber de festa. Ele já acorda contando várias mentiras, exagera tudo. Mas é gente boa. Diz que é ecologicamente correto: só consome etanol.
No meio da tarde, ajudo Gilmar a levar as roupas para a casa da irmã. Não sei o que falar para ele, fico quieto. Gilmar me conta que a mãe lhe deu hoje um tapa na cara. Ele é sangue bom, coração maior que ele. Esses, e mais o Caolho, são os amigos de infância que me restam. Rafael, Baiano, Rogério, Daniel, acho que uns nove amigos que eu tinha desde pequeno, se meteram com o tráfico e morreram.

Passo em casa e minha avó fala que o primo Dejan, que trabalha na construção civil em São Paulo, pode me arrumar um emprego que pague mais. Prometo que vou pensar. Não sei se é bom sair agora que vai nascer o meu irmãozinho. Acho que devo ficar e ajudar a minha mãe. Eu faço assim: ganho 420 reais. Com os descontos, dá 168 reais por quinzena. A primeira quinzena eu entrego para minha mãe. Com a segunda, pago a conta da luz e trato da minha vida. O resto das despesas meu padrasto, o Paulo, é quem paga, porque a minha mãe não trabalha. Acho que é por causa da depressão. Ela toma uns remédios tarja-preta. Acho que a gravidez dela, por causa desses remédios, é de risco. E da idade, claro.

Esperei um pouco por causa de mais um tiroteio. Durou pouco. Deu para sair rapidinho e ir à lan-house ver os recados no Orkut. Um deles era de uma cliente do mercado que mora em Curitiba. Ela me conta que está morrendo de saudade do Rio, e que talvez venha em setembro. Na saída, encontro o Mau-Mau, um amigo, com dois dentes quebrados. Ele gosta de uma garota que tem um namorado. Mau-Mau é muito religioso, está sempre na igreja. Na verdade não é bem uma igreja, fica numa garagem. Lá, ele falou para o cara largar a garota porque Deus tinha dito que ele, Mau-Mau, é que ia ser o namorado dela. O cara quebrou os dentes dele, e ainda o deixou com um olho roxo. Que história para terminar a folga...

TERÇA-FEIRA Saio para o trabalho debaixo de bronca da minha avó. Ela acha que, ontem à noite, fiquei assistindo televisão e não falei com ela direito. Na minha rua está cheio de gente com fuzil na mão. Acho que vai ter guerra hoje.

No trabalho a coisa também não vai bem. Mal eu chego e um colega, o Caveirão, me conta que quase saiu pancada entre ele e o Capitão Sujeira, outro colega do Laticínios, por causa de limpeza ali na área de trabalho. O Caveirão foi falar para o Capitão que ali não era o lixão da casa dele, que ali precisava ser limpo, essas coisas. O Capitão ficou bolado. Pouco depois, o Capitão brigou com a demonstradora de queijo que trabalha com a gente. Ela mandou ele tomar um banho, escovar os dentes e lavar a camisa. Fechou o tempo.

Hoje decidi não jantar. Aquela caminhada até o posto 5 às vezes desanima. Comprei um pacote de biscoitos e fui passear um pouco na orla, para sentir aquele cheiro de mar. Assisti a três moleques de rua roubarem um sanduíche e um suco das mãos de um turista e voltei para o trabalho. Não sei por que, mas sempre achei que essas coisas só acontecessem na África.

Entro no Laticínios e a padeira vem por trás e pega uma azeitona do balcão frigorífico. Quando se virou para voltar à padaria, o segurança já estava chegando. Ele tinha visto e deu a maior bronca nela. Dia carregado.

SEXTA-FEIRA Estou muito cansado. Acho que dormi mal. Cochilei várias vezes no trem e no ônibus. O dia foi todo complicado. De madrugada, quando estava voltando para casa, depois de já ter saído do ônibus, ouvi os gritos de uma mulher. Ela saía de casa puxando uma garota, que estava passando mal. Ela tomou remédio para tirar o bebê, mas a gravidez estava muito adiantada. Um vizinho levou elas de carro para o hospital. Fiquei pensando nisso e na gravidez da minha mãe antes de dormir.

SÁBADO O Caveirão, não o meu colega, o blindado da PM, chegou cedo hoje na favela. Teve muito tiro, mas na hora de sair já tinha terminado tudo.

No trabalho, parece que vai ter festa. O gerente vem me dar os parabéns porque o Laticínios da nossa loja foi o que mais vendeu em julho. Está todo mundo feliz porque vai ganhar um dinheiro a mais este mês. Mas só quem tem mais de seis meses de trabalho. Eu não ganho: só tenho um mês e meio. Mas não vou perder essa. Aproveito e peço ao gerente para trabalhar mais cedo no domingo, porque está perigoso nos fins de semana lá na Vila. Ele topou, vai ser das 10 às 22 horas. Vou chegar cedo em casa.

TERÇA-FEIRA O dia hoje é de pouco movimento. É quando demoram mais a passar as horas de trabalho. Pelo menos foi divertido, porque tem um funcionário novo na minha seção. Tem pouco mais de um mês que veio de Alagoas. Sorte dele que já conseguiu emprego. Falei para ele que, no Rio, mulher a gente chama de "mandioca". Ele acreditou e me disse que, no domingo, pegou "duas mandiocas" no forró.

QUARTA-FEIRA Amanheço com gripe e um pouco de febre. Pode ser por causa do trabalho atrás daquele balcão frigorífico. Não é nada. Vou ao banco pegar a minha quinzena e volto para casa. Minha mãe quer dinheiro para comprar um caderno novo para o meu irmão. O dele está com só duas folhas em branco.

Saio para o trabalho e encontro com um garoto da favela. Ele tem uns 13 anos, é amigo do meu irmão. Chega perto e me pede um real para comprar um pão, porque não tinha comido nada ainda. Caderno, pão, ainda bem que recebi a quinzena.

No trabalho descubro que o funcionário novo continua acreditando em tudo. Já contei para ele que a história da "mandioca" foi só sacanagem, mas um colega disse para ele que ele vai ganhar muito dinheiro. Daqui uns três meses, já vai poder comprar uma moto, ele disse. Só não disseram que é uma moto de brinquedo, e ele está fazendo planos de trazer a namorada de Alagoas para o Rio.
São 17 horas, a hora das mulheres que queimaram calorias nas academias aparecerem para recompor as calorias. Só compram importados. Daqui a mais ou menos uma hora, um pouco mais, vão chegar os musculosos. Os homens vêm da malhação e compram peito de peru light. São mais preocupados que as mulheres com essa coisa de produtos light.

É também a hora dos estudantes e das velhinhas que compram comigo. A garotada fala sem a gente perguntar: "Aí, cara, tá vendo isso aí que eu tô comprando? É a minha janta, podes crer". As velhinhas dizem: "Meu filho, isso aí é para eu lanchar antes de dormir". Quase sempre compram um pouco de mortadela.

Às 19 horas começam a chegar os engravatados e as mães com filhos. Elas compram de tudo e dizem que, se não forem até em casa segurando os pacotes, as crianças comem tudo pelo caminho. O pessoal que chega de terno e gravata é engraçado. Eles compram peito de peru e queijo minas light. Quando compram presunto, sempre pedem uma fatia para provar. Pelo movimento, quarta e sábado são os dias de renovar os estoques na geladeira da casa dos clientes.

Mais tarde, lá pelas 22 horas, ainda vão chegar as pessoas que saíram da casa dos pais para morar sozinhas. Antes de comprar, muitas ligam para as mães pelo celular e fazem umas consultas. Quase sempre acabam comprando só queijo e presunto.

O movimento só diminui por volta das 23 horas, depois da briga do pão quente. A padaria é aqui ao lado do Laticínios, e eu fico só olhando. Às vezes, quando chega o pão novo, e tem muita gente esperando, parece que essas pessoas passaram o dia sem comer. E são sempre as mesmas.

QUINTA-FEIRA Estou com dor no corpo. Minha mãe pede o restante da quinzena para pagar uma conta de luz. O trem hoje está freqüentado. Tem três pedintes: um cego com as filhas, uma senhora que quer esmola e um senhor com um bebê. Diz que a criança está doente e ele precisa de dinheiro para os remédios. Tudo isso num vagão só.

Já chego ao trabalho cansado. Às 17 horas, a loja enche de estudantes, velhinhos e o povo que vem das academias. Hoje todos querem queijo prato.

Perto das 20 horas, um funcionário do açougue passa e diz que vai "secar" o Flamengo no jogo. Ele é vascaíno, mas não deu certo e o Flamengo ganhou.

Vinte e três horas é a hora dos solitários. A maioria é de homens e são quase sempre os mesmos. Hoje uma mulher falou comigo sobre a guerra do Iraque. Guerra é sempre uma barbaridade.

Quando desço do ônibus tem quatro caras estranhos do outro lado da rua. Resolvo tomar um caminho contrário ao da minha casa. Não estou a fim de passar por eles.

SEXTA-FEIRA Minha avó me acorda. Minha mãe está sentindo as dores do parto. É o bebê. Mas a mãe diz que não está na hora, e me manda ao supermercado Guanabara pagar duas parcelas das compras do mês. Arroz, feijão, carne, farinha. A conta de casa é alta. É muita gente.

Como somos cinco, com duas crianças, e mais um por chegar a qualquer momento, este mês está difícil. Por causa do bebê, tivemos compras extras: berço, fraldas e roupas para ele.

Começo a trabalhar às 16 horas. É a hora das empregadas domésticas que trabalham no final de semana. Elas sempre compram azeite, queijo prato, mortadela, salaminho, presunto, queijo minas. Sempre acima de meio quilo.

Às 18 horas são os casais que nunca sabem direito o que levar para casa no fim de semana. Olham tudo, perguntam, e muitas vezes não compram nada. É também a hora do pessoal que sai da praia e vai jantar frios ou sanduíche.

Bem mais tarde, lá por volta das 21 horas, chegam as pessoas que vieram passar o fim de semana no Rio. Compram de tudo que está à venda no Laticínios, e sempre dizem que eu tenho sorte de morar no Rio.

É engraçado o que a gente descobre das pessoas. Os solteiros também aparecem nas sextas-feiras. Trabalham a semana inteira, e na folga não querem saber de arroz. Levam azeitonas, queijo prato, presunto. Quase sempre meio quilo.

Os artistas e os casais gays chegam lá pelas 23 horas, fazem muita piada. Os gays sempre dão um jeito de falar alguma brincadeira sobre sexo. Não digo nada. Os artistas repetem a pergunta sobre quanto tempo os frios duram na geladeira. Depende, eu digo. Se não ficarem muito tempo fora do gelo, enquanto a pessoa está comendo, podem durar bastante, uma semana.

Estou quase chegando em casa quando encontro minha mãe e meu padrasto. Estão a caminho do hospital. O meu irmão vai nascer. Mais de 4 da manhã e uma enfermeira traz um recado da minha mãe: eu e meu padrasto devemos ir para casa porque o bebê não vai nascer ainda.

SÁBADO Nasceu de manhã cedo. Meu padrasto me acorda com a notícia. O cara nasceu com 4 quilos e 50 gramas. Mede 50 centímetros. É grandão. Nem sei qual foi o meu peso quando nasci. Fico feliz que correu tudo bem. Minha mãe falou para o Paulo que esse deu mais trabalho, ela sentiu dores por mais tempo. Pena que só vou poder ir ao hospital amanhã.

Hoje é o dia de maior movimento. Gente de todo o tipo. Solitários, casais, gente da minha idade, domésticas, estrangeiros, pessoas que fazem as compras da semana, do mês e, no final, passam ali no balcão para completar com frios e queijos. É dia de compra grande. Tem gente que leva mais de 2 quilos de presunto e queijo. É uma loucura, a fila não diminui, sai um, entra outro. Tem casais que se encontram nos fins de semana. Dá para perceber, porque ficam na fila se beijando o tempo todo. É engraçado adivinhar a vida das pessoas.

DOMINGO Acordo às 10 horas, ansioso para ir ver o meu irmão. Preciso esperar até as 2 da tarde, que é o horário de visitas, e parece que o tempo em casa não passa. Pouco depois de meio-dia, saio finalmente para o hospital Albert Schweitzer com o meu padrasto. Não é longe. A maternidade fica no 10o andar e a fila do elevador está enorme. Tento subir correndo pelas escadas, mas o fôlego termina no 3o andar. É melhor seguir devagar.

No quarto 1004 está a minha mãe, sorridente, com meu irmão. Ele é grande e cabeludo. Nasceu com as unhas tão grandes que arranhou a cara toda na primeira noite. Agora botaram umas luvinhas nele, para não se machucar mais. Tento pegar ele, mas foi só abrir o olho e começou a chorar. Só aceita a minha mãe.

Uma horinha só e acaba a visita. Volto para casa e fico pensando na minha família. Minha mãe não trabalha e meu padrasto tem 44 anos. Se ele sair do emprego, ninguém mais vai dar trabalho para ele. A responsabilidade pela família vai sobrar para mim. Acho que o meu dinheiro para o pré-vestibular vai para um preparatório para concurso público. O meu sonho mudou hoje, e vai ficar para mais tarde. Mas eu vou realizar, nem que demore 50 anos eu vou ser ortopedista.

Começo a arrumar a casa para parar de pensar no futuro. Dou um banho na minha irmã, boto toda a roupa suja na lavadora e vou para a rua conversar um pouco com os amigos. Eles estão muito animados, contam da festa que eu perdi, que só faltava eu, essas coisas. Acabei voltando para casa, para não deixar a minha avó sozinha com os meus irmãos, que são uns bagunceiros.

Paro um pouco para conversar com a minha avó. Ela acaba me dizendo que a "vida é dura para quem é mole" e diz que eu tenho que fazer por onde para ser recompensado. Já ouvi muito isso. Vou dormir.

10 de julho de 2015
Francisco A. Barbosa

Nenhum comentário:

Postar um comentário